“Partilhar a minha violação levou outras pessoas a fazer o mesmo”

Vítima de violação em 1999, Claire McFarlane, atualmente com 39 anos, usou a sua experiência para criar um movimento de combate à violência sexual: Footsteps To Inspire. Promover o debate e apoiar os sobreviventes vítimas deste tipo de abusos, em todo o mundo, são os objetivos do projeto nascido em julho de 2016, quando a australiana de origem sul-africana, partiu de Bloubergstrand, na África do Sul, em direção ao segundo destino, Austrália.

Claire McFarlane pretende correr 3.500 quilómetros de praia, num total de 230 países. Até agora percorreu 33 países (veja alguns na galeria acima) e este domingo, 18 de fevereiro, é em Portugal que se corre. O encontro está marcado para às 9h, na praia do Baleal, em Peniche, não sendo necessário inscrição ou qualquer pagamento para participar.

Claire chegou a Portugal esta semana. Ficou por Lisboa uns dias, aproveitou para passear pelo bairro de Alfama e falou com o Delas.pt . Além de falar do projeto Footsteps To Inspire, abordou temas como a justiça, o assédio sexual e afirmou faltar à Europa falar sobre violência sexual.

Dia 16 de fevereiro, ainda antes de ir para Peniche, marcou presença num encontro com algumas organizações portuguesas: Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e Associação de Mulheres Contra a Violência.

Claire McFarlane a correr na praia. [Fotografia: Facebook Footsteps To Inspire]

Como surgiu a iniciativa Footsteps To Inspire, a ideia de aliar as corridas ao combate à violência sexual?

O propósito é utilizar o desporto para dialogar sobre a violência sexual, uma vez que este é um tema complicado de se falar. Apercebi-me que através do desporto, neste caso, da corrida, as pessoas se sentiam mais confortáveis em fazê-lo. Surgiu então a ideia de correr nas praias dos países de todo o mundo. Agora está a crescer e a tornar-se um movimento. Eu acabei de vir do lado Este de África e lá é muito complicado para as pessoas falarem sobre violência sexual, mas quando fui correr houve imenso apoio e as mulheres diziam: ‘Oh podemos ter uma voz através da corrida na praia, não é uma manifestação’.

A corrida já fazia parte da sua vida?

Sempre gostei muito de desporto, mas a corrida começou por ser uma forma de desanuviar a cabeça. Fui violada em França, quando tinha 21 anos, fui quase assassinada. Só dez anos depois é que apanharam o homem, através do ADN, e após três anos é que ele foi levado a tribunal. Nessa altura fui forçada pelo sistema legal francês a reviver o que aconteceu e isso foi muito difícil para mim. Uma vítima tem que pagar para pôr alguém na cadeia. A mim custou-me mais de 25 mil euros, foram todas as minhas poupanças. Mas tive que o fazer, por mim. Não teve um final feliz, mas ele foi preso. O sistema não nos trata muito bem. Já tinha a minha vida e estava a tentar vivê-la da melhor maneira quando comecei a sentir-me muito em baixo. Então tive que encontrar um equilíbrio. Comecei a correr depois de um dia de trabalho. Ia correr para casa para esvaziar a cabeça e apercebi-me que a corrida me estava a ajudar a curar, que me fazia sentir melhor. E foi aí que comecei a pensar que a corrida era capaz de curar. Mas correr 16 quilómetros na praia ainda é difícil para mim, não sou uma atleta profissional.

A praia é um dos sítios com o piso mais difícil de correr, porque os pés enterram-se na areia. Porque escolheu correr na praia?

Sim, é verdade é mais difícil, mas eu adoro a praia. E gosto quando os pés estão em contacto com a terra. Existe uma energia bastante positiva que vem da praia, das ondas. É um sítio onde as pessoas vêm e onde se sentem felizes e relaxadas. Já corri nas praias da Austrália, África do Sul, Espanha. Há dois anos atrás, estava em Peniche, Baleal, para fazer surf e fui fazer uma corrida na praia. Pensei que correr na praia é correr na praia, mas que cada praia é diferente e cada país é diferente. Então: “Como será correr nas praias de todos os países do mundo?”, agora estou a fazê-lo!

