“Muitas das crianças que vi em Donetsk são hoje os jovens que estão na linha da frente”, diz Maria Palha

Maria Palha
Maria Palha [Fotografia: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens](Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Mulheres e crianças ucranianas despedem-se dos maridos e dos pais e seguem, com os casacos e a pouca mala que carregam, para o primeiro comboio que as coloque em fuga de território ucraniano. Elas seguem, eles ficam, por decisão militar, no território a lutar.

Estas são as imagens que chegam hora após hora da fronteira da Ucrânia com a Polónia. Mas é apenas uma parte de uma crise de deslocados a suplantar o milhão e 700 mil pessoas no 13º dia da guerra, das quais bem mais de meio milhão são menores, e feita sobretudo no feminino. Estaremos, por isso, perante uma onda gigante de deslocados de guerra distinta de anteriores? Maria Palha diz que não, só o período de tempo que criou este êxodo é que encurtou: bem mais veloz do que outros.

Esta psicóloga de 40 anos acompanhou e trabalhou a saúde mental em várias epidemias, crises humanitárias e em contextos de conflito ao serviço de uma organização mundial e viu sempre este cenário em todos. “Não me surpreende ser um mar de mulheres e crianças. É sempre assim e já era assim em Donetsk, quando estive lá já nesta guerra, em 2015, e fui integrar uma equipa que iria desenhar e formar colegas em programas de apoio à saúde mental para a população”, refere a terapeuta ao Delas.pt. “Estive dois a três meses a trabalhar lá, e muitas das crianças que vi na altura são hoje os jovens que estão na linha da frente ou que continuam a fugir da guerra.”

Maria Palha,, psicóloga clínica especializada em situações de crise humanitária [Fotografia: DR]
Maria Palha,, psicóloga clínica especializada em situações de crise humanitária [Fotografia: DR]

Hoje, tal como em 2015, um dos maiores temores da terapeuta e fundadora da associação sem fins lucrativos Be Human – e que lida com casos de saúde psicológica em contexto de conflito é o mesmo: “O meu maior receio, no caso das mulheres, era o de perpetuarem psicologicamente ou não o trauma. Afinal, eram e são elas que educam as futuras gerações, elas são as grandes mediadoras do conflito”, sublinha, antecipando que as dimensões de hoje, em número e em impacto na saúde mental, serão bem maiores.

Maria Palha diz não saber números de deslocados em 2015 e não ter recolhido fotos dessa passagem pela Ucrânia, numa inesperada antecipação do que acontece agora desde 24 de fevereiro de 2022, data do início da ofensiva russa sobre território ucraniano. Mas as Nações Unidas falam já, dados da madrugada de 8 de março, de um milhão e 700 mil pessoas a fugir à guerra e lembra que 48% dos refugiados em todo o mundo são mulheres e raparigas. Mas, a organização internacional apela também para os riscos que correm as crianças que estão a atravessar as fronteiras da Ucrânia sozinhas, estando mais expostas “à violência, ao abuso, à exploração e ao tráfico”.

Mulheres há duas semanas sem dormir,
crianças a regredirem na fala

Em Donetsk, mulheres e crianças mostravam reações distintas face à guerra e Maria Palha crê que o que se está a passar agora em nada será diferente do que viu em 2015. “As mulheres tinham reações de stress pós-traumático como insónias, um permanente estado de alerta. Havia mulheres que estavam há duas semanas sem dormir”, avisa. Mas os efeitos não ficavam por aqui. “Os níveis de ansiedade estavam muito alterados e os sintomas passavam por perda de cabelo, irritabilidade, perdas de apetite e agressividade”, enumera.

As crianças “absorviam os níveis de stress das mães, daí ser muito importante falar do que se estava a passar”. Nos menores, “havia uma regressão ao nível do desenvolvimento com, em alguns casos, perdas de autonomia já adquirida, voltar a fazer xixi na cama e até deixar de falar”. Maria Palha crê que “muitos destes sintomas eram passageiros, mas tal não significava que passem em todos os casos”.

E agora? Agora, “o apoio psicológico é essencial a todas estas mulheres que estão a fugir da guerra”, clama Maria Palha. “É preciso dar-lhes ferramentas que lhes deem segurança e estabilidade. Há mesmo uma linha de primeiros socorros psicológicos e que passa por indicar onde encontrar ajuda, perceberem e falarem sobre o que se pode estar a passar com elas, conhecer os lugares e pessoas a quem pedir ajuda”, refere a terapeuta, que concebeu um kit emocional – publicado em livro – e após perceber as semelhanças traumáticas que ocorrem em todos os conflitos por onde passou.

