Mísia: “Não me preocupa nada se sou ou não sou fadista”

34627257_GI13042019FILIPEAMORIM4323_WEB
Fotografia: Filipe Amorim/Global Imagens

Pura Vida (Banda Sonora)’ é o novo disco de Mísia, lançado a 14 de junho, poucos dias antes de celebrar o seu 64º. aniversário, e apresentado ao vivo no próximo dia 25, com um concerto no Teatro São Luiz, em Lisboa. O disco é um hino à vida, ao estar-se vivo, e reflete os últimos anos da cantora, marcados pela luta contra um cancro. Longe de ser pessimista, ‘Pura Vida’ celebra-a, sem esquecer as agruras, mas sem as deixar ofuscar as alegrias, desde logo a mais simples, a de sobreviver.

Em entrevista ao Delas.pt, Mísia fala de como os instrumentos – há uma guitarra elétrica, no fado ‘Ausência’, que apresenta o disco – e a escolha dos temas resumem estes anos e também aquilo que tem sido o seu percurso, entre géneros musicais, sem amarras e pioneiro em diversos cruzamentos artísticos. ‘Pura Vida’ é, de resto, pretexto para fazer essa retrospetiva, onde há interrogações que persistem. “Descobri, e ainda hoje é a mesma coisa, que o mais misterioso dentro de mim é esta relação com o fado e com o meu país, é a que me faz mais perguntas”.

Um grande concerto no Porto é outra das perguntas por responder e situação por concretizar. Foi lá que nasceu e lá que começou, nas casas de fado, aos 16 anos. Mas falta essa grande atuação, para a qual não encontra resposta, há vários anos. Para já é Lisboa que se segue na apresentação do novo disco, ‘Pura Vida (Banda Sonora)’, onde o fado volta a cruzar-se com o tango, o flamenco e todos os caminhos que a artista tem desbravado, em quase 30 anos de carreira.

 

Mísia, fotografada no Museu do Fado [Fotografia: Filipe Amorim / Global Imagens]
O single de apresentação a este disco, o tema ‘Ausência’, inclui uma guitarra elétrica, quase em contraposição com a guitarra portuguesa. É uma espécie de manifesto para este novo álbum?

Não é propriamente um manifesto. Durante estes mais de 20 anos tenho feito as coisas de uma maneira um bocado diferente, um bocadinho à minha maneira, mas nunca com intenção de chocar, incomodar… Nem sequer penso nisso. Se acho que isto fica bem assim, se sinto isto assim, vou fazer assim. Portanto, o que aqui há é realmente uma grande liberdade. E este disco, cujo título é ‘Pura Vida (Banda Sonora)’, poderia chamar-se ‘Pura Música’ porque os fados estão encarados como música, não pertencem a nenhum género musical. Existem os cânones do género, claro, mas, neste caso, no disco e, sobretudo, neste tema ‘Ausência’, que é um tema do Alfredo Marceneiro, do princípio do século XX, fui eu que tive a ideia de incluir a guitarra elétrica. Por motivos pessoais. A guitarra elétrica significa um bocadinho a parte dura, menos amável, da vida – tocada assim, desta maneira.

Foi díficil, nesse tema, conseguir fazer esse casamento entre a guitarra elétrica com o lado mais tradicional do fado?
Não. Já há anos que tinha esta ideia e sabia, intuitivamente, que a guitarra elétrica e a guitarra portuguesa iam ficar bem. Sempre tive essa sensação, porque ao mesmo tempo que tenho mais dúvidas de pôr fado com bateria, por exemplo – no meu caso, não critico ninguém que o faça – a guitarra elétrica torna o fado mais profundo, mas trágico, por assim dizer. Acrescenta-lhe um outro nível de profundidade. Este disco tem muito a ver, e por isso é que ele se chama [também] ‘Banda Sonora’ com os meus dois últimos anos, como é que eles foram. E foram de uma maneira que eu acho que neste momento não preciso – digo isto com todo o respeito e humildade – de pertencer a nenhuma tribo musical. Não me preocupa nada se sou ou não sou fadista. Sou eu própria, que é uma coisa que já é bastante difícil. É um caminho singular e individual e eu defendo, nessa minha liberdade, ser assim. E olhando para trás vê-se que eu fiz isto sempre. Posso fazer um espetáculo só com fados tradicionais e com guitarra, viola e baixo. Também posso fazer isso. Mas posso fazer outras coisas e não vou continuar a amputar-me. Vou fazer aquilo que eu quiser daqui para a frente.

