O 25 de abril de 1974 visto por uma adolescente de Lobito

Maria Manuela Amoedo aos 14 anos, em 1974. O 25 de abril de 1974 visto por uma adolescente de Lobito
Maria Manuela Amoedo aos 14 anos, em 1974. O 25 de abril de 1974 visto por uma adolescente de Lobito

“A minha mãe foi para Angola depois de terminar o curso comercial. Tinha 18 anos. Foi ter com a mãe que estava em Angola desde os anos 50. O meu pai, com quem já namorava em Portugal, vai ter com ela e casam no Lobito. Eram ambos empregados de escritório. Filha única, eu tinha 14 anos quando chegou abril de 1974.

A notícia da revolução foi ouvida com naturalidade. Eu estava na escola e nada mudou na minha rotina. Na rotina da cidade também nada se alterou. As pessoas cumpriam os seus dias como até ali. Também não se assistiram a posições anti-revolução. As notícias foram aceites de forma natural.

Tinha um grande distanciamento de Portugal. Pouco me dizia e pouco conhecia – apenas Lisboa das poucas vezes que visitara a família. Já na escola primária me insurgia por ter que aprender linhas de caminho de ferro e rios de uma terra que não era a minha. Não era a única. Era um sentimento generalizado na miudagem. Portanto, a revolução foi aceite por nós de forma natural. Não tinha consciência do que iria mudar na minha vida.

Na verdade, achava que nada mudaria. Angola seria independente. E isso era o que todos, de forma generalizada, ansiavam. Íamos deixar de sustentar Portugal com as riquezas de Angola. Teríamos um novo calendário escolar – não fazia sentido nenhum ter férias grandes nos meses de cacimbo, enquanto na Europa podiam usufruir da praia nas férias nós aguentávamos os meses mais quentes dentro de salas de aula.

Acabaria a guerra colonial. Acabaria o dilema de muitos, brancos, negros, mulatos, nascidos em Angola terem que pegar em armas contra os que consideravam irmãos. A alternativa para uns era desertar, para outros eram juntarem-se aos movimentos de libertação.

Portanto, Portugal não nos dizia nada. Era um país longínquo de que pouco ou nada conhecíamos e que nada nos dizia. Não sentíamos o peso da ditadura. Não na forma como crescemos. Mesmo as regras formais eram ignoradas – não fiz parte da Mocidade Portuguesa – o meu pai rasgou o papel da inscrição e claramente me disse para ignorar o assunto pois não permitiria que frequentasse uma coisa daquelas.

A ditadura estava presente pela presença dos militares. Nos relatos que muitos faziam do que se passava no mato.

Maria Manuela Amoedo aos 14 anos, em 1974
Maria Manuela Amoedo aos 14 anos, em 1974

No início do ano letivo de 1974/75 frequentava o 5º ano do liceu [equivalente ao 10.º atual] no colégio das Doroteias. Nesse colégio fiz a maioria da minha formação. Não me obrigavam a rezar mas deram-me uma educação humanística. Surgiram algumas alterações aos planos curriculares. Na literatura, saíram os autores portugueses e começamos a estudar os escritores angolanos. Ficámos contentes por ler Alda Lara, Orlando de Albuquerque, Luandino Vieira, entre outros.

E viveu-se calmamente na cidade do Lobito até meados de 1975. Até ao ano escolar terminar, já com os movimentos de libertação instalados na cidade, a rotina na cidade decorre dentro da normalidade. Ninguém tem intenções de abandonar a cidade ou o país.

As coisas não são diferentes na minha família. Ninguém tem intenção de sair de Angola. Já só depois de terminados os exames nacionais é que começaram os confrontos armados dentro da cidade. Aos primeiros sons de tiros sucedem-se bombardeamentos. Os confrontos começam a tornar-se cada vez mais frequentes. Sozinha em casa, em tempo de férias, tenho que me atirar para o chão algumas vezes, no corredor interior da casa.

