“Não faz o meu tipo”. Quantos argumentos negam uma alegada violação?

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Talvez tentando deitar por terra o velho argumento ‘do estava a pedi-las’, a editora E. Jean Carroll aceitou ser fotografada com uma roupa semelhante à que tinha usado 23 anos antes. O propósito? Retratar parte das circunstâncias que a levaram a ser alegadamente violada por Donald Trump, então milionário, hoje presidente dos Estados Unidos da América, num provador da loja de luxo Bergdorf Goodman.

Contou aquela editora, à revista New York Magazine, que a alegada violação teve lugar num contexto em que se apresentou de vestido preto, discreto, sem que isso fosse impeditivo do que denuncia agora.

 

Confrontado esta semana com esta acusação, o Chefe de Estado norte-americano desmentiu. E fê-lo com o recurso a um tipo argumento que já usou no passado recente: “Vou dizê-lo com muito respeito: número um, ela não faz o meu tipo; número dois, nunca aconteceu. Nunca aconteceu. De acordo?”, afirmou ao diário The Hill.

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Até pode acontecer que esse indivíduo não a tenha violado, mas isso não lhe dá o direito de a insultar. Já está a cometer num crime de injúrias contar outra pessoa”, refere Rui Abrunhosa Gonçalves. Para o professor da Universidade do Minho, psicólogo forense e com trabalho desenvolvido na área dos agressores, “este discurso enquadra-se num padrão associado a conotações socioculturais e machismo e que, de facto, diz muito de quem o produz. Uma coisa é dizermos que somos totalmente inocentes, outra é aproveitar a oportunidade de negar para agredir a alegada vítima”, refere o especialista.

Quanto às consequências para as vítimas, o professor lembra: “Nós, psicólogos forenses, detetamos que, por vezes, determinados factos que não parecem à partida juridicamente gravosos, podem ter impacto profundo na pessoa, tudo depende do grau de interiorização que a vítima faça do insulto.”

“Uma coisa é dizermos que somos totalmente inocentes, outra é aproveitar a oportunidade de negar para agredir a alegada vítima”, diz Rui Abrunhosa Gonçalves

É o argumento do macho latino”, atira a sexóloga Cristina Mira Santos. “É a forma usada para desculpabilizar comportamentos em termos culturais e sociais, demonstrando a superioridade do masculino sobre o feminino”, refere, considerando que estas retóricas “trazem perigos para o inconsciente coletivo” e que é importante “que estas ideias não se cristalizem”.

Frequentes? Talvez. Descendo para a América do Sul, o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, acabou de pedir desculpa, por determinação judicial, por uma frase infeliz que proferiu em 2003, muito antes de chegar ao Palácio do Planalto, em Brasília. Na altura, disse que a deputada Maria do Rosário, do Partido dos Trabalhadores, não merecia ser violada por ser “muito feia” e por “não fazer” o seu “tipo”.

Numa curta conversa com o Delas.pt, a psicóloga forense e com investigação feita em vitimologia Marlene Matos vinca que este tipo de argumentação revela um recuo na história e situa-o “nos anos 40”. E “parece estar de volta”, refere.

“Falamos de um argumento um pouco rebuscado, de dolo e da perpetuação da agressão”, acrescenta Rui Abrunhosa Gonçalves, falando em, “muitas vezes, distorções cognitivas”: “O agressor procura explicar, apaziguar uma acentuada angústia perante o talvez tenha feito e arranja múltiplas explicações”.

E o que fazem elas?

Mas nem só de homens se compõem os exemplos para justificações desta natureza. Em março deste ano, era revelada a sentença de um coletivo composto por três juizas italianas que, em 2016, ilibaram dois homens acusados de violação. A queixosa, uma peruana de 22 anos, saía sem razão do tribunal de primeira instância porque era (segundo os alegados agressores) “demasiado masculina” para ser motivo de atração. Havia uma fotografia anexa ao processo para provar isto mesmo. Uma decisão que acabou por ser notícia quando o Supremo Tribunal italiano revogou a sentença das instâncias anteriores.

“É como em alguns acórdãos em Portugal”, suspira Rui Abrunhosa Gonçalves. “Os magistrados têm de se limitar a aplicar a lei e a não fazer conotações, é importante que seja imparcial, que analise todos os elementos em presença no caso e aplique o que está escrito na lei”, pede o professor e especialista com trabalho desenvolvido junto de agressores.

“Esta é mais uma maneira do patriarcado manifestar o seu poder: dividir para reinar”

“Esta é mais uma maneira do patriarcado manifestar o seu poder: dividir para reinar”, diz Cristina Mira Santos. A sexóloga explica depois que “a ideia de que as as mulheres são más umas para as outras foi passando ao longo de séculos, há jovens que ainda não descobriram a multiplicidade dos relacionamentos, mas já sabem isto, são educadas nesta lógica. Isto vai permanecendo no inconsciente coletivo e só se agrava com este tipo de situações”.

Violação: pulsão sexual ou exercício de poder

Pode esta argumentação alterar a ordem de fatores relativos a uma violação e alterar a preponderância entre a pulsão sexual e o exercício de um poder no momento do abuso? “É sempre preciso avaliar essas duas vertentes quando estamos perante os dados”, vinca Rui Abrunhosa Gonçalves. Afinal, considera o psicólogo forense, “Tanto é possível ser um caso de exercício de poder e controlo – e a investigação refere-a frequentemente em contextos conjugais – como pode ser desejo sexual e atração propriamente dito, há combinações dos dois”, diz.

Frases como “estava a pedi-las” ou “não faz o meu tipo” são “igualmente graves e configuram dolo por parte do agressor”

Em reação à justificação de Trump, a jornalista Megan Garber referia, no jornal The Atlantic, que “o abuso sexual não tem nada a ver com atração sexual. Trata-se de força que uma pessoa exerce sobre outra”. Rui Abrunhosa Gonçalves esclarece: “Temos é de ser muito sérios na avaliação que fazemos”, pede. E lembra que frases como “estava a pedi-las” ou “não faz o meu tipo” são “igualmente graves e configuram dolo por parte do agressor”.

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