Morreu Jô Soares, aos 84 anos. “Façam um brinde à sua vida”, pede ex-mulher

Jô soares
[Fotografia: Mário Ribeiro/Arquivo Global Imagens]

O humorista e escritor brasileiro Jô Soares morreu na madrugada desta sexta-feira, 5 de agosto, aos 84 anos e quando estava internado no hospital sírio-libanês de São Paulo, Brasil. A confirmação foi dada pela ex-mulher de Jô Soares, Flávia Pedras, num texto emocionado, retrospetivo e profundamente pessoal.

Uma partida que, segundo a antiga companheira, aconteceu cercada de “amor e cuidados”. “Aqueles que, através dos seus mais de 60 anos de carreira, se tenham divertido com os seus personagens, repetido os seus bordões, sorrido com a inteligência afiada desse vocacionado comediante, celebrem, façam um brinde à sua vida”, pede Flávia Pedras, que fala de um homem “apaixonado pelo país onde nasceu e escolheu viver, para tentar transformar, através do riso, num lugar melhor”.

 

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Uma mensagem que traz para o público uma vida de companheirismo entre ambos, mesmo após a separação. “Viva você meu Bitiko, Bolota, Miudeza, Bichinho, Porcaria, Gorducho. Você é orgulho de todo o mundo que compartilhou de alguma forma a vida com você. Agradeço aos senhores Tempo e Espaço, por me terem dado a sorte de deixar nossas vidas se cruzarem. Obrigada pelas risadas de dar asma, por nossas casas do meu jeito, pelas viagens aos lugares mais chiques e mais mequetrefes, pela quantidade de filmes, que você achava uma sorte eu não lembrar pra ver de novo, e pela quantidade indecente de sorvete que a gente tomou assistindo. Obrigada para sempre, pelas alegrias e também pelos sofrimentos que nos causamos. Até esses nos fizeram mais e melhores.”

“Amor eterno, sua, Bitika”, conclui Flávia Pedras, onde revela, na mesma nota, que “funeral será apenas para família e amigos próximos”.

Flávia e Jô Soares foram casados durante mais de uma década e, após o divórcio, o humorista brasileiro chegou a confessar em entrevista que se tratou de “uma separação que não deu certo”, uma vez que estavam sempre juntos. Antes, o comediante esteve casado cerca de 20 anos com Teresa Austregésilo, relação da qual nasceu Rafael, que viria a morrer em outubro de 2016.

A 3 de novembro de 2014, no seu icónico programa de talk show da Globo, O Programa do Jô, o apersentador fez uma das intervenções mais sérias e pessoais do seu percurso pessoa, evocando o único filho, Rafael Soares, Rafinha, que morrera dias antes, aos 50 anos. “A perda de um filho, o pesadelo de todo o pai”, disse então Jô Soares. Autista, Rafinha era companheiro de percursos urbanos de Jô Soares, uma inspiração para o autor e escritor, que o lembrou como pianista, músico de ouvido absoluto, apaixonado pela rádio. “Como era autista, permaneceu menino (…). E esse caminho limitado que a vida lhe deu, me dá muito orgulho”, afirmou.
Recorde-se que Jô também esteve casado com a atriz Sylvia Bandeira, por dois anos e meio.

60 personagens e a amizade com Raul Solnado e Nicolau Breyner

O humorista e escritor brasileiro Jô Soares construiu centenas de personagens em quase 60 anos de trabalho em televisão, desde 1958, com a estreia na TV Rio, até ao final do “Programa do Jô”, na Globo, em 2016.

As mais conhecidas provêm de “Viva o Gordo”, o programa que estreou em 1981, na Globo, e celebrizou deixas ‘deixas’ como “Cala a boca, Baptista!” e “Bótimo, melhor que bom, melhor que ótimo!”, do temente irmão Carmelo, pronunciadas num Brasil ainda sob ditadura militar (1964-1985).

Foi neste programa que Portugal o descobriu, no início dos anos de 1980. Mas, no percurso de Jô Soares, que morreu hoje, em São Paulo, aos 84 anos, havia já teatro, cinema, pintura.

E a escrita, sempre presente, desde os primeiros argumentos para TV, até à ficção de “O Xangô de Baker Street” e “O Homem Que Matou Getúlio Vargas”.

José Eugénio Soares, conhecido por Jô Soares, nasceu a 17 de janeiro de 1938, no Rio de Janeiro. Estreou-se no cinema e na televisão no final dos anos de 1950, como argumentista e ator, nomeadamente no Grande Teatro da TV-Tupi, atingindo sucesso maior cerca de dez anos depois quando chegou à TV Globo com o programa “Faça Humor Não Faça Guerra”, que escrevia e interpretava.

Portugal descobriu o autor quando a RTP passou a transmitir o seu programa de humor “Viva o Gordo”, uma sequência de ‘sketeches’ de humor, no qual ironizava “a política e os costumes” de um país vigiado, como recorda a Globo, na sua página de arquivo.

