No meu corpo mando eu

Quem me conhece ou costuma ler estas crónicas calculará que não poderia deixar de falar das recentes propostas de alteração à Lei do Aborto que vão alastrando pelos Estados Unidos da América de forma alarmante para todos nós. E não estou a falar somente para as mulheres – embora neste caso, evidentemente, nós sejamos as principais visadas – mas, repito, para todos nós como seres humanos.

O assunto está na ordem do dia desde que o Alabama votou a criminalização do aborto em qualquer fase da gravidez, inclusivamente em casos de violação e incesto, abrindo unicamente exceção no caso de haver sério risco de saúde para a mãe ou uma “anomalia fatal” no feto. A mesma proposta contempla uma pena de prisão até 99 anos para os médicos que executem o procedimento, pena que excede em muito a pena máxima estipulada para um violador no mesmo Estado ( a pena máxima para uma violação em segundo grau no Alabama é de 20 anos ). A lei foi aprovada por 25 senadores, todos eles homens brancos republicanos.

Para além do Alabama, vários outros estados, entre os quais o Mississípi, o Kentucky e o Ohio, já aprovaram também a proibição da interrupção voluntária da gravidez a partir do momento em que o feto tenha batimento cardíaco (que acontece por volta das 6 semanas).

Quando há dois anos começámos a ver o ‘Handmaid’s Tale’ como uma distopia assustadora, estávamos longe de adivinhar o quão próxima estava a autora do mundo em que vivemos.

Surpreendentemente os ditos movimentos “pró vida” contam com o apoio de inúmeras mulheres que certamente não perceberam que o que está a acontecer é um retrocesso civilizacional e que a sociedade se prepara para nos atirar novamente para a fogueira, sem dó nem piedade. Estão a empurrar-nos violentamente para dentro dos portões de Gileade, a república totalitária inventada por Margaret Atwood. E isso não podemos permitir.

O assunto é tão grave que nem sei bem por onde começar. Embora se trate de uma questão de bom senso tão simples que me custa até o facto de termos de estar a discuti-la em pleno século XXI.

Gostaria, antes de mais, de falar diretamente aos apoiantes dos ditos movimentos “pró vida” (e eles não existem só nos E.U.A.) e esclarecê-los sobre uma questão básica: o facto de o aborto ser legal não obriga ninguém a fazê-lo nem sequer faz crescer, na prática, o número de interrupções voluntárias da gravidez (antes pelo contrário). Garante, isso sim, a liberdade de escolha às mulheres e é uma questão de saúde pública. Eu percebo perfeitamente que haja mulheres que não põem a possibilidade de abortar, sei também o quão traumatizante pode ser a experiência e tenho a certeza que não é uma decisão que se tome de ânimo leve. Agradeço por isso que se respeite as mulheres que a tomam ou põem a hipótese de a tomar. Tal como eu respeito quem afirma que nunca o faria.

Nem o Estado, nem a Igreja, nem nenhuma instituição, nem ninguém tem o direito de legislar sobre o meu corpo. No meu corpo, mando eu. É simples e claro. Andámos séculos a lutar para ir à escola, para sair do país sem autorização de um homem, para votar, para ter voz, para ter propriedade, para ter espaço, para usar minissaia, para usar calças, para tomar decisões, para vivermos a nossa sexualidade em pleno e sem tabus, para termos acesso a cargos de chefia, para nos divorciarmos, para nos assumirmos como somos e para nos expressarmos pelo que somos. Para sermos livres. Séculos. Sendo que sabemos todos, e não podemos esquecer, que metade das mulheres do mundo ainda não faz ideia do que isso da liberdade individual é. E era por isso que devíamos estar todos a lutar – pela liberdade e pela igualdade de todas e de todos nós. E não para parar com esta proposta de atentado aos direitos humanos a que estamos a assistir.

Nunca tivemos tanto acesso à informação como hoje, o mundo nunca foi tão global e, paradoxalmente, é neste novo mundo que, em vez de usufruirmos da liberdade de cada um, de nos respeitarmos pelo que somos, de nos misturarmos uns com os outros, de nos abrirmos à diversidade e de nos manifestarmos livremente, somos arrastados por correntes que mais não querem que o controlo fácil de quem submete o seu igual por uma mera questão de poder. Veja-se o crescimento dos partidos de extrema-direita na Europa ou os discursos misóginos de Trump, Bolsonaro ou Putin. E só faço estas referência porque, evidentemente, a questão da criminalização do aborto é só um dos muitos reflexos nefastos de um pensamento conservador e autoritário. Que tem de ser parado, antes que seja tarde demais.

Por tudo isto, senhores senadores do estado do Alabama, caríssimas e caríssimos membros dos ditos “movimentos pró vida”, ou a quem possa interessar: defender a vida é defender a liberdade, o mais fundamental de todos os direitos; é defender a educação e o acesso à informação (que contribui em muito para acabar com os casos de gravidez indesejada, bem como para reduzir a criminalidade ); é assegurar a saúde pública e é, de uma vez por todas, respeitar a única regra moral que faz sentido no mundo em que vivemos : a minha liberdade acaba onde começa a do outro. Que neste assunto se traduz num princípio claro, simples e inalienável : NO MEU CORPO MANDO EU.