Quando é que sentiu que teve de “amputar” aquilo que desejava, que queria fazer?

Durante muitos anos, mesmo no princípio, poderia ter feito muitas outras coisas. Decidi que queria cantar fado e no início tinha muito medo. A minha vontade de ser aceite, mais afetivamente do que artisticamente, pelo meu país, pelo fado, por pertencer, era tão grande que eu amputei muitas coisas que já tinha feito antes disso e que deixei de fazer – teatro, dança, muitas coisas. E agora não. Faço o que eu quiser. Se amanhã quiser fazer um espetáculo de burlesque, faço. E se pensarem que eu não sou fadista, que pensem.

O mais importante é ser artista, o mais completa possível?
O mais importante é estar viva. E, para mim, estar viva neste momento passa por fazer as minhas vontades, sem prejudicar ninguém, mas por não estar indexada à opinião e à agenda de outras pessoas.

Nestes dois anos o que é que mais mudou em si e na sua relação com a música?
Não é segredo, foi noticiado, eu tive problemas oncológicos. Não falei deles durante a época em que os tive, primeiro porque não era capaz de o fazer e, segundo, o que a mim me interessa não é dizer, se tive isto ou tive aquilo, o que me interessa é contextualizar aquilo que eu tive, as consequências que teve na minha maneira de trabalhar agora. Este disco está impregnado por aquilo que eu passei. E não se pode separar a pessoa do trabalho. Por isso é que eu o chamo de ‘Banda Sonora’, porque muitos dos escritores que o escreveram, escreveram conhecendo os problemas que eu estava a viver. As músicas também, os arranjos, a força da guitarra elétrica, que é uma espécie de inferno, e a guitarra portuguesa tão espiritual, cristalina, é o céu. O clarinete de baixo, que é um instrumento de sopro, significa o sopro da vida, porque de momento sobrevivi, estou aqui. Tem a ver com essa via crucis que eu passei. E não sou a única, muitas pessoas passam. Se eu posso falar hoje desse pedaço da minha vida é porque também tem coisas positivas. Se esta minha história pode ajudar alguém, eu fico contentíssima.

Na história que impregna este disco, qual foi o critério de escolha das músicas, das versões que quis trazer para ele? Foi uma parte mais luminosa, mais sombria?
Foi a vida. A escolha dos poemas, que vêm sempre antes da música. São muito importantes neste disco quatro poemas do Tiago Torres da Silva, três deles foram escritos agora para mim, mas outro que ele já tinha guardado numa gaveta, há quase 20 anos, à espera de uma voz que tivesse uma vivência de vida suficiente para poder cantar. E deu-me a mim esse poema. Foi uma grande catarse fazer este disco e espero que as pessoas vejam a diferença, a diferença que há quando uma pessoa canta depois de ter passado por um calvário e consegue cantar e procurar coisas belas, positivas e boas. Não é para terem pena. É um disco cheio de vida.

Diz também que é um disco cujos arranjos são muito cinematográficos.
São. Por exemplo, no fim do tango, ele acaba com um acorde musical que é Nino Rota, é mesmo um filme de Nino Rota. Sim, os arranjos do maestro Fabrizio Romano foram muito importantes. Também quero falar da mais-valia que são os meus convidados, o Daniel Melingo, da Argentina, o nosso Ricardo Ribeiro, que eu admiro muitíssimo, o Gaspar Varela, guitarrista, sobrinho-neto da Celeste Rodrigues.

Como é que juntou este leque de convidados?
Toquei à porta e pedi, como faço sempre [risos].

