Na terra do triplo F quem manda é o feminino

32 mulheres e mais de 100 obras desafiam a trilogia Fado, Futebol e Fátima, na exposição coletiva “Na Terra do Triplo F – Formas e Figuração no Feminino”, patente até 15 de julho, na galeria Perve, em Lisboa.

Nomes relevantes da arte portuguesa e internacional como Ana Hatherly, Lourdes Castro, Vieira da Silva, Regina Frank, Salette Tavares, Rosa Ramalho ou Maryam Al Qassimi estão representados nesta mostra com curadoria de Carlos Cabral Nunes.

A exposição surge numa altura em que parecem estar de volta a os três Fs, que, culturalmente, foram uma das marcas do Estado Novo. A vinda do Papa a Fátima, no último 13 de maio, para assinalar a canonização dos três pastorinhos e o centenário das aparições, a vitória de Salvador Sobral na Eurovisão e o Benfica a conquistar o tetra campeonato são citados pelo curador como exemplos desse ressurgimento.


“A ideia foi pegar, justamente, nesse chavão, quase um estigma, sobre o país, esta terra, que vem do tempo da ditadura: o país dos três Fs”, explica em declarações ao Delas.pt.


A partir daí, as artistas, provenientes de diferentes países, apresentam uma nova trilogia: formas e figurações que refletem o olhar artístico feminino sobre o mundo e a contemporaneidade.

Como se conjugam essas perspetivas com uma leitura cultural tão nacional, marcada pelos três Fs? Carlos Cabral Nunes responde: “Fátima transforma o país quase no culto a uma mulher, a mulher santificada, mas ainda assim mulher – que é Maria. Pegando nisso achámos que era interessante reproduzir os três Fs de outra maneira e, lá está, o subtítulo é “Formas e Figuração no Feminino”. Ou seja, esta terra é, de facto, uma terra das formas e figuração no feminino. Depois, as autoras, com origens diversas, juntam-se nesta terra para celebrar outros três Fs.”

Portugal, Alemanha, Polónia, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Brasil, Emirados Árabes Unidos, Hungria e Itália são os países representados nesta mostra, organizada em seis núcleos e composta por pintura, desenho, colagem, escultura, instalação e fotografia.

Uma inspiração com mais de uma década
Na galeria é possível ver também uma aplicação com uma componente interativa feita para a exposição ‘Sulcos Roxos do Olhar’, organizada há mais de uma década, com artistas de Portugal, Moçambique e Brasil, e que serve de base à mostra atual.

“15 anos depois achámos que era interessante fazer uma mostra que pegasse nesse conceito do estado da arte no feminino, para refletir sobre a contemporaneidade. E numa mostra muito mais alargada, com 32 artistas, de mais países e também de mais gerações”, explica o curador.

Para isso procurou juntar ao trabalho de autoras atuais, outros que refletissem a maneira como a realidade foi sendo vista ao longo dos tempos, “da perspetiva da forma e da figuração no feminino”.

“Há algumas artistas que participaram naquela exposição e que estão novamente nesta e também diferentes níveis artísticos, desde a arte popular à arte conceptual e ao experimentalismo. A ideia foi de olhar, através da produção artística feminina, para o mundo.”

Caminhar para um futuro mais feminino
Além de oferecer ao público uma oportunidade rara de ver obras que dificilmente seriam reunidas numa única mostra, o objetivo é ver essa forma de observar a contemporaneidade nas diferentes gerações – “há artistas que se fossem vivas tinham mais de 90 anos e há artistas com 20”, exemplifica o galerista. A uni-las está, não apenas a abordagem artística das mulheres, em diversos períodos, como o seu próprio papel “enquanto ser interventivo e interventor.”

Papel, que na opinião do curador, deve ser cada vez mais reforçado: “Só através de uma educação que tenda a ser assente em determinados princípios que têm sido, ao longo dos séculos, princípios femininos é que a sociedade conseguirá evoluir de uma forma mais pacífica e mais sustentável. Penso que ganhará muito se conseguir fazer esta transição para um mundo mais liderado pela mulher do que pelo homem”.


Na mostra, há peças que fazem parte do acervo da galeria, outras que foram recolhidas ao longo do tempo e outras especialmente concebidas para a exposição.


Entre as que nunca foram mostradas, contam-se as de Ana Maria Pintora, Evelina Oliveira, Cristina Troufa ou Raquel Rocha. “Foram obras, nestes casos, feitas ao longo do tempo mas que nunca tinham sido mostradas no contexto da galeria, nem publicamente, e que nós decidimos reunir nesta exposição”, explica Carlos Cabral Nunes.

Também o trabalho de Maryam Al Qassimi, feito ao longo do tempo e entregue ao curador há um ano, pode ser visto pela primeira vez, através desta exposição (em baixo um dos seus quadros).

Carlos Cabral Nunes considera esta artista “paradigmática”, do ponto de vista feminino e também no contexto da realidade política e cultural atual.

Numa altura em que parece existir uma espécie de divisão “entre os que estão do lado do terror e os que estão do lado da liberdade”, como refere o curador, a artista vem lembrar que o mundo é mais complexo que isso, recusando essas linhas maniqueístas. Maryam Al Qassimi pertence à família real de Sharjah, um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos – países que apesar de abertos à cultura ocidental, mantêm um sistema político autocrático. A sua abordagem artística parece refletir essa aparente contradição.

“Ela faz parte daquela família real e partindo dessa realidade assume um discurso próprio e que até é de rutura com aquilo que é uma tradição do seu país e da sua cultura. Isso é muito interessante e de valorizar. É por aí que as sociedades se podem transformar, quando as pessoas mais novas assumem um papel transformador, neste caso, através da arte”, conclui o curador.

Na fotogaleria, em cima, pode ver algumas das obras que compõem a exposição e que pode ser visitada de segunda a sábado, entre as 14h e as 20h.