Nuno Baltazar: “Preocupa-me saber se a mulher é criticada ou bem-amada pelo marido”

Nuno Baltazar mudou de casa. A loja e o ateliê deixaram o apartamento portuense e têm agora porta aberta para a rua. As mulheres, as ideias, os negócios, os museus e – agora também – os homens do criador. Uma viagem ao novo espaço e um olhar para o futuro, que pode ser lido também na edição em papel do Delas.pt

Tem 42 anos e praticamente metade da vida tem sido a trabalhar na moda a tempo inteiro. Antes, brincou com revistas, desenhos, trapos e fantasias absurdas para os carnavais desde os 12 anos. Hoje, Nuno Baltazar – designer nascido em Lisboa, consagrado a partir do Porto – muda de casa, como corolário de uma vida e de um trabalho que procuram novos espelhos.

Toda a história, os que trabalham com o criador e os vestidos com e sem corpo deixam um apartamento do século XIX, na Avenida da Boavista, e instalam-se numa morada: urbana e industrial, no coração da capital do norte e onde homens e mulheres, recebidos de forma personalizada, convivem com à-vontade.

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É agora na loja/ateliê da Rua do Bolhão, no centro do Porto – cujas imagens pode ver na galeria abaixo – , que Baltazar dá vida aos esquissos e concebe coleções para homem e mulher e peças exclusivas e pronto-a-vestir. É por aqui que vai continuar a escutar mulheres e homens, muito para lá do que um costureiro faz. Quase como psicólogo. “Às vezes, o importante é ouvi-las”, diz sobre as clientes.

Tenho sempre uma conversa inicial com elas: procuro perceber as expectativas, as fragilidades, com o que se sentem mais confortáveis, as zonas do corpo com as quais estão menos à vontade. Preocupa-me saber se é uma mulher criticada, por exemplo, ou se é bem-amada pelo marido. A verdade é que tenho de lidar com isso e tal reflete-se nas escolhas”, conta.

“Procuro perceber as expectativas, as fragilidades, com o que se sentem mais confortáveis, as zonas do corpo com as quais estão menos à vontade”

Uma análise detalhada que mais parece feita no divã do que de pé, entre alfinetes e fita métrica, e que já permite a Baltazar encontrar padrões de comportamento. “Uma mulher muito exuberante às vezes abafa a própria filha.” Ou seja, especifica, “mulheres que têm mães muito exuberantes são mais apagadas e é algo que acontece regularmente”.

“Prefiro pessoas mais difíceis a moscas mortas”

Com um trabalho que responde a várias gerações, é comum ver trabalhos do designer em clientes femininas mais novas, mas também nas mais velhas. Como se acode a tanta diversidade? “As minhas mulheres acabam por ser todas a mesma e cheguei a esta conclusão após ter feito uma coleção inspirada na Sophia de Mello Breyner e à qual chamei Mar de Sophia, e que podia ser uma mulher. Mar sonoro, sem fundo, sem fim, calmo, transparente, suave, mas também revolto, perigoso. E as mulheres que me inspiram, aquelas para as quais gosto de trabalhar e com as quais trabalho, são exatamente assim. Gosto dessas camadas e não sabemos qual é que está à superfície naquele dia”, conta. Afinal, é por detestar “rotina e pessoas planas” que Nuno prefere “as que são mais difíceis» às que se comportam como «moscas mortas”

“Mulheres que têm mães muito exuberantes são mais apagadas e é algo que acontece regularmente”

Caraterísticas que, afinal, não ficam fechadas numa faixa etária. “Uma rapariga de 20 e poucos anos pode ter tanta intensidade e experiência, ou até uma vida mais dramática, do que uma mulher de 60”, analisa. Hoje, Nuno prefere não falar da influência que a progenitora, presença frequente no trabalho e nas redes do criador ao longo de anos, exerceu sobre o seu trabalho. “A minha mãe é uma mulher cheia de camadas e, por aí, é muito inspiradora”, ri-se o designer que, aos 39 anos, foi agraciado com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique.

