“Não me chamem africana quando querem dizer preta. Não suavizem o que sou”

Deu-se a conhecer em 2005 na série juvenil ‘Morangos com Açúcar’, da TVI, onde durante uma temporada vestiu a pele de Salomé. Tinha 21 anos e morava sozinha há dois, depois de ter vindo viver definitivamente para Portugal. Em 2012, esta angolana de gema estreou-se na realização com a curta-metragem ‘Encontro com o Criador’, da sua autoria. Hoje, aos 33, Ciomara Morais é mãe, mulher, realizadora, produtora, guionista. E, claro, atriz.

A partir de hoje, é possível vê-la em ‘A Ilha dos Cães’, o filme de Jorge António que se estreia nas salas de cinema. Ao Delas.pt, fala sobre esta longa-metragem, a última com Nicolau Breyner, mas essencialmente sobre as mulheres. As portuguesas e as angolanas, as negras e as brancas, as “independentes e emancipadas”, mas que podem também ser “princesas”, de papéis estereotipados, de sonhos. E de homens. Dos homens da sua vida, aqueles que a educaram.

‘A Ilha dos Cães’ estreia-se hoje. Fale-nos um pouco sobre a história deste filme.

É a história de duas Angolas: a colonial e a independente. Passa-se numa ilha, que os capitalistas querem destruir, e onde um grupo de moradores não vai deixar isso acontecer. Além disso, existe uma maldição, que já vem do tempo colonial, que são os cães. Supostamente, esses cães protegem a ilha.

E a sua personagem, a Lena, onde entra nessa história?

Ela é uma das habitantes da ilha. É uma mulher independente e emancipada. O ganha-pão dela é a exploração de um café-restaurante e tanto ela como o irmão têm um choque com as pessoas que chegam da cidade para darem cabo da nossa vida pacífica.

Ouvi dizer que ela vai ter um grande dilema…

É verdade (risos). O mauzão, que vai para a ilha para dar cabo dela, é o amor de infância dela, o Pedro Mbala (Miguel Hurst). A Lena vai ter de pesar o que é mais importante: ajudar o amor dela ou proteger a ilha que tanto ama.

Chamou a sua personagem de independente e emancipada. Identifica-se com ela?

Muito. Eu cresci com muitos homens.

Tal como o elenco do filme, que são quase só atores.

É a minha sina, estou rodeada de homens (risos). Eu fui criada só pelo meu pai e ao longo da vida aprendi a fazer de tudo. Sempre me ensinaram a trabalhar para ser independente, para não ser aquela mulher que se queixa por estar sozinha e ter de fazer tudo. Não! Sou aquela mulher que, se estiver sozinha, nunca vou passar fome, dormir na rua…

Claro que, tendo um homem ao meu lado, tenho de ser a princesa dela. Caso contrário não quero! Ele tem de me mimar: abrir-me a porta, dar-me flores, levar-me a jantar fora…

Foi isso que o seu pai fez consigo?

Eu fui educada assim, sim. Até hoje, o meu pai leva-me a jantar fora uma vez por mês. Eu tenho marido, tenho filho, mas quando ele está em Portugal, vai a minha casa cozinhar.

O seu marido também agradece (risos).

Agradece, mas ele também faz tudo. É muito importante, cada vez mais, as mulheres terem controlo sobre as suas escolhas e isso só acontece se tivermos poder financeiro. E este só se consegue trabalhando.

Dito assim parece fácil.

Eu sei que não é. O mundo ainda é muito machista.

Sente isso?

Comecei a sentir mais depois de ter sido mãe. Para os homens com quem cresci, o meu pai e os meus irmãos, é normal abrirem-me a porta do carro ou irem-me buscar uma bebida se estivermos num bar. Isso não lhes faz confusão, nem há aquela coisa da bebida de mulher e de homem. Quando engravidei e comecei a passar mais tempo com outras mulheres, percebi que a vida delas ainda é muito dura, em particular em Portugal.

Porquê?

Porque os homens não ajudam. Exigem que sejamos mais perfeitas, mas não nos dão condições para isso. Exigem que uma mãe amamente até aos seis meses, mas aos quatro já tem de ir trabalhar. A partir do momento em que as mulheres são fonte de rendimento, as tarefas em casa têm de ser partilhadas e em Portugal, com a maior parte dos casais, isso ainda não acontece. Eu não tinha essa noção.

