
São cada vez mais sinalizados casos de mutilação genital feminina: só o ano passado foram detetados 254 casos da prática deste crime, um aumento de cerca de 14% face a 2023, mantendo-se a tendência crescente verificada desde 2021, revela um novo relatório da Direção-Geral da Saúde (DGS), a propósito do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, que se assinala esta quinta-feira.
As situações dizem respeito a mulheres que residem em Portugal, a grande maioria (70,9%) vítimas de excisões ainda em criança, até aos nove anos de idade. E a prática foi identificada quando tinham, em média, 30 anos. Continuam a ser principalmente realizados na Guiné-Bissau (65,4%) e na Guiné Conacri (26,4%), em linha com o predomínio destas comunidades imigrantes em Portugal e a prevalência estimada da prática nesses países, sublinha a DGS. Nenhum dos casos foi praticado em Portugal.
“Falamos de episódios passados, muitos de mulheres que já vieram para Portugal mutiladas, e de outras que em criança, mesmo nascidas cá, poderão ter ido visitar familiares onde aconteceu esse episódio, mas não são situações que estão a acontecer neste momento”, explica a presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).
Para Sandra Ribeiro, a subida dos registos é “sinónimo da maior capacitação” de médicos, enfermeiros e profissionais na área social, fruto das formações que têm sido promovidas nesta área. A maioria dos casos foram identificados em contexto hospitalar durante a gravidez, nomeadamente no parto (39%), no período pós-parto (17,7%) e em consultas de vigilância (11,8%). E, no total dos casos, em 86,2%, diz a DGS, os profissionais de saúde intervêm no esclarecimento sobre os direitos das mulheres.
A prática consiste na remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos. As mutilações mais comuns verificadas o ano passado são do tipo I, em que é removido totalmente ou parte do clítoris e/ou do prepúcio (55,1%). Houve também (40,9%) em que é removido total ou parcialmente o clítoris e os pequenos lábios, além de situações de tipo III (3,1%), em que é feito o estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, com ou sem excisão do clítoris. Foram ainda detetados casos do tipo IV (0,8%) que incluem todas estas práticas nefastas.
Melhorar saúde mental
A obrigatoriedade do registo pelas autoridades de saúde, “tem permitido aumentar a visibilidade do fenómeno”, sublinha Sandra Ribeiro. Os dados evidenciam isso mesmo: se em 2015 foram registados 59 casos, em 2019 registou-se um pico com 126 casos, e após a pandemia – com exceção de 2020 – tem vindo sempre a subir. Na última década, foram, assim, sinalizados 1290 casos de mutilação genital feminina.
De acordo com a DGS, foram registadas complicações em 130 mulheres, que são frequentemente coexistentes. A maior parte destas mulheres apresentaram complicações do foro psicológico (32,2%). Embora o avanço no conhecimento técnico seja “muito positivo”, a presidente da CIG reconhece “a necessidade de dar uma maior atenção ao apoio psicológico e à saúde mental das vítimas” deste fenómeno. “É preciso perceber como é que estas mulheres, depois de percebem que foram mutiladas, e que não há justificação para ter acontecido, reagem face à sua comunidade, como é que olham para as pessoas que, na verdade, são quem gostam e fazem parte das suas famílias. É uma área muito difícil , que precisa de um grande apoio e que esperamos muito em breve reforçar”, sublinha Sandra Ribeiro. Além de impactos psicológicos, as vítimas apresentaram complicações obstétricas (59), de resposta sexual (55) e sequelas uro-ginecológicas (55).
A responsável defende ainda que é preciso continuar a eliminar a prática junto da nova geração de mulheres. “Cada vez temos projetos mais robustos e pessoas, algumas delas até que já foram vítimas de mutilação, e que dão a sua voz e o seu ‘know-how’ para efetivamente tentar prevenir que a prática volte a acontecer”, afirmou Sandra Ribeiro. O trabalho com líderes religiosos tem sido outro ponto-chave na sensibilização dentro das comunidades afetadas.
“Temos de perceber que estes são fenómenos de violência e de violência de género, que se enquadra na lógica de desigualdades entre mulheres e homens, nos estereótipos e nas tradições patriarcais, machistas, onde estas mulheres são mutiladas. Muitas vezes elas próprias depois promovem a mutilação de filhas e de netas porque foram assim educadas e acreditam que é uma forma de pertencer à comunidade”, explica a presidente da CIG.
A mutilação genital feminina é considerada crime em Portugal desde 2015, aplicável também a atos preparatórios e a atos que tenham acontecido fora do território nacional, com penas de prisão que variam entre dois e dez anos. No entanto, a dificuldade em provar os crimes tem levado ao arquivamento de vários processos. Para a presidente da CIG, o principal impacto da lei “é o de inibir a prática dos atos” e fazer com mereça “uma censura pública”. Já o único caso de condenação em Portugal, que ocorreu em 2021, sobre uma mãe que permitiu o corte da filha de um ano e meio durante uma viagem ao estrangeiro, também ela mutilada, mostra como “muitas vezes é sobre as próprias vítimas que a lei vai incidir”.
Esta quinta-feira, a CIG vai promover uma conferência internacional, em Lisboa, para promover a troca de boas práticas. No contexto europeu, Portugal participou num projeto de prevenção, em conjunto com Grécia, Itália e Bélgica, “países que também têm comunidades [imigrantes] onde esta prática existe” para a formação de profissionais de saúde e redes de apoio às vítimas, cujos dados serão apresentados. “Em Portugal, formaram-se 472 pessoas, nomeadamente em cursos de mestrado de enfermagem, de instituições de apoio a vítimas de violência doméstica e das comissões de proteção de crianças e jovens. E também conseguimos que aderissem 132 mulheres imigrantes em ações de sensibilização”, adiantou Sandra Ribeiro. Já campanha de sensibilização, lançada o ano passado, com o mote “Não rasgue o futuro”, foi “tão bem sucedida” que se mantém, resumiu.