Mulheres pobres ficam obesas porque dão os melhores alimentos aos filhos

“Quase todas as mulheres obesas que recebemos em consulta acabam por ter uma alimentação feita de hidratos de carbono e gorduras, porque dão as proteínas aos filhos”. Esta é a realidade velada, trazida à luz do dia e ao Delas.pt pela voz de Mariana P. Monteiro.

A médica endocrinologista, membro da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO) e que lida diariamente com a doença, denuncia o muito baixo orçamento familiar das utentes que recebe. Uma circunstância que muito raramente é declarada pelas pessoas que procuram ajuda clínica, mas que os médicos percebem pelas respostas dadas pelas mulheres em questionários.

Mariana P. Monteiro [Fotografia: Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar]
Um relato, no mínimo, duro, se não trágico. Mariana P. Monteiro revela que, em Portugal, as mulheres representam cerca de 85% do total dos utentes que dão entrada para cirurgia bariátrica (intervenção que consiste na colocação de uma banda à volta do estômago para limitar a ingestão de alimentos), a última linha de tratamento. O último suspiro de esperança para estes doentes.

Utentes obesas, do sexo feminino, e que, na sua maioria e fazendo eco do que se passa na sociedade, “ganham menos e alimentam-se pior”, contextualiza a médica. Portanto, dos parcos rendimentos familiares, grande parte destas mulheres guarda o melhor para a descendência.

Elas não o dizem. Esta realidade é descoberta através dos questionários, é neles que percebemos quais são os hábitos que levam a que a pessoa tenha ficado obesa, é através deles que intuímos as opções que elas fazem”, descreve Monteiro. E prossegue: “Os orçamentos das famílias não são elásticos e estas mulheres acabam por seguir o instinto de dar o melhor em primeiro lugar aos filhos e ficar com o que sobra para elas”.

Elas são quem mais procura consultas

Em Portugal, 22,3% da população é obesa, 34,8% é pré-obesa. Ou seja, no total, falamos de mais de cinco milhões de pessoas que estão a lidar com a doença, sendo que muitas vezes só chegam à esfera clínica após problemas decorrentes da obesidade e não pelo excesso de peso em si, e que é tantas vezes causador de outras patologias como o cancro.

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Apesar desta primeira linha de análise, o sexo feminino é, ainda assim, quem mais toma a dianteira. “A diferença de prevalência da doença por género é de apenas 4,2%, sendo mais frequente nas mulheres (24,3%). No entanto, elas representam 85% das consultas de obesidade e de tratamento cirúrgico”, refere Mariana P. Monteiro.

Para a médica, as explicações para esta disparidade são simples. “Tem a ver com fatores sociais, elas procuram mais cedo a consulta por causa, muitas vezes, do estigma da doença e pela imagem corporal. Num segundo plano, chegam já com consequências médicas e mecânicas da doença”, analisa a endocrinologista. “O primeiro contacto é pelo desconforto pessoal, o segundo surge por problemas médicos”, sintetiza.

Os homens, contrapõe a especialista, “contactam mais quando já desenvolveram complicações médicas da doença: diabetes, apneia do sono, doenças cardiovasculares. Até esse momento, eles são mais resistentes”.

Comparticipação de medicamentos: solução para baixos recursos

Mariana P. Monteiro não tem dúvidas: “A comparticipação para medicamentos contra a obesidade iria ajudar muito porque a população portuguesa é das que tem mais baixos recursos na Europa. O nosso rendimento per capita não é compatível com acesso a esses tratamentos.” E a contabilidade mensal é simples de fazer.

“O custo do medicamento – que tem o mesmo preço noutros países da Europa – pode ser irrisório. Por exemplo, no Reino Unido é equivalente a duas inscrições do ginásio. Mas cá não é assim”, refere a especialista, que fala em 200 euros mensais para um caso médio de obesidade grau 1”.

Falamos de um estádio da doença reversível que, uma vez acompanhada, traria poupanças a longo prazo nos sistemas de saúde. Porém, a aquisição de medicamentos não comparticipados custa, contas feitas, 35% de um ordenado mínimo nacional (580 euros em 2018). Falamos, portanto, de valores incomportáveis para muitas famílias portuguesas.

Obesidade: do útero às próximas gerações

“Há influência transgeracional”, que passa de geração em geração, postula a médica ouvida pelo Delas.pt. Mariana P. Monteiro clarifica que “uma criança que nasce de uma mãe obesa ou de uma que ganha peso excessivo durante a gravidez, dando à luz uma criança com mais de quatro quilos, aquele bebé tem mais risco de desenvolver obesidade na idade adulta e até antes, nos primeiros anos”.

A explicação, refere, é simples: “Essa influência vai ser exercida sobre as células germinativas: no ovário ou no testículo do feto. Este, por sua vez, vai passar essa herança às suas próximas gerações.

“Uma criança que nasce de uma mãe obesa ou de uma que ganha peso excessivo durante a gravidez, tem mais risco de desenvolver obesidade”

Mas, então, o que é um peso excessivo na gravidez? É tempo de esquecer as regras absolutas como a dos nove quilos (ganhos pela mãe durante a gestação), mas também há ordem para pôr fim à exposição de níveis de açúcar excessivos, por exemplo. “Há um livro da gravidez que tem o gráfico do aumento de peso, que faz depender o ganho consoante o peso inicial da mãe”, sublinha a endocrinologista.

Ora, existindo “curvas tais como as do crescimento do bebé (percentil), é preciso não escapar aos intervalos definidos”, refere a especialista e professora, pedindo que as “gravidezes sejam acompanhadas” para que “haja um desenvolvimento harmonioso da mãe e da criança”.

E agora, o que fazer?

Para a especialista, é tempo de “colocar urgentemente a obesidade no topo da intervenção em saúde porque ela está a ser a causa de uma série de complicações”.“Se diminuirmos as consequências, seremos mais eficazes e mais poupados”, acrescenta Maria P. Monteiro, na véspera de se assinalar o Dia Nacional e Europeu de Luta Contra a Obesidade, marcado para este sábado, 19 de maio.

Segundo dados avançados em comunicado pela presidente da SPEO, Paula Freitas, estima-se um custo direto com a doença na ordem dos “59 milhões de euros”, com “tratamentos, cirurgias e internamentos, para além dos custos indiretos relacionados com o absentismo laboral”.

Estando a obesidade associada a múltiplas patologias como o cancro, doenças respiratórias, cardiovasculares e diabetes, Carlos Oliveira, presidente da Associação de Obesos e Ex-Obesos de Portugal, fala em “680 milhões de euros”. Um valor que “o Estado gasta por ano a tratar de doenças associadas à obesidade. E não à obesidade diretamente“, citando um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública.

“Estima-se um custo direto com a doença na ordem dos ’59 milhões de euros'”, diz Paula Freitas, presidente SPEO

Valores à parte, Mariana P. Monteiro pede a criação “de uma norma orientativa”, uma “medida muito simples”. Porquê? Porque “as conversas entre médicos e utentes têm de começar pela perda de peso e não terminar com esse tema”.

A endocrinologista reclama ainda, para lá da necessidade de “ponderação de comparticipação dos medicamentos para o tratamento primário da obesidade”, a dotação das “ferramentas necessárias para todas as equipas clínicas” e pede que se “comece nos cuidados primários, como no enfermeiro de família, por exemplo”.

Imagem de destaque: Shutterstock

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