Porquê correr 16 quilómetros e não 15 ou 17?

É simbólico. Desde o dia em que fui violada até tudo ficar resolvido passaram-se 16 anos. Quando sabia que tinha de escolher a distância decidi então escolher simbolicamente – um quilómetro por cada ano.

“Quando uma mulher diz que foi violada, as pessoas perguntam: ‘O que tinhas vestido? Por onde é que andavas? Bebeste?’ e se a mulher responde ‘Sim’ a qualquer uma destas perguntas as pessoas vão dizer ‘Ahhhh, então estavas a pedi-las’, como se a culpa fosse dela e nunca é”

Tornar a sua história pública também foi uma forma de ultrapassar?

Sim. Apercebi-me que se mantiveres tudo dentro de ti, não te curas, o que acaba por afetar a tua vida. Eu pensava que estava bem, mas agora, olhando para trás, vejo que ainda há muitos danos. Ser forçada a falar sobre o que me aconteceu foi difícil, mas foi importante para me curar. Não há nada para ter vergonha ou sentir culpa. Em 2014 estava a viver na Austrália, onde tenho uma amiga jornalista e ela escreveu sobre a minha história num jornal, tornando o caso acessível a toda a gente. Depois disso muitos sobreviventes de violência sexual escreveram-me a contar as suas histórias, muitos deles pela primeira vez. Foi aí que percebi que partilhar a minha violação dá coragem a outras pessoas para fazer o mesmo. Tive mulheres e homens a escreveram-me de todo o mundo, tanto heterossexuais como pessoas que fazem parte da LGBT, o que mostra que não há estereótipos. Eu não fazia ideia que havia homens vítimas de violência sexual, muitos em criança.

Mas nem todas as vítimas de violência sexual o fazem.

Sim e acho que é por terem medo de serem julgadas, criticadas ou consideradas culpadas. Quando uma mulher diz que foi violada, as pessoas perguntam: “O que tinhas vestido? Por onde é que andavas? Bebeste?” e se a mulher responde “Sim” a qualquer uma destas perguntas as pessoas vão dizer “Ahhhh, então estavas a pedi-las”, como se a culpa fosse dela e nunca é. Nada disto é sobre sexo, é sim sobre poder e poder abusivo. Portanto não interessa o que se tem vestido, por onde se anda ou se a mulher bebeu ou não, se alguém quiser magoar ou abusar vai fazê-lo. A violência sexual é igual em todo o lado, em Nicarágua, por exemplo, temos a ideia de que é pior, porque se fala sobre o assunto nesses países, enquanto aqui na Europa, ninguém fala disso, não denunciam, e esse é que é o problema.

“Estive em Espanha há uns dias, precisamente com a Footsteps To Inspire e as organizações não quiseram falar comigo. Inclusive a LGBT de Valência disse-me: ‘Isso não é um problema para nós, só acontece às mulheres'”

Sentiu isso?

Sim. Estive em Espanha há uns dias, precisamente com a Footsteps To Inspire e as organizações não quiseram falar comigo. Tentei entrar em contacto com várias, pois muitas comunidades são afetadas. Inclusive a LGBT de Valência disse-me: “Isso não é um problema para nós, só acontece às mulheres” e eu fiquei: “Uaaau… Não, não acontece apenas às mulheres, acontece a todos e em todo o lado”. Isto só mostra que ainda há um longo caminho a percorrer, existe um silêncio que precisa ser quebrado. Ter estas conversas e trazê-las a público é um sinal de evolução. É importante, porque se escondermos, se não se souber que algo está a acontecer, não se pode resolver. É preciso ouvir e aprender, porque muitas pessoas que cometem crimes sexuais também foram vítimas desses crimes. Temos que ter compaixão, o que é complicado, muito complicado, eu sei, mas por isso é que quanto mais pudermos expor situações destas, mais fácil será encontrar uma solução. É nisso que acredito, mas ainda há um grande caminho a percorrer na sociedade.

E a justiça? Quase 20 anos depois do que lhe aconteceu ainda tem muito para evoluir?