Tendo o universo feminino como central, o designer regressa, também e agora, a um outro pelo qual já tinha passado: o masculino. Baltazar voltou a desenhar peças para eles, que convivem com as de mulher no novo espaço. “Gosto de fazer roupa de homem, mas não atendimento personalizado. Eles são muito mais vaidosos do que as mulheres. E muito mais picuinhas”, compara. E justifica: “O meu esquema mental está formatado para a mulher. Para homem, gosto de trabalhar sem querer saber quem são, até porque sou um, tenho proximidade com o que desenho e preciso do distanciamento para ser abrangente.”

“Gosto de fazer roupa de homem, mas não atendimento personalizado. Eles são muito mais vaidosos do que as mulheres. E muito mais picuinhas”

Talvez seja por isso que Baltazar revele que “os homens acabam por desenvolver coleções mais femininas para mulheres do que as próprias designers”. Afinal, “quem gosta de roupa admira o corpo feminino de uma maneira geral” e “há sempre uma fantasia sobre o que não se tem, o que é muito estimulante”.

E qual é a próxima ‘fantasia’ que prepara para a nova coleção? Depois da desconstrução que apresentou no último Portugal Fashion, inspirado na obra da pintora Paula Rego, o designer pega no fio da contestação – presente nas obras da artista – para coser as próximas propostas.

“Quero que seja mais acutilante, provocadora e com conexões à forma como os artistas em geral, nas outras épocas, defenderam os seus ideais e combatiam o que achavam que estava mal.” É que “intervenção é fundamental e estamos todos demasiado acomodados a ver tudo a acontecer e a deixar que tudo passe e a vida continue na mesma”.

“Gostava que não fosse um problema elas engravidarem quando estão a trabalhar, porque sofrem sempre na pele as pressões da entidade laboral”

Por estas razões, o criador quer pôr a luta no epicentro. Já sobre o que gostava mesmo de mudar, é para as mulheres que o designer olha com detalhe. “Gostava que não fosse um problema elas engravidarem quando estão a trabalhar, porque sofrem sempre na pele as pressões da entidade laboral, gostava que não houvesse diferença salarial entre géneros e a exercerem o mesmo cargo. Não consigo entender…”

Futuro: negócio e museus

A nova loja de Baltazar obrigou a ajustes. No tempo e no espaço, mas sobretudo na memória. “Nem tudo era possível ser guardado, fiz depósitos em museus”, revela. E escolheu quatro: o MUDE – onde entregou uma peça por coleção –, o do Traje – para onde foram viver vestidos usados pelas apresentadoras Catarina Furtado, Raquel Strada e, entre outros, pela fadista Carminho e pela atriz Ana Guiomar –, o da Chapelaria e o do Calçado. “Fizemos uma distribuição do nosso arquivo de maneira a que fosse identificado, hoje sabemos quem tem o quê”, refere Baltazar, que diz que esta decisão não significa ainda a possibilidade de cumprir um sonho, “o de expor todos os vestidos da Catarina” concebidos ao longo de anos.

Baltazar sonha “expor todos os vestidos da Catarina” concebidos ao longo de anos

Paralelamente, Nuno segue novos caminhos. Acaba de vencer um concurso público para vestir o coro feminino do Teatro Nacional de São Carlos, ultima a proposta cápsula que vai apresentar no final de agosto para a SportZone, na qual tira poder aos tecidos tecnológicos para o entregar ao sempiterno algodão, e continua a criar coleções sem estação: “Acha que estamos a ter um verão normal? Não faz sentido sermos tão estanques.”

No futuro, não recusa eventuais convites para criação de novas cápsulas para cadeias de roupa e lembra que as marcas portuguesas bem podiam convidar estilistas, como fazem já algumas lojas de mass market. Quanto ao futuro do seu negócio, Nuno Baltazar coloca os fatores sob uma outra ordem. “Praticamente, nenhum criador é dono da sua própria marca. Desenvolvem-na e, a partir de certa altura, passa para um outro plano. É um processo natural que está a acontecer internacionalmente”. E pergunta: “Quando é que um investidor se decide a abrir uma loja minha ou de um colega meu, a responsabilidade é dessas pessoas e não nossa, dos criadores?” Uma possibilidade a que o designer “está aberto”. Quem sabe…

Imagem de destaque: Pedro Granadeiro/Global Imagens

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