Por a sua realidade ser outra?

Exato. Foi um choque para mim perceber que a maior parte das mulheres, neste país, não partilham esta realidade.

O seu marido é português?

É luso-angolano, mas cresceu na Holanda. Temos uma mistura de culturas, mas no que diz respeito aos homens trabalharem dentro e fora de casa, temos a mesma realidade.

Conheço um homem que, para não lavar a loiça, partiu os pratos. Se fosse comigo, ele tinha comido os cacos. Era o mínimo. Mas digo-lhe: a culpa é nossa. São as mulheres que educam os homens assim.

O seu filho ainda só tem meses, mas vai educá-lo como o seu pai a educou?

E como os meus irmãos me educaram, sim.

Quantos irmãos tem?

Muitos. São muitos (risos). Fiquemos por aqui. Posso dizer que o mais velho tem 42 anos e o mais novo tem 7. Eles puxaram por mim para eu ser independente, mas sempre me trataram como uma princesa. Isso ajuda à forma como eu encaro a vida.

Reflete-se também no seu trabalho?

Muito. Sou uma pessoa mais segura. Quando crescemos com mulheres, sentimo-nos inseguras. Só com homens, e quando somos a única, eles fazem-nos sentir que somos as maiores. Eu posso acordar descabelada e cheia de remelas, que sinto-me sempre a mulher mais linda do mundo. Ainda agora, eu engordei [por causa da gravidez] e eles gostam de me ver. Dizem que pareço a Beyoncé (risos). Mas cá [na rua, em Portugal] já me chamam gorda, dizem que tenho de emagrecer e voltar a estar em forma. É uma pressão que não tenho dentro de casa.

É uma questão cultural?

Muito. Mas também é uma questão que afeta muito as mulheres. Por isso é que há tantas mulheres com depressão, a não quererem repetir a experiência da maternidade. Não é por não quererem ser mães, mas sim porque ser mãe e ser mulher é muito duro. A expectativa que se cria da mulher que é mãe, profissional, que consegue fazer tudo, é irreal. Para isso, tem de ter um batalhão atrás dela.

Isso é um contra senso, ou não? Fala das mulheres lutarem para ser independentes, quando afinal dependem de outros.

Porque estamos muito presas a projetar uma imagem de perfeição que não existe. Que é mentira. Quando o meu filho tinha dois meses, diziam-me “estás gorda”. Eu não estou gorda. Eu estou normal.

Demorei 40 semanas e 4 dias a engordar, por isso não estou à espera de, em dois meses, perder tudo o que engordei. Sem contar que os meus órgãos internos têm de voltar ao sítio de uma forma natural.

Diz que só desde que é mãe é que ficou a par desta realidade?

Só. A minha vida é uma maravilha. O meu marido limpa, cozinha, trabalha. Faz tudo. O meu pai e os meus irmãos a mesma coisa. Eu comecei a viver sozinha aos 19 anos. Tenho 33. Eu não sei mudar uma lâmpada, não sei fazer bricolage…

Então mas se os homens têm de saber fazer tudo, as mulheres também!

Mas eu não sei porque eles, os homens que me rodeiam, nunca me exigiram. Eu não cresci com o padrão de mulher perfeita. Eu não sou perfeita, nem tenho de estar à altura das expectativas de toda a gente. Eu sei fazer muita coisa, mas acima de tudo gosto de ser mulher. Aqui, em Portugal, acho que isso se está a perder por se exigir que elas sejam também homens. Eu não quero ser homem, quero é ter os meus direitos preservados enquanto mulher.

Ter andado a vida entre Portugal e Angola obrigou-a a dinâmicas familiares distintas?

Claramente. O que aprendi desde pequena é que há comportamentos que só posso ter com a minha família negra angolana, outros com a branca europeia, e ainda outros com a negra europeia e com a branca angolana. As dinâmicas são muito diferentes. E repare que digo angolana e não africana. Eu só sou africana porque nasci em África, não por ser preta ou negra. Há africanos loiros e de olhos azuis.

Sente que as pessoas têm medo de chamar as coisas pelos nomes?