Maria Manuela Amoedo vem para Lisboa a 18 de agosto de 1975. vinha para ficar um mês, acabou por permanecer. [Foto: DR]
Maria Manuela Amoedo vem para Lisboa a 18 de agosto de 1975. Vinha para ficar um mês, acabou por permanecer. [Foto: DR]

A 18 de agosto de 1975 cheguei a Lisboa, sozinha sem os meus pais, com uma tia que é da minha idade e uns primos mais novos. Embarco no aeroporto de Benguela – porque o aeroporto de Lobito já não funcionava – para Luanda e daqui para Lisboa, com uma passagem aérea na mão, para um voo regular da TAP, comprada pelos meus pais. Não vim na ponte aérea. Vim com uma mala para passar um tempo – até as coisas acalmarem…

Sei que fiquei em casa do meu avô materno, mas não me lembro de nada desse mês: o que comi, o quarto onde dormia, o que fiz. Nada. Um verdadeiro escotoma. A única coisa de que tenho memória é de estar agarrada ao telefone e a perguntar à minha mãe: ‘quando é que eu me vou embora?’ E de ela responder: ainda não. Só quando as coisas acalmarem. E de eu lhe responder que se não me vinha buscar, eu fugia. Até que ela me diz que a minha avó vinha a Lisboa.

E veio. Veio tratar da vida de duas miúdas de 15 anos. Tratou do nosso alojamento, da documentação necessária e matriculou-nos na escola para prosseguirmos os estudos. E depois regressou a Luanda. E nós, duas miúdas de 15 anos, ficámos sozinhas.

Ainda vou passar as férias de Natal ao Lobito em 1977. Não posso regressar no ano seguinte porque faria 18 anos. Não abdicando da nacionalidade angolana poderia não conseguir regressar a Lisboa para continuar a estudar. A minha tia regressa a Luanda depois de terminar o 7º ano do liceu. Os meus pais só vêm para Portugal em 1982, já depois do nascimento do primeiro neto.

Voltei a Angola em 2007, para o funeral da minha avó. Ao desembarcar em Luanda, voltei a sentir-me em casa. Em 2013 fui passar um mês de férias a Angola. Regressei ao Lobito.

Manuela é portuguesa, mas natural do concelho de Angola. Ela quer reverter esta realidade e denuncia-a [foto: DR]
Manuela é portuguesa, mas natural do concelho de Angola. Ela quer reverter esta realidade constante no seu registo e denuncia-a [foto: DR]

Recentemente, fui renovar o meu cartão de cidadão e constatei algo preocupante… a subtração dos elementos da minha naturalidade. Angola passou a ser um concelho de Portugal… deixei de ter direito a ter nascido no país Angola, concelho do Lobito, distrito de Benguela.

Somos aqueles que ninguém quer. Angola não nos dá a nacionalidade e Portugal nega-nos agora a naturalidade. Como posso ter identidade sem naturalidade?


Maria Manuela Amoedo, nasceu em Lobito, em 1960. Filha única de dois funcionários de escritório. Quando se dá o 25 de abril de 1974, Manuela estava na escola a completar o antigo 4º ano do liceu. Terminado esse ano escolar passou as férias grandes em Luanda e ainda viria a Lisboa visitar a família por um curto período.

Regressou ao Lobito para frequentar o ano letivo de 1974/1975 no colégio das Doroteias. Em agosto, de 75 o pai passa-lhe para mão uma passagem de avião e manda Manuela e os mais novos da família alargada para Lisboa.

Volvidos mais de 40 anos, esta professora de Filosofia e escritora ainda luta pela sua identidade. Em maio próximo, esta autora de obras infantis e de um manual de Filosofia vai lançar um livro no qual reúne testemunhos de outras pessoas que estavam em Lobito quando, na sequência da Revolução dos Cravos, foi preciso abandonar as colónias: ‘1975 na primeira pessoa – Lobito, uma cidade com estórias por Contar’, da editora Nova Vega.