As semelhanças e a grande diferença entre Ucrânia
e os outros conflitos mundiais

Ainda que tenham passado oito anos entre Donetsk e agora, há cenários que não mudam. Ou melhor, mudam na intensidade e na quantidade de civis que afetam. “Em Donetsk, não havia campos de refugiados, tal como agora. As pessoas estavam instaladas em escolas, asilos, fábricas, tal como se vê agora, estruturas cheias de mulheres e crianças, e sem os homens, por estarem a combater”, compara a especialista.

Maria Palha releva ainda um aspeto para o qual teve de encontrar caminhos na saúde mental e com o qual nunca tinha sido confrontada até ali: “Uma das particularidades que se tornou evidente naquele conflito e que o distinguia de outros passava pelo facto de não haver apenas uma divisão de género, existia uma outra, a ideológica”. Ou seja, prossegue a especialista, “os mais velhos acreditavam que fazia sentido voltar à Rússia, eram os que ainda tinham memória da União Soviética, e os mais novos eram muito mais pró-Ucrânia. Diria que, se estabelecesse uma linha para essa divisão, talvez fosse pelos 60 anos de idade”. Tal obrigava a, para lá das ferramentas de saúde mental a mulheres e crianças, encontrar soluções para “famílias que estavam completamente divididas, polarizadas e que dificilmente se reconciliariam, era preciso encontrar caminhos”.

“São mulheres que trazem um filho
num braço e uma manta no outro”

Mulheres e crianças atravessam a fronteira, são ajudadas por instituições, mas seguem depois para as mãos dos que lhe oferecem ajuda. Os riscos são inúmeros, ainda assim diferentes dos que são vividos pelos migrantes que, há anos, chegam ao sul da Europa, crê Maria Palha. “São mulheres que trazem um filho num braço e uma manta no outro e tudo é possível, mas creio que não será igual porque o nível de educação formal é muito semelhante ao nosso e, tendo acesso a emprego, conseguem trabalhar e falam, em muitos casos, inglês”, defende a psicóloga.

Mas o caminho não se faz apenas de um lado. A curiosidade em torno de quem chega vinda de outros territórios é, claro, imensa. Falamos de pessoas fugidas de uma guerra europeia, geograficamente mais próxima de Portugal. Por isso, Maria Palha deixa recomendações claras aos portugueses e que devem ser olhadas com cuidado.É importante protegê-las [as pessoas] quer dos estereótipos, quer dos preconceitos, é importante lembrar que já há crianças ucranianas e russas que estão a ser discriminados nas escolas e isso tem de ser travado”, pede a psicóloga.

Maria Palha, psicóloga clínica de formação com mais de 15 anos a criar programas de saúde emocional em contextos de crise humanitária. [Reinaldo Rodrigues/Global Imagens]

Num segundo passo, a terapeuta pede que “se estabilize quem chega sem tentar saber as suas histórias, não fazer perguntas que as façam voltar atrás, ao trauma, essa memória pode ser angustiante para elas”. E deixa ainda um alerta: “Qual o tipo de apoio que está ser dado aos russos, em Portugal? É importante cuidar de todas estas pessoas com entendimento, com compreensão.”

Síria: Campos para filhos de mãe violadas por soldados

Há guerras que não terminam e outras que, chegando ao fim, não se apaziguam quando deixam de cair as últimas bombas e é assinado um acordo de cessar-fogo. Há sequelas e marcas impossíveis de apagar. Maria Palha sabe disso como ninguém depois de ter estado em teatros de guerra e de refugiados de conflitos como a Síria, a Líbia, a Ucrânia, o Sudão do Sul e, entre outros, na Colômbia.

Maria Palha em trabalho na Líbia [Fotografia: DR]

E deixa um alerta: “Neste momento, na Síria, existem tendas em campos só para os filhos que são fruto de violações perpetradas por militares sobre mulheres. Filhos que foram abandonados pelas mães. Hoje são jovens adolescentes de 12 anos”, vinca a psicóloga. O que vai acontecer, o que fazer? “Na Síria, as respostas estão todas por dar”, suspira Maria Palha.