Em “Viva o Gordo”, Jô Soares construiu algumas das personagens mais populares da sua carreira, como Capitão Gay, o super herói que se batia pelos fracos e oprimidos, e Reizinho, o monarca minúsculo, ridículo, a braços com problemas comuns aos do seu país, batendo preconceitos e assumindo um humor global, a partir de uma realidade sujeita à censura.

Zé da Galera, o ‘torcedor’ do futebol brasileiro, apoiante incondicional da seleção, Bô Franceneide, a atriz de ‘pornochanchadas’ à procura de emprego, e General Gutierrez, o ex-déspota argentino, em exílio no Brasil, foram outras personagens criadas por Jô Soares em “Viva o Gordo”, que se manteve nos ecrãs durante seis temporadas.

O sucesso atravessou o Atlântico até Portugal, o que fez do ator uma visita regular ao país, e sustentou laços de amizade com Nicolau Breyner e Raul Solnado.

Essas personagens afirmaram o seu nome decisivamente, abrindo portas a programas posteriores como “Veja o Gordo” e os ‘talk shows’ “Jô Soares Onze e Meia” e “O Programa do Jô”, com que se despediu dos écrãs.

Filho do empresário Orlando Soares, do Rio de Janeiro, Jô Soares estudaria na Europa, a partir dos 16 anos, com o objetivo de seguir a carreira diplomática, por sua própria vontade, frequentando o Lycée Jaccard, em Lausanne, na Suíça.

Aos 20 anos, porém, de regresso ao Brasil, foi seduzido pelo cinema, aceitando um papel no filme “O Homem do Sputnik”, de Carlos Manga, onde o talento é reconhecido e lhe abre as primeiras portas da televisão e dos palcos.

No final da década de 1950, a biografia oficial coloca-o, inicialmente, em canais como TV Rio, nos programas “Noite de Gala” e “TV Mistério”, na TV Continental e na TV Tupi, para os quais também escrevia, e no “Grande Teatro”.

Mas a sua presença é também notada nos palcos, depois da estreia em “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, interpretando um bispo, e noutras produções, ao lado de atores já consagrados, como Paulo Autran e Tônia Carrero.

Durante os anos de 1960, manteve-se na TV Record, destacando-se em programas de humor como “La Revue Chic”, “Jô Show”, “Praça da Alegria” e “Família Trapo”, numa alusão à família de “Música no Coração”.

A cada etapa, Jô Soares afirmava cada vez mais um estilo que o levaria à Globo, onde se estreou com “Faça Humor Não Faça Guerra”, em 1968, no auge do movimento ‘hippy’.

Seguir-se-ia “Satiricom”, uma sátira à informação censurada, e “Planeta dos Homens”, que chegou igualmente a Portugal.

Foi na TV Globo que se cruzou com o seu amigo Raul Solnado, pela primeira vez, no especial “O Descobrimento do Brasil”, emitido em 1973.

O fim da ditadura no Brasil e a realização de eleições diretas, em 1985-86, coincidiu com o termo de “Viva o Gordo”, e a nova abordagem de “Veja o Gordo”, desta vez no canal SBT, onde completou 17 anos de emissões e a composição de mais de 240 personagens.

Ainda nos anos de 1980, Jô Soares optou por um modelo de ‘talk show’ mais próximo do norte-americano, intercalando convidados, entrevistas, ‘sketches’ e música. Surgiu assim “Jô Soares Onze e Meia”, ainda na SBT, o que deu origem, mais tarde, a “O Programa do Jô”, de novo na Globo, que chegou a Portugal através do canal por cabo GNT.

Admirador de pintura, e da Pop Art, em particular, através de artistas como Roy Lichtenstein e Robert Rauchemberg, consumidor de banda desenhada de autores como Will Eisner e Chester Gould, Jô Soares também pintava e chegou a expor na Bienal de Artes de São Paulo, na década de 1960.

Como escritor, assinou títulos como “O Xangô de Baker Street”, “O Homem Que Matou Getúlio Vargas” e “Assassinatos na Academia Brasileira de Letras”, obras editadas em Portugal pela Presença.

Admirador de Fernando Pessoa, estreou no Teatro Villaret, em Lisboa, em janeiro de 2010, o espetáculo “Remix em Pessoa”, assente na obra do criador de Alberto Caeiro, como se criasse um novo heterónimo ao poeta dos heterónimos, uma espécie de “irmão bastardo de Álvaro de Campos”, como então afirmou.

O seu último projeto foi no teatro, a montagem da peça “Gaslight”, de Patrick Hamilton, que a pandemia o fez adiar por duas vezes, desde 2020.

No passado dia 30 de julho, Jô Soares escreveu na sua página oficial, na rede social Twitter: “Tudo passa. Só que às vezes passa igual um trator por cima de você.”

CB com Lusa