Têm, têm. Mas não é racismo. É o facto de quererem que o outro não se sinta discriminado. Não me chamem africana quando querem dizer preta. Não há necessidade de suavizar. Não há nada de errado comigo. Não suavizem o que eu sou, que eu sinto-me linda e maravilhosa nesta pele. Chamam-me à vontade preta ou negra e não africana só por eu ser escura. Eu tenho espelhos.

Há quatro anos disse que estava cansada de ser chamada a fazer papéis estereotipados, como de empregada doméstica. Passado este tempo, sente que algo evoluiu?

Ultimamente, tenho feito mais cinema e teatro e nestes existem personagens, não existem cores. É algo que tende a mudar e já não me preocupa.

Na altura preocupava-a?

Sim, porque eu pensava que ia ter filhos e que eles iam nascer e crescer aqui. Depois, acabei por perceber que, dentro deste meio, há vários grupos e eu não tenho de me sujeitar a um deles por a maioria ter decidido que aquilo é o correto ou é o que fica bem.

Se eu não estou satisfeita com o que existe, então tenho de criar uma realidade alternativa e foi o que fiz.

Montou a sua própria produtora.

Exato. Entretanto, fui mãe e parei um pouco, mas já não é uma coisa que me preocupe. Se bem que o meu receio era pelo meu filho. Eu estou bem e estou resolvida. Sei de onde venho e para onde quero ir. Sei que cá sou portuguesa e em Angola sou angolana. Ponto.

Voltando atrás, diz que em cinema e teatro não há cores. Em TV há?

Agora menos. Já há realizadores e atores pretos. É algo que está a mudar. Lentamente, mas a mudar. Já nem é necessário discutir.

O passado comum, a ditadura, o colonialismo: ainda são efeitos dessa época?

Já Agostinho Neto dizia que o Homem não se faz em anos, mas em séculos. O nosso passado é muito recente e ainda vai levar tempo a que as feridas, dos dois lados, sarem. Daqui a uns 30 ou 40 anos vai ser apenas História.

Diz que sabe de onde vem e para onde quer ir. Que lugar é esse que quer?

Eu quero o mundo!

Isso todas as pessoas querem (risos).

Ah! Mas eu sei o mundo que quero!

E que mundo é esse?

Quero crescer mais na minha área, quero produzir mais, quero escrever mais.

Quero realizar o meu primeiro filme daqui a dez anos, o filme que vai ganhar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Falo a sério quando o digo.

Foi uma coisa que sempre quis?

Não. Eu vim parar a esta área por acaso. Comecei a fazer trabalhos de modelo porque queria dinheiro para pagar os meus estudos. Apenas isso. Aliás, eu nem sou pessoa que faça por se adaptar ou integrar. Tenho uma maneira de estar muito própria e ou gostam ou não gostam. E há certas áreas nas quais, para se vingar, temos de ter uma personalidade mais maleável, e eu não a tenho.

É verdade que teve de fazer terapia para melhorar esse seu lado?

Sim… Eu estou no meu mundo, no meu canto. Se vierem ter comigo, eu não vou rejeitar ninguém. Mas não tomo a iniciativa de ir ter com as pessoas e, neste meio, 10 por cento é talento e os outros 90 é fazer contactos. E eu sou péssima nisso. Por isso fui estudar sobre como criar fontes de rendimento sem ter de ser simpática (risos). Dá uma trabalheira desgraçada ser simpática, não sei como é que as pessoas conseguem (risos). A verdade é que quanto mais empática eu for, mais depressa um produtor ou realizador se lembra de mim.

Quando diz que foi estudar, refere-se à realização. Olhando para o futuro, vê-se a passar definitivamente para o lado de lá da câmara?

Vejo. Eu já percebi que tudo aquilo a que me proponho fazer, eu consigo. Aos poucos, eu vou fazendo as minhas coisas. Vou deixando andar, sem stresse, “leve, leve”, como se diz em Moçambique.

Há quem, mesmo tendo todas as capacidades, não possa deixar andar…

Por questões financeiras? Eu, se tiver de ir limpar escadas, vou. Quando eu fiz os Morangos [com Açúcar], uma das minhas irmãs estava a estudar e trabalhava nas limpezas e eu às vezes ia com ela. Eu só quero ser boa profissionalmente e deixar o meu trabalho falar por mim. Se para chegar onde quero, tiver de servir cafés, ou ir para a caixa de um supermercado, eu vou. Faço o que for preciso, desde que de forma honesta.