Ninguém merece morrer

O dia 16 de setembro ficou marcado pela notícia de que mais um forcado tinha morrido na sequência de uma pega de touros. Mais um, sim. No dia 6 do mesmo mês tinha falecido, em circunstâncias semelhantes, Pedro Primo. O Fernando Quintela, o segundo forcado a perder a vida em setembro, tinha 26 anos, era Engenheiro Agrónomo e trabalhava na Associação de integração para pessoas com deficiência Bipp. Não merecia morrer. Esta parte sei porque o conheci – não tinha o seu número telefone nem me lembro da última vez que nos cruzamos, mas sei que partiu cedo demais e deixou muita saudade entre os que lhe eram chegados.

O pequeno perfil que traço do Fernando não é aleatório. Está feito para lembrar o que muita gente nas redes sociais parece ter esquecido, ou não saber, talvez nem sequer querer saber: uma pessoa nunca é só uma única coisa, nunca o é sozinha, nunca vive sozinha – tem sempre uma família, amigos, talvez até amigos que não concordam com todos os aspetos da vida dessa pessoa mas ainda assim conseguem manter a amizade e o respeito. Estes factos, no entanto, parecem não ter qualquer relevância para quem mostra acreditar que ser forcado é motivo único e suficiente para que se mereça morrer. Há quem o escreva assim, sem qualquer pudor, em páginas de Facebook ou em caixas de comentários de jornais.

Vamos deixar uma coisa bem clara: esta discussão não é sobre as touradas! Esta discussão é sobre a morte e sobre como se perdeu o limite perante a morte. Morreu uma pessoa e nenhum ser humano tem o direito de dizer que outro merece morrer, por muitas escolhas erradas que essa pessoa possa ter feito na vida. Se fosse legítimo, razoável e aceitável, andar por aí a dizer quem devia viver e quem devia morrer, não seria difícil chegarmos a um extremo em que os assassinos se poderiam defender em tribunal dizendo que mataram alguém porque essa pessoa merecia e passaria a ser um argumento a levar em conta.

A tese de que alguém se expôs à morte e, portanto, estava a pedir este desfecho também não é válida. Todos nós nos pomos em situações de risco, basta entrar num carro com sono, fazer uma viagem debaixo de um temporal, fazer viagens para cidades em risco máximo de terrorismo, atravessar a rua com o sinal dos peões vermelho ou andar por ruas desertas sem qualquer tipo de segurança durante a noite. Todos nós já pusemos a vida em risco e não é por isso que queremos morrer e nos devemos tornar alvo de falatório se alguma coisa correr mal.

É importante ter noção que as palavras têm força, que os crimes de ódio são movidos por discursos inflamados que apresentam a morte como uma solução para a evolução da sociedade (podemos falar Hitler ou do ISIS na Europa, é só escolher). É preciso perceber que apesar de existir liberdade e que toda a gente pode exprimir o que pensa, não quer isso dizer que se perca o limite do razoável, do bom senso ou da bondade. A morte de alguém é sempre uma fatalidade para alguém e todos sabemos (ou devíamos saber) que se alguém pensa que pode e deve decidir quem vive e quem morre é alguém com quem se deve ter cuidado. Podemos condenar escolhas, estilos de vida e decisões, mas não devemos usar a morte como um pretexto para o fazer. A morte é um momento de luto, tristeza e recato que deve ser respeitado.

Então o que nos leva a achar que podemos dizer que a morte de alguém foi merecida, que foi um castigo bem dado? Bem sei que opinar sobre o falecimento de alguém, não é a mesma coisa que desejar a morte a alguém, mas ficar feliz publicamente, manifestar agrado pela tragédia e expressá-lo ao mundo sem pensar no respeito pela dignidade humana é o quê? “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.” Este é o primeiro princípio da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e também se aplica depois da morte.

Por muito protegidos que estejamos, escondidos atrás de um perfil de Facebook e por muita liberdade que tenha o país onde vivemos, o limite do razoável não se deve perder. Por isso volto a repetir, ninguém merece morrer! Os homossexuais não devem morrer por gostarem de pessoas do mesmo sexo, as prostitutas não devem morrer porque vendem o corpo, os negros não devem morrer por não serem brancos, os assassinos não devem morrer porque mataram (esta é controversa, mas a verdade é que ao decidir matar também nos tornamos em assassinos), os muçulmanos não devem morrer porque acreditam em Alá, os que não acreditam em Alá não devem morrer por serem infiéis, os comunistas não merecem morrer por acreditarem numa sociedade sem classes, a direita não merece morrer por acreditar no poder das elites. Os forcados não merecem morrer porque participam em touradas.