A lei relacionada com violência sexual e com a violação está a mudar. Antes era considerada violação somente se existisse penetração – pénis e vagina –, mas a verdade é que a violação não é só esse ato. Os homens podem ser violados e eles não têm vagina. Alguém pode usar um objeto ou pode forçar alguém a fazer algo. O ato de violar abrange muito mais do que apenas a penetração e ainda bem que as leis estão a mudar, aceitando que diferentes atos sexuais sejam considerados como violação. A melhor lei que já vi foi na Namíbia, na África do sul, onde existe uma lista de todo o tipo de atos sexuais: forçar alguém a ver pornografia, usar objetos, fazer sexo oral, assim como atos coercivos, onde haja recurso à força física, a ameaças, inclusive ameaças económicas, e o uso de bebidas ou de drogas. Na Europa a lei ainda é muito antiga, não sei sobre Portugal, mas em França e na Suíça a violação continua a ser apenas o ato de penetração. Na Alemanha, em 2016, acho que mudaram a lei, porque até então não era considerado violação a não ser que se provasse que a vítima se tinha tentado defender do atacante. Era preciso apresentar ferimentos que mostrassem que tinha existido luta, de modo a provar que não tinha sido consentido, caso contrário a pessoa podia escapar. Mas sabemos que cerca de 75% das violações são cometida por pessoas conhecidas da vítima: um amigo, namorado ou marido. Nesses casos é raro existirem ferimentos físicos, portanto, nunca iriam para tribunal. Outro problema é que em muitos países, a violação num casamento ainda é legal ou é ilegal mas as pessoas não sabem que o é.

“Há uns tempos uma mulher indiana escreveu no Twitter: ‘Não há vítima quando um homem se masturba no comboio’. Claro que há uma vítima, qualquer pessoa que veja é uma vítima”

Então também o assédio pode ser considerado uma forma de violência sexual?

Completamente. O assédio sexual é uma forma de violência sexual, porque se eu não gosto que alguém me toque no rabo quando estou a andar nas ruas, então se alguém o fizer vou sentir-me violada. Por exemplo, em Paris, os homens dizem-te o que é que eles querem que tu lhes faças, com linguagem vulgar e eu não quero ouvir isso. Isso também é uma forma de violência sexual. Há uns tempos uma mulher indiana escreveu no Twitter: “Não há vítima quando um homem se masturba no comboio”. Claro que há uma vítima, qualquer pessoa que veja é uma vítima. Eles estão a fazer o ato sobre o olhar de alguém. É complicado, porque não podemos controlar tudo, no sentido em que às vezes podemos querer um elogio de um homem. Mas temos que saber distinguir o que é inofensivo daquilo que é mau. Limites, algo de que não falamos muito.

Por isso é que traz a Footsteps To Inspire à Europa nos próximos meses. Expectativas para a corrida deste domingo em Peniche, Portugal?

Sei que não vou correr sozinha. Tenho alguns amigos cá e sei que eles vão, mas toda a gente é bem vinda! Ninguém tem que correr 16 quilómetros. Eu corro, mas podem vir e andar e a falar, é bastante informal. O que pretendo é que se torne um evento anual, portanto a ideia é que comunidades por todo o mundo, numa específica data se reúnam e corram para continuar a aumentar o conhecimento e atenção dos sobreviventes. Pode ser em qualquer parte do país, a ideia agora é criar um movimento.

Portugal é o 34º país a receber a iniciativa. Até agora qual foi o país onde se reuniram mais pessoas contra a violência sexual?

Foi um país muito, muito pequeno, no Oceano Pacífico, Papua-Nova Guiné. Uma ilha tribal, muito violenta e onde as mulheres são tratadas muito mal. A violação é um grande problema lá. Apareceram 200 pessoas para correr comigo, o que é imenso para o sítio que é. Mas foi algo importante para elas que procuram mudanças para melhor e acho que me viram como um meio para ter voz, para se sentirem ouvidas. Esse foi o primeiro país em que me perguntaram: “Podemos fazer isto todos os anos?”.

Percorra a galeria de imagens para ver alguns dos sítios por onde Claire Mc Farlane já passou com o movimento Footsteps To Inspire.

[Imagem de destaque: Claire McFarlane]

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