“Não sou politicamente correto”, diz Nuno Baltazar

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Nuno Baltazar na ModaLisboa [Fotografia: Rita Chantre / Global Imagens] (Rita Chantre / Global Imagens)

Várias foram as inovações que o criador de moda de autor trouxe à coleção de outono/inverno apresentada na Moda Lisboa no domingo, 12 de março. A começar pelo som, o desfile começou com a simulação de uma procissão, ao som da oração Avé Maria, em que a única luz que se via era a das velas iluminadas, seguradas pelos vários modelos que iam passando em fila. Outro elemento que não passou despercebido foram os terços que vinham nas mãos dos modelos e cravados nos vestidos, a par das bolas de discoteca que foram apresentadas ainda antes de o desfile ter início. Também a maquilhagem se fez notar por ser fora do comum: lágrimas falsas. A inspiração partiu das santas de roca, que são bonecas preparadas para as procissões e que são sempre maquilhadas desta forma.

No que diz respeito às peças, houve uma enorme aposta em transparências, em que vestidos e acolchoados virados do avesso alternavam em tons de preto e em padrões leopardo. Por último, um aspeto que também saltou à vista e que marcou o desfile foi o vocemail entre uma avó religiosa e um neto queer que “abraçavam” as suas diferenças.

Coleção outono/invero 22/23 de Nuno Baltazar na ModaLisboa [Fotografia: Rita Chantre / Global Imagens]
Coleção outono/invero 22/23 de Nuno Baltazar na ModaLisboa [Fotografia: Rita Chantre / Global Imagens]
(Rita Chantre / Global Imagens)
À margem da apresentação da coleção, Nuno Baltazar deu detalhes da nova coleção, revelou a sua intenção de dar visibilidade à comunidade queer e mostrou como a religião pode ser compatível com ela.

Como é que descreve esta coleção?

Descrevo esta coleção com um nome que é Transverse e a ideia de dois universos aparentemente paralelos: este aspeto religioso da procissão, da fé e depois o universo queer performativo, livre e a ligação entre eles. Foi criar essa linha transversal que, na verdade, se traduz trabalhando elementos destes dois universos como vestir a roupa do avesso, mostrando o interior que é tantas vezes mais divertido, aquilo que guardamos para nós e aquelas medalhas que as senhoras normalmente põem junto aos soutiens. No entanto, os focos são em leopardo e, portanto, há esse lado em que nós somos muito mais do que que aquela primeira camada que aparentamos. Depois, há ali um momento de fé ou de performance, porque para mim é uma performance. Também temos o diálogo da imagem das santas de Roca, por exemplo. A maquilhagem sofredora que as santas têm com lágrimas falsas numa proposta leve, queer, divertida, livre. Por fim, temos esta avó que abraça o neto na sua diversidade com muito amor. Esta coleção para mim era um abraço.

A sua intenção com o cruzamento de elementos religiosos e queer era quebrar preconceitos ou ir mais para além disso?

Várias coisas. As coleções têm isso de fantástico. Até aqui era minha e, a partir daqui tudo o que possa ter a mais são as pessoas que vão acrescentar nas suas interpretações ao verem coisas que não vi. Sem dúvida que o que queria era criar um abraço entre estes dois universos. Não tenho essa certeza, porque estou de fora e é uma coisa muito pessoal, mas não queria que houvesse um clash [choque, em tradução literal], procurava é que os universos se unissem. Acho que o mood do desfile era positivo e todas as comunidades têm direito à sua fé e a praticá-la, sobretudo a católica. Há muitas pessoas da comunidade queer que são católicas. São realidades que, apesar de não serem, são antagónicas porque a porta está fechada. O que fiz foi abri-la.

O desfile arrancou com a simulação de uma procissão e um dos elementos apresentados antes deste começar foram bolas de espelhos. Não considera que são realidades opostas e que esta apresentação pode ser interpretada como uma provocação?

