“Já tive pacientes que me pediram para as ensinar a voltar a apertar um soutien, pedem-me muitas vezes para as ajudar a voltar a abotoar as camisas, como antes”, revela o fisioterapeuta Pedro Ordonho. Esta última é uma das ambições de Maria Lúcia Silva, com 73 anos e vítima de um acidente vascular cerebral (AVC) há dez. A par desta vontade, esta mulher gostava muito de voltar a coser ou a comer sem se sujar. Luísa, uma alemã a viver em Portugal em iguais circunstâncias, lamenta ter percebido o quão difícil se tornou cumprir a normal lida doméstica.
“As inquietações e angústias são um bocadinho diferentes entre cada género. As mulheres estão mais preocupadas com a capacidade executiva, em reconquistar a independência. Os homens estão mais preocupados com a parte motora, com a força”, revela ao Delas.pt o neurologista Manuel Manita, do Hospital da CUF Infante Santo. O especialista crê que elas se “adaptam melhor às sequelas da doença, aguentam melhor. Os homens lidam pior com a visibilidade das incapacidades com as quais ficam”.
Num país em que o número de casos de mulheres com AVC aumenta – muito devido à longevidade, hábitos tóxicos e stress – e numa realidade em que é sobre o sexo feminino que recaem as questões da gestão, organização e limpeza do lar, como se vive depois de um AVC? Como se reaprende a voltar a uma nova normalidade?
Entre empregadas domésticas e maridos possivelmente disponíveis para ajudar e acompanhar as mulheres que ficaram subitamente incapacitadas, certo é que são as condições económicas que fazem a diferença na hora da recuperação de um AVC por parte do sexo feminino, e até da dignidade após um episódio agudo da doença. Um olhar que o Delas.pt traça esta segunda-feira, 29 de outubro, no dia em que se assinala o combate contra esta doença.
“Os AVC são muito piores nas mulheres”
Para Manuel Manita não há dúvida de que os AVC acabam por ser “muito piores nas mulheres” porque tal acontece-lhes “numa faixa etária em que executam todos esses gestos diários em casa, elas acabam por ter essas responsabilidades que depois não podem cumprir, muitas vezes, da mesma forma”. Nos homens, distingue o neurologista, “nem sempre são tão ativos nestas tarefas mais executivas ou não estão tão preparados para essas funções”.
Dados recentes indicam que há três AVC por hora em Portugal, um problema que atinge mais e de forma mais severa as mulheres. Segundo a Sociedade Portuguesa que lida diretamente com esta realidade, tem-se verificado uma diminuição de incidência (novos casos) de AVC, mas a prevalência tem aumentado, sobretudo porque na última década têm aumentado os sobreviventes. Em março último, Teresa Cardoso, coordenadora do Núcleo de Estudos de Doença Vascular Cerebral da Sociedade de Medicina Interna, confirmava estes dados. “A mulher é geralmente mais idosa, funcionalmente mais dependente e tem AVC mais graves.”
“No caso do sexo feminino, os AVC estão a acontecer mais cedo devido a alterações do estilo de vida que comportam mais stress, tabagismo e outros fatores”, diz o neurologista Manuel Manita
Um retrato com o qual Manita concorda: “Quando olhamos por géneros, a incidência tem lugar em idades ligeiramente diferentes. Os homens têm mais fatores de risco, sendo mais frequentes sobretudo aos 50 a 60 anos. Depois de certa idade, a doença surge mais nas mulheres porque vivem mais tempo”. O neurologista deixa, contudo, um alerta. “No caso do sexo feminino, os AVC estão a acontecer mais cedo devido a alterações do estilo de vida que comportam mais stress, tabagismo e outros fatores”.
Ainda assim, nem todo o cenário é negro até porque a taxa está a baixar. Como? “A mortalidade por AVC tem vindo a reduzir nos últimos anos e tal tem passado pela prevenção”, responde Manuel Manita. “Tem existido alguma politica pública nesse sentido, campanhas de sensibilização contra o sal, o tabaco, um maior controlo da tensão arterial”, contextualiza o neurologista, que não descarta o papel dos medicamentos preventivos.
Fisioterapia e recuperação: um desequilíbrio económico
Com taxas de morbilidade muito variadas entre os pacientes, as primeiras intervenções ao nível da fisioterapia podem fazer a diferença. É, contudo, importante haver disponibilidade por parte do paciente. O que nem sempre é possível. “Já comecei a fazer fisioterapia em doentes em coma e há bons resultados”, refere Pedro Ordonho.
O fisioterapeuta que trabalha atualmente no privado e que já passou pelo público crê que as mulheres, mesmo em quadros depressivos, estão mais disponíveis para a nova aprendizagem. “Elas são muito mais focadas e aí noto diferença de géneros nas recuperações”, revela. Mas tudo depende da intensidade das sequelas deixadas. Nem todos conseguem voltar a ser o que eram antes. Muito pelo contrário.
Porém, mais do que o género, é a conta bancária que dita a recuperação. “Em termos hospitalares, não noto diferenças entre o público e o privado, todos são tratados de igual forma e rapidamente. Mas na recuperação, a questão económica é muito difícil devido ao tempo que é necessário e às sessões pagas que deveriam ser idealmente cumpridas”, reconhece.
O neurologista não nega.”O tratamento na doença na fase aguda evoluiu muito nos últimos anos, é muito melhor e eficaz, e essa não depende da capacidade económica”, sublinha. Já sobre “os apoios para o pós-AVC, aí sim, essa questão coloca-se. O estado tem rede montada, mas é deficiente em apoios motores, alimentação e, muitas vezes, as pessoas acabam por ficar numa dependência social”, reconhece Manuel Manita.
“Estamos longe do ideal. Claro que haveria poupança para os sistemas de saúde”, admite o especialista ao Delas.pt. “Se as coisas estiverem bem organizadas, pode-se atuar ainda antes de os pacientes virem a desenvolver outro tipo de complicações posteriores. Acabam por fazer internamentos repetidos e que podiam ser prevenidos”, lembra.
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