Mas por que quis ter estes convidados, em particular?
O Gaspar Varela, por exemplo, é alguém que está a começar a vida. Tudo tem a ver com a vida, neste disco. E quando olho para ele a minha vontade é sorrir e parece ser uma pessoa que vai ter um futuro muito bonito. E não posso esquecer outra coisa, que é a música do Rodrigo Leão [o disco contém uma versão do tema ‘Pásion’] de cujo trabalho eu gosto. A letra desta música é em castelhano e como o Ricardo Ribeiro gosta tanto de flamenco, achei que era o momento de juntar estas energias todas e penso que ficou muito bem. Já tinha convidado o Ricardo Ribeiro outras vezes, por isso estava programado que um dia iríamos cantar juntos.

Este disco, antes de ser lançado aqui, o conceito foi estreado ao vivo, em palco, há um ano em Espanha.
Sim, mas não tinha guitarra elétrica, foi o disco ainda em embrião. Isto foi em Madrid, Barcelona e Sevilha. Gosto desta ideia de rodar as coisas em palco antes de as gravar. Já fiz isso noutros discos. Portanto, fizemos três concertos. Chamavam-se à mesma ‘Pura Vida’ – acho que não tinha o ‘Banda-Sonora’. Agora, no disco os arranjos estão mais sofisticados também. Na parte dos convidados, queria referir ainda o Raul Refree, que é produtor da Rosalía, que participa nesta versão de ‘Lágrima’.

O tango, sem suplantar o fado, está também muito presente no seu trabalho. De onde lhe vem o gosto por esse género?
Bom, eu sou filha de mãe espanhola. Mãe bailarina, que não dançava tango mas eu vou quase todos os anos a Buenos Aires cantar. Se tivéssemos de escolher um país no mundo, onde eu tenho mais público, onde serei conhecida, seria a Argentina. E no tango posso dar saída a uma visceralidade que no fado não acontece. Lá está, fica amputada. Porque eu tenho-a cá dentro, sou filha de mãe espanhola, tenho sangue na guelra. O tango é outra energia, é outro tipo de voz quase, é uma afirmação. O fado é quase como escolher aceitar, é ter a sabedoria de escolher aceitar o nosso destino. E o tango e o flamenco são mais uma luta, e têm movimentos físicos. O fado é estático, hoje não se dança.

Cada género e cada poema que canta é uma personagem diferente?
Eu sou basicamente uma intérprete. Não cuido a voz, os cantores que admiro são cantores – tirando a Amália – não têm grande voz. Para mim a interpretação, o que se tem a dizer e como se diz, vale mais do que uma performance vocal. Sou uma voz-personagem.

Disse antes que o fado é um destino que se escolhe aceitar. Quando é que o escolheu aceitar como o seu destino?

Eu comecei a cantar fado aos 16 anos, no Porto. Já li críticas que diziam: ‘a Mísia veio de fora’. Como se tivesse sido uma extraterrestre que aterrou no fado. Não, eu estive quatro anos a cantar nas casas de fado, ainda que não como profissional. Cantava como amadora. Quando comecei a ouvir fado, foi a Amália que comecei por ouvir. E quando comecei a ouvir fados, havia fados de que eu gostava muito e fados de que não gostava nada. E continua a ser assim, eu não gosto de todos os fados. Mas eu descobri, e ainda hoje é a mesma coisa, que o mais misterioso dentro de mim é esta relação com o fado e com o meu país, é a que me faz mais perguntas.

Que perguntas é que lhe faz?

Ah, muitas, muitas. Não sei explicar. Nós somos um povo cheio de perguntas, não é? Não sei se de respostas, mas perguntas fazemos. Não sou conformista, mas a melancolia e tudo o que é muito profundo eu associo ao fado e a Portugal. Eu vivi até aos vinte e tal anos, só muito depois é que fui viver em Paris, apesar de as pessoas já dizerem que eu vivia em Paris antes de ir para lá. Então fui quatro anos viver para Paris e depois tive saudades e voltei. Mas eu só fui viver para Paris em 2005, décadas depois de as pessoas andarem a dizer que morava em Paris.

Mas porque é que diziam isso?

Uma vez perguntei a várias pessoas e a resposta que me deram era que eu era tão para a frente que não me imaginavam cá. Achavam que eu não pertencia aqui.

De certa forma, o seu percurso foi muito revolucionário.