São ambos locais de culto e de espiritualidade, mas também é uma provocação. Esse lado é o lado católico, pesado, em que a religiosidade e a fé têm de ser exercidas de uma determina maneira. Contudo, um homem e uma mulher podem estar numa discoteca a dançar e estar num momento espiritual.

Coleção outono/invero 22/23 de Nuno Baltazar na ModaLisboa [Fotografia: Rita Chantre / Global Imagens]
Coleção outono/invero 22/23 de Nuno Baltazar na ModaLisboa [Fotografia: Rita Chantre / Global Imagens]
Voltando à história da avó, uma vez que esta coleção resulta do cruzamento de diferentes personagens reais ou imaginárias, a história é real ou fictícia?

Acho que é real, mas não sei. Quero acreditar que sim. Estas duas pessoas não se conhecem. A avó desta coleção é a avó do Luís Globo, que fez a banda sonora maravilhosa, e a voz do rapaz é o Michael, que estava vestido de Nossa Senhora das Dores e foi o último a desfilar. Não se conhecem, mas tenho a certeza que se se conhecerem, vão abraçar-se, porque as avós têm esse poder – elas abraçam mesmo. Muitas vezes vemos pais a rejeitarem filhos e filhas porque não escondem aquilo que lhes é esperado e as avós abraçam. Creio que ainda há muitas avós como esta tão especial.

Principais desafios que sentiu durante a produção e criação desta coleção?

Trabalhar com uma paleta de cores tão reduzida, porque habitualmente trabalho com muita cor e mais contraste. Trabalhar outros corpos também foi uma dificuldade sentida porque é diferente a forma como se trabalha e sinto que preciso de aprender mais para fazer melhor. A coleção parte também de uma inspiração em Lobo e Cão, o filme da Cláudia Varejão, que também aborda estas temáticas numa comunidade queer em São Miguel e na forma como se relaciona com a religiosidade. Nesse seguimento, surgiu a dificuldade de perceber como é que crio uma narrativa que efetivamente cruze mas sem desvirtuar o meu trabalho, isto é, trabalhar na minha coleção abrindo-a a outros corpos performativos, tornando-a mais aberta.

Que balanço é que faz desta edição?

Primeiro, a reação do Michael, este convidado no final do desfile. A forma como me abraçou e agradeceu o espaço que abri para que ele e toda a sua comunidade se sentissem representadas aqui também. Só isso é um balanço incrível. Depois, uma amiga que veio com a filha para ver o desfile e que percebeu bem a ideia. Neste caso, trata-se de abrir espaço para que ela explicasse à filha e iniciasse um diálogo. Só por estes dois fatores, já valeu a pena.

Referiu em entrevista recente que acha que já devia ter ido para fora há mais tempo. Tem pretensão de internacionalizar a marca? Se sim, já pensou em formas de o fazer?

Sim e não, no sentido em que nunca tive essa oportunidade no Portugal Fashion, que é a organização que cuida de criadores portugueses para o estrangeiro. Da minha parte, aquilo que tenho de fazer é um bom trabalho. Se quem toma estas decisões não vê, tem de lhe perguntar a eles.

Por que não surgiu essa oportunidade?

Não sei… se calhar porque não entrei em caixinhas.

O que é que quer dizer com isso?

Não sou politicamente correto. Digo o que tenho de dizer e critico o que tenho de criticar. Sempre foi assim e cada vez vai ser pior, porque estou mais velho e vou perdendo o pudor.

E em Portugal, tem em vista alguma parceria? Quais são os seus próximos planos?

Nesta coleção, por exemplo, tínhamos uma parceria com a Duffy – uma marca portuguesa com muitos anos – que faz blusões de penas. Portanto, todos aqueles acolchoados que se viram no desfile foram uma cápsula que devolvemos com a marca.

Qual foi o propósito dessa parceria?

Desenvolver novas tipologias de produto da marca, fazendo-a dialogar com outras. Abrir caminhos era um grande objetivo deste trabalho em vários sentidos.

Como, por exemplo, quais?

Já dei exemplos, a comunidade queer e religiosa. Era nesse sentido que estava a falar.