“Venceremos pela qualidade e variedade dos nossos vinhos”

Maria João de Almeida, jornalista, crítica, provadora e formadora na área dos vinhos, já era um caso raro num país onde praticamente não há mulheres a escrever sobre o assunto. Em 2014, lançou o ‘Guia de Enoturismo em Portugal’ (Zest Books), o roteiro que faltava a quem faz do vinho um motivo para descobrir o melhor do país. Em maio último, o seu livro foi eleito o melhor do mundo na categoria de enoturismo, na cerimónia anual dos Gourmand Cookbook Awards, que decorreu na China.

O que lhe trouxe o prémio de melhor livro de enoturismo do mundo?
Surgem sempre oportunidades neste tipo de prémios. Recebi um convite para fazer viagens de enoturismo, uma proposta de tradução do guia para mandarim, a ideia para um novo livro, dentro do tema do enoturismo, a lançar no próximo ano. A editora decidiu apostar também na nova edição do guia. Além disso, há um grupo de distribuidores portugueses que quer que eu comece a fazer masterclasses na China. Basicamente vou andar por lá a difundir o vinho português.

Portugal é um bom destino de enoturismo?
A maioria dos sítios ainda não funciona como desejaríamos – ainda encontramos muitos com uma placa a dizer “volto já” –, mas aqueles que estão no livro têm alguma garantia de qualidade, de dinâmica. E quando falamos de qualidade e de saber receber, Portugal não fica atrás de nenhum outro país. E temos uma coisa que o público aprecia: a vertente familiar está muito vincada. Resumindo, somos um país privilegiado. E isto não é bairrismo, não vou dizer que temos o melhor vinho do mundo – temos um vinho diferenciado, e uma grande vantagem que é a variedade de castas. Nunca venceremos pela quantidade, mas sim pela qualidade e variedade dos nossos vinhos. E conseguimos tê-las dos mais baratinhos aos mais caros. Provo muitos vinhos a nível internacional, sou júri no Concours Mondial de Bruxelles, e os vinhos portugueses não se têm saído mal. Este ano, tive uma grande surpresa: houve vinhos algarvios que ficaram otimamente classificados, há uns anos não se poderia dizer o mesmo.

O que faz um bom enoturismo?
O conceito, oficialmente, não existe – apenas uma carta de boa vontade da União Europeia que definiu determinadas regras. Logo aí, vi-me um bocado perdida, tive de encontrar o meu próprio enquadramento. Mais do que luxo ou atividades, o mais importante é que o produtor saiba receber bem. É o essencial neste livro. Há produtores de referência que não estão mencionados porque não têm enoturismo aberto. Por outro lado, temos adegas pequeninas que nos recebem como se fôssemos família. Depois, há complementos: os melhores são aqueles que, além de receber bem, têm boas instalações, pessoas disponíveis para falar outras línguas, atividades para toda a família.

O público nacional está mais interessado no enoturismo?
O interesse tem vindo a crescer. Como com o vinho: era mais elitista, agora globalizou-se. Ainda não há aquela procura que gostaríamos, mas está a crescer de forma sustentada. Desde que fiz o livro, já apareceram três ou quatro novidades. Se os produtores estão a investir, é bom sinal. Podemos ver até pelos wine bars que temos pela cidade [Lisboa]. No outro dia fui ao Bairro Alto e fiquei admirada com a quantidade de wine bars que lá há – e não são bares mixurucas, têm boas cartas, vinhos de topo a copo, coisa impensável há uns anos.

Quando prova um vinho consegue perceber se ele é português?
Já aconteceu. Somos cinco pessoas por mesa – produtores, enólogos, jornalistas –, de nacionalidades diferentes. Numa ocasião, senti claramente que estava a provar Alvarinhos. Os meus colegas de mesa diziam que não podia ser. Acontece que sim: era Alvarinho. Mas já me aconteceu provar um vinho e dizer, “Isto só pode ser Touriga Nacional do Dão, porque só o Dão tem este floral”. Afinal eram vinhos húngaros. É uma coisa que acontece frequentemente.

A crítica de vinhos continua a ser um mundo muito masculino?
Continua, embora, a nível geral, se falarmos do mundo do vinho – produtoras, enólogas, comerciais –, já existem muitas mulheres a trabalhar na área. A nível de crítica, quando comecei, em 1996, costumo dizer a brincar que era eu e os gajos. Entretanto, já quase falo de futebol, houve uma adaptação. Nunca me senti mal entre os homens, mas ao princípio pensava, “então, não há nenhuma mulher?”. Hoje já me habituei. Apesar de já termos mais uma ou outra mulher que, de vez em quando, escreve sobre vinhos, a situação está [mais ou menos na mesma]. Não sei dar uma explicação para isso.

Há uma forma feminina de provar o vinho?
De alguma forma, ligamos mais à descoberta dos aromas, do paladar. Durante anos, as mulheres estavam em casa, tratavam das compras, escolhiam os melhores legumes, as melhores frutas, as melhores carnes. Os aromas e paladares estavam mais concentrados nas mulheres do que nos homens. Acho que isso ajudou, de certa forma, a adquirir essa caraterística, que pode ser uma vantagem. Não quero dizer que sejamos melhores. Se eu disser a uma amiga minha um recado para ela dizer a alguém, sei que ele vai chegar inteiro. Se eu disser o mesmo recado a um homem, ele vai resumi-lo em três palavras. Por vezes, gosto mais de falar com mulheres produtoras ou enólogas, porque explicam-se de uma forma mais clara. Gosto imenso de trabalhar com mulheres. Aguentam coisas que os homens, se calhar, não conseguem aguentar. Já vi uma enóloga trabalhar com 39,5 de febre e nunca vi um homem a trabalhar com 39,5 de febre – seja em que área for. Há uma capacidade de trabalho que é desvalorizada. Numa área predominantemente masculina, uma mulher tem de trabalhar três vezes mais para mostrar aquilo que vale, tem sempre de provar mais alguma coisa. E isso ainda se nota. Não há discriminação patente, mas é preciso lutar para conseguir um lugar ao Sol. É uma coisa comum, já há muitas mulheres em áreas masculinas, mas continua a ser injusto – em todas as áreas masculinas, não falo só do vinho.

Por outro lado, há uma forma feminina de escrever sobre o vinho?
Se calhar mais sensível e ligeiramente mais aprofundada. Ao tomarmos noção de alguns pormenores, se calhar lembramo-nos de escrever algumas coisas – detalhes da história, curiosidades – que podem escapar à sensibilidade masculina. Mas isto depende das pessoas, porque há homens que escrevem maravilhosamente, e também dão conta dos pormenores.