Sim, foi. Porque não foi só ser jovem – aliás, eu já nem era tão jovem quando comecei profissionalmente, não pertencia a nenhum grupo, a uma nova geração como se fala agora – mas era por várias coisas. Era pela maneira de vestir, porque usava minissaia, pelo discurso, o tipo de poetas que escolhia, com o convite que fiz a pessoas que não eram do fado, como o Sérgio Godinho, o Vitorino, o Jorge Palma, a Amélia Muge…

Algo que hoje se vê na maioria dos discos de fado atuais.

Exatamente. E outros instrumentos também, que usei, sobretudo o violino e o acordeão. E ainda a interdisciplinaridade entre as artes, como convidar atrizes para ler os poemas. Era importante para mim fazer diálogo com outras artes.

E uma delas – se podemos chamar assim – é a moda e a sua colaboração com estilistas nacionais. Também aí foi, de certa forma, pioneira. Quando fez isso foi porque se interessava pela moda em si ou por esse interesse na interdisciplinaridade?

Foram as duas coisas. Eu não sou uma pessoa que siga muito a moda, é mais uma questão de estilo. Gosto muito do trabalho de certos designers. Comecei por usar muitas coisas da Ana Salazar, porque gostava do estilo e porque ela era uma pioneira também. E as pioneiras nem sempre são as pessoas que têm mais sorte, quem recolhe os frutos são sempre os que vêm depois. O Valentim Quaresma com quem colaboro há muitos anos. A coroa de espinhos que está no disco é dele. E as botas são de uma artista argentina que é a Jessica Kessler. E também uso muitas coisas – vou usar no São Luiz – dos Storytailors. Um dos temas do disco, o ‘Lágrima’, é dedicado ao João Branco. É uma saudade.

A carreira da cantora e fadista tem sido marcada por derrubar fronteiras entre os géneros, entre países e línguas. Uma interdisciplinaridade que a torna uma das artistas portuguesas mais internacionais. [Filipe Amorim / Global Imagens]

Voltando aos poetas e aos textos, em 2011 fez um disco de fado tradicional (‘Senhora da Noite’) com letras assinadas só por mulheres. Outra iniciativa inédita. Por que quis fazer um registo assim?

Porque as mulheres estão quase sempre nos discos de fado, como autoras, mas ninguém as vê. Só se pensa nelas como intérpretes, mas nunca se pensa nas mulheres, no fado, na parte da criação. E então quis pôr a maioria delas e quando comecei a organizar o repertório vi que oito dessas mulheres eu já cantava há tempos. Achei que era importante mostrar que nós não estamos só a ser as médiuns que transmitem as músicas e os poemas dos outros. Por isso quis escolher em qualidade, mas em quantidade. O disco tem letras da Hélia Correia, Lídia Jorge. Agustina Bessa-Luís. E isso é muito importante para mim, mostrar o valor das mulheres.

No que se refere ao novo disco, ‘Pura Vida’, os espetáculos em Portugal vão ser semelhantes ao de Espanha?
Não, vão ser mais como o disco. No [Teatro] São Luiz, vou ter dois guitarristas. Na guitarra elétrica vou ter um músico, que é o Jeffrey Burton, com o qual já tinha trabalhado e que toca regularmente com o Iggy Pop – com quem gravei há uns tempos – também haverá outra guitarra elétrica, que fará outro tipo de sonoridades, a cargo do Filipe Felizardo. Vou tentar que estejam alguns convidados. Vai ter a projeção da imagem de um fotógrafo com o qual trabalho há imensos anos, que é o Francisco Aragão. Espero que venham muitas pessoas, que venham pessoas do Porto. Quero que venham pessoas do Porto!

Porque é que quer que venham pessoas do Porto?
Porque eu nunca canto no Porto.

E é de lá.
E porque sou de lá. Ando há anos a tentar cantar lá.

Por que é que não consegue cantar lá?
Não sei. Aconteceu cantar uma vez no Teatro Campo Alegre. Foi uma homenagem ao Vasco Graça Moura e uma vez no Rivoli, na altura do Porto – Capital da Cultura. Mas foi o coreógrafo americano, Bill T. Jones, que me conhecia, que escolheu alguns temas meus para a obra dele. Falta-me um grande concerto no Porto.

 

Mísia celebra 25 anos de carreira com residência artística no Museu do Fado