O sonho é ter: a construção do comunismo do luxo

BALMAIN-X-HM-2015-Advertising-Campaign

A máxima de Martin Luther King, “I Have a Dream“, poderia ser convertida nos nossos tempos para: eu tenho um sonho, o sonho é ter. Nos últimos anos, a Ocidente, passámos de cidadãos a consumidores; e de consumidores a hiperconsumidores. E, ainda assim, apesar de parecer uma progressão, verificamos que esta alteração se relaciona diretamente com a crise – de valores e económica. Se a crise tem andado a par e passo, o consumo (de luxo), parece avançar a galope. É tudo uma questão de equilíbrio de mercado. O número de ricos – obscenamente ricos, face ao crescimento dos que vivem miseravelmente – tem aumentado em consonância com o mercado de luxo. Segundo o Jornal de Negócios nas últimas três décadas, a distância entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres aumentou na maioria dos países desenvolvidos. Segundo o relatório da OCDE “nos anos oitenta, os 10% mais ricos ganhavam sete vezes mais do que os 10% mais pobres; hoje, ganham dez vezes mais”. Parece que em substituição dos sonhos coletivos, das utopias (o Amor, a Liberdade, a Revolução, etc.) se compram joias. Como deixámos de ter utopias, o sonho é ter?

A democratização do Luxo

As grandes marcas souberam adaptar-se ao novo mercado de luxo, que passa por uma maior diversificação de produtos consoante a disponibilidade das várias carteiras. Esta é uma das mais interessantes facetas do chamado luxo contemporâneo. Marcas acessíveis a todos os bolsos, fazem parcerias com designers de alta costura e vendem peças a um preço ligeiramente acima dos de pronto-a-vestir, como aconteceu nas colaborações entre da Balmain ou da Lanvin, ainda antes, com a H&M. Segundo Gilles Lipovetsky (2012), isto é um fenómeno que acaba por ser, na verdadeira ascensão da palavra luxo, um paradoxo: é a sua democratização. Cada vez mais, o luxo é visto como uma coisa que toda a gente devia ter. Esta conceção marca uma grande diferença em relação ao passado, pois o luxo era algo que só cabia aos privilegiados. É como se toda a gente quisesse ter direito não só a desejar, mas a obter o objeto do seu desejo.

Vivemos numa era hedonista, individualista, hiperconsumista e as pessoas querem ter acesso às coisas raras. Talvez sempre o tenham querido, mas não passava de um desejo por consumar. Segundo ainda o filósofo francês, sem o modelo religioso da vida pós-morte, as pessoas querem aproveitar as coisas belas na terra. No fundo, estamos perante a lógica epicurista aplicada às aquisições de luxo: aproveita o dia e compra.

O Luxo é emocional

Se antigamente, um homem para ostentar o seu nível de riqueza comprava algo raro para oferecer à mulher ou à amante, atualmente existem muitas mulheres que têm essa possibilidade de compra, destituindo o homem desse poder. Mas será que a mulher, à semelhança do que o homem fazia oferecendo-lhe presentes, compra peças de luxo para exibir o seu estatuto? Sim; Mas não só. Há aqui um novo tipo de luxo. Segundo Lipovetsky (2012), há uma dimensão emocional no consumo de luxo, as pessoas não procuram ser reconhecidas, nem exibir apenas um estatuto social, querem sobretudo, obter um certo nível de satisfação. Falamos então de um novo luxo, aquilo que se designa somente pela procura do prazer e que se liga a uma certa qualidade de vida. Associamo-lo à raridade das grandes emoções.

Luxo público e luxo privado

O luxo é algo permanente na vida humana. Sem luxo será que teriam sido criados, no passado, os templos, as catedrais ou os castelos? Parece que não. Há uma tendência natural da humanidade para a construção e aquisição do belo (e para o horror também). O consumo de luxo sempre teve uma relação emocional com o homem e com as grandes instituições sociais. Vejamos o caso da ostentação dos templos das várias religiões, nunca na sociedade o luxo público se apresenta tão ostensivo, como dentro destes edifícios.

A grande diferença é que o luxo privado passou claramente a ser mais forte na sociedade contemporânea – tornou-se mais chocante observá-lo a título público ou nível privado? Talvez a nível público. Porque, lá está, mais uma vez, passámos a associá-lo à lógica individualista do prazer e é socialmente aceitável a que todos tenham esse direito. É neste sentido que os mercados trabalham, para uma espécie de comunismo capitalista – novo paradoxo. Ao contrário do que nos querem fazer crer os movimentos minoritários anti-consumo, como o Buy Nothing Toda, iniciado nos EUA em 2009 e com sede em 40 outros países, o luxo não está em crise. Podemos, aliás, verificá-lo pelo sucesso das grandes marcas. Se a Chanel abria a primeira loja no prestigioso número 21 da Rue Cambon, em Paris (no ano de 1910), um século depois existem centenas de lojas da marca, espalhadas pelo mundo inteiro, além dos pontos de venda em espaços multimarca e a shop online. E a mesma coisa se aplica, à Hermès ou à Dior e a quase todas as grandes marcas de luxo na moda.

Não deveríamos fazer uma leitura moralista acerca do mercado de luxo, contudo, é inevitável que o façamos. Talvez seja impraticável do ponto de vista ético analisar o fenómeno isoladamente. Sobretudo quando Portugal tem cerca 11% da população incapaz de fazer face às despesas básicas, segundo os dados do INE em 2015. Falamos de Cultura de Consumo, mas os números correspondem a caras e indicam dificuldades de pessoas reais. Contudo, e paradoxalmente, não conseguimos deixar de admirar o que de excecional é produzido com o intuito de ser apenas belo. E isso devemo-lo, no contexto do consumo, ao mercado de luxo.

(Imagem de destaque: campanha Balmain+H&M, 2015)