As personagens femininas já não vivem apenas para desfalecer nos braços de Romeus nem para suportar até ao fim as agruras de um problema social. Apesar de haver uma queixa que denuncia a vitimização da mulher na ficção nacional, os números trazem uma narrativa positiva. Mas há muitos episódios para pôr no ar…
Ainda os ponteiros vão longe das dez da noite de um dia de semana e já mais de dois milhões de portugueses – dois terços dos quais são mulheres – estão sentados no sofá a ver as duas novelas de prime time que são exibidas na SIC e na TVI. Por ali passam todos os dias histórias de mulheres e homens, raparigas e rapazes que sofrem de doenças, de violência doméstica e no namoro, de agressão, de violação, de perdas e angústias e de conquistas. Tramas em que o amor e o desamor se entretecem com os problemas do quotidiano, mas sobre as quais persiste a ideia de que as mulheres são as vítimas.
Numa altura em que a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género reporta uma queixa sobre a vitimização da mulher na ficção nacional – e que há de ser encaminhada para a Entidade Reguladora para Comunicação Social (ERC) – a presidente daquele órgão, Teresa Fragoso, pede à ficção nacional que “mostre mais relações de intimidade saudáveis e não apenas os problemas, as situações em que as mulheres são as coitadinhas, as vitimazinhas, o que também é desempoderador”.
Mas as maiores especialistas em novelas made in Portugal lembram que os papéis femininos têm sido cada vez mais amplos, mais ambiciosos e com respostas a problemas mais céleres. “Hoje, as personagens femininas estão mais poderosas e já não vivem tão dependentes dos seus Romeus. Eles não deixaram de existir nas histórias, mas já não é só por eles que elas lutam”, diz Gabriela
Sobral. A responsável pela ficção que se fez em Portugal nas últimas duas décadas, e com passagem pelos dois canais privados, garante que, “vinte anos depois, elas estão mais independentes e menos apaixonadas”. E “já não se espera pelo fim da novela para que a superação da mulher vítima chegue, isso agora acontece a meio da história”.“De uma maneira geral, as mulheres na ficção nacional têm vindo a estar mais fora de casa, em situações de trabalho, em lugares de direção, mostrando até os contratempos que uma direção feminina pode sofrer, fruto de uma sociedade patriarcal e masculina”, diz Isabel Ferin Cunha. A professora universitária e especialista em media e ficção nacional fala em evolução na intimidade feminina nas histórias da televisão. “A mulher está mais autónoma, escolhe parceiros e tem comportamentos que há vinte ou trinta anos seriam considerados masculinos.”
Maria João Costa, argumentista acabada de ganhar um Emmy para a melhor novela internacional com a trama Ouro Verde, na TVI, tem o dedo apontado a ela por levar o argumento mais além na nova história que assina para Queluz de Baixo. “Valor da Vida está cheia de mulheres fortes e já li inúmeros comentários que dizem que os homens são umas vítimas nesta novela, o que também não concordo”, diz a autora, que aborda a violência doméstica sob dois prismas: em contexto de relação heterossexual e homossexual. “Quero mostrar que tal não é um exclusivo de género.”
Talvez por isso as queixas sobre aquele tema em particular que chegam à ERC venham menos da ficção e mais da realidade, de outros quadrantes do entretenimento – um programa de Tarot e um reality show – e até da informação. Denúncias que dizem respeito ao “tratamento dado pelos órgãos de comunicação social ao tema” e que “não promovem a desconstrução do problema social”, responde fonte oficial do regulador.
“As histórias delas têm de ser escritas por mulheres porque elas contam-nas muito melhor”, diz Gabriela Sobral, responsável pela ficção que se fez em Portugal nos últimos vinte anos
Com mulheres de capa e espada – boas e más – a tomar de assalto as salas e as noites dos portugueses dentro de casa, a ideia da eterna vitimização feminina apenas persiste porque “a sociedade continua a olhar para elas assim, mesmo quando estão no poder, quando lideram”, justifica Gabriela Sobral. “A vitimização não se combate na novela, luta-se na sociedade e as mulheres estão mais ativas e manifestam-se”, insiste.
Isabel Ferin Cunha crê que a vida real pode mesmo mudar por ser batalhada no mundo ficcional, mas tem de haver mexidas: o problema não é a mensagem, é a forma. “A grande dificuldade da passagem de questões sociais numa novela está no ritmo, a narrativa portuguesa é muito cortada.” Por serem tão longas, uma personagem feminina que comece por falar de violência doméstica, rapidamente tem de lidar com um cancro, por exemplo, ou uma perda. “Aí, perde-se a violência doméstica, o cancro, tudo, devido à sobreposição de eventos.” Tudo para alimentar a fome de curiosidade de mais de um quinto da população nacional, num mercado que financeiramente não aguenta fazer séries incisivas e de curta duração e junto de um público em fuga para o cabo e para as plataformas de subscrição.
“Sim, as histórias têm de começar a ser mais curtas. Há imenso tempo que o digo, defendi-o enquanto estive na SIC”, diz Gabriela Sobral. Se ainda estivesse em funções, “falava do assédio sexual e moral das mulheres no local de trabalho e a questão de elas, no espaço laboral, não poderem ser mais poderosas do que os homens”. E de uma coisa tem a certeza: “As histórias delas têm de ser escritas por mulheres porque elas contam-nas muito melhor.”
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