“O contributo dos homens no combate à MGF é um fator chave”

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Cadidjatu Baldé tem 31 anos e é vice-presidente do Movimento Musqueba – Associação de Promoção e Valorização da Mulher Guineense. Veio para Portugal no final de 2010 para estudar e, resolvida e cumprida essa missão, dedicou-se, a partir de 2012, ao projeto desta associação sediada em Odivelas, da qual faz parte desde o primeiro momento. A ativista falou com o Delas.pt à margem do 2º. Encontro Regional para a Intervenção Integrada pelo Fim da Mutilação Genital Feminina, que decorreu em Sintra, esta segunda-feira, 6 de fevereiro. Na entrevista explicou-nos como trabalha esta associação, uma das três organizações premiadas nesse dia, pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), pela sua luta contra a MGF. Os desafios e a preparação das autoridades para lidar com uma temática que, muitas vezes desconhecem, foram outros dos assuntos abordados nesta conversa, onde se falou ainda da necessidade um maior envolvimento dos homens na luta contra a MGF.

Como e por que surgiu o Movimento Musqueba?
O Movimento Musqueba surgiu através da Academia Ubuntu e da nossa colega, Filomena Djassi, que criou o movimento e o projeto. Depois, quando decidiu trabalhar com a comunidade, convidou-nos e a partir daí começámos a fazer as nossas atividades. Ou seja, a trabalhar dentro da comunidade [guineense] e com as mulheres, tendo em conta que esse movimento foi criado mais no sentido de as capacitar, de incentivar a liderança feminina, sobretudo, e de dar-lhe ferramentas no sentido de se tornarem mais independentes e ativas na comunidade e nas associações.

Mulheres mais emancipadas serão mais capazes de combater a mutilação genital feminina, mesmo dentro da comunidade e das suas tradições?
Sim, uma mulher emancipada é meio caminho andado porque essa mulher, por ela própria, já consegue delinear os seus pontos, impor as suas ideias e consegue-se posicionar. Essa mulher não é preciso empurrar muito, é só um puxãozinho…

E terá já alguma independência económica.
Exatamente, mas mesmo que não tenha está nesse caminho, a construir essa independência. Isso é um fator muito importante, porque a dependência complica muito. Por outro lado, acontece muitas das vezes, nos momentos chave, e sobretudo nesta luta contra muitas questões na comunidade – porque nós falamos na MGF, mas as mulheres são vítimas também de casamentos precoces, casamentos forçados – estas mulheres, que trabalham mais, contribuem mais, quando chega o momento de tomar decisões mais importantes na família, nem sequer serem consultadas ou avisadas. Praticamente deixam de contar. Simplesmente limitam-se a aceitar e a acatar as opiniões e as decisões dos homens. Quando falamos disto não se trata de atacar os homens. É explicar a estas mulheres que elas merecem o mesmo respeito e consideração que eles. Vamos chegar a um ponto em que falamos de igualdade de género.


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No debate do Encontro Regional, alguém na plateia dizia que era preciso engajar os homens no combate à MGF, mas que isso está a acontecer pouco. Do trabalho que fazem com a comunidade, o que é que nos pode dizer da sensibilidade dos homens para esta questão? Houve alguma evolução?

Evolução houve e está-se a notar. Mas de facto o contributo dos homens no combate à MGF é um fator chave. Sempre fui dessa opinião. Não quer dizer que os homens são o mais importante nessa luta, mas são mesmo um fator chave. Já tivemos duas experiências a trabalhar com homens. No primeiro caso, trabalhamos só com homens, sem mulheres. Isso permitiu-nos ter uma perceção muito clara acerca do poder do homem dentro da comunidade e da persistência do patriarcado. E isso conta muito. Em praticamente todas as famílias o homem impõe a sua voz. No último projeto que desenvolvemos na Damaia [Amadora],e que está no vídeo que fizemos [“No pára fanado di mindjer”, de2014], dentro dos mediadores escolhemos mulheres e homens e vimos um lado muito interessante. Nós aqui falamos de crianças e de mulheres, mulheres, mulheres e é bom que se ponha sempre o acento nisso, mas se calhar podemos chamar algumas vezes os homens também. Porque, apesar de elas serem as vítimas diretas, sofrem fisicamente a prática, nem sempre participam muito nas atividades, nem perdem muito tempo a falar. Acabam, por ser os homens, muitas vezes, a chegarem-se mais à frente. E no vídeo vê-se isso: participaram mulheres, mas a mensagem mais forte que tivemos foi de um homem.

Em que zonas do país o movimento intervém?
Não temos uma zona específica para já. A nossa primeira ação foi no Porto, agora estamos mais concentrados em Lisboa. Já trabalhamos em Sintra, na Damaia e agora vamos fazer um projeto em Odivelas. Vamos trabalhando sempre onde houver necessidade.

Cadidjatu Baldé, vice-presidente da associação Movimento Mosqueba (DR)
Cadidjatu Baldé, vice-presidente da associação Movimento Musqueba (DR)

E em que questões se centram as vossas ações?
Neste momento, somos solicitadas para trabalhar mais a questão da MGF, casamentos precoces e forçados também, mas sobretudo a MGF. E tendo em conta que é um assunto que nos últimos quatro anos tem sido muito falado aqui em Portugal, tem mexido com as pessoas e com as organizações e tendo em conta também a política da União Europeia, que ultimamente tem-se envolvido mais e disponibilizado mais cursos para as organizações trabalharem, neste momento há projetos europeus em torno da MGF e as organizações têm voltado o seu trabalho mais para isso.

Quais têm sido as principais dificuldades ou desafios ao vosso trabalho?
O facto de a comunidade ser muito fechada é um dos obstáculos, mas não diria que é o maior. É mais a falta de tempo e nós, guineenses, estamos aqui “dispersos”, porque somos imigrantes. E na vida de um imigrante a prioridade é sempre trabalhar. Aceder e juntar estas pessoas para conversar é muito difícil e dentro da comunidade há muitos dialetos e línguas diferentes. Para mim é fácil chegar à minha comunidade porque eu falo crioulo, falo fula, e posso passar a mensagem, mas congregar as pessoas é um desafio. Já para não falar de que há pessoas que nem sequer querem falar sobre esse assunto.

Ainda é tabu.
É tabu para algumas delas, mas para outras é porque sentem que estão a ser discriminadas, até certo ponto, porque estão a criticar a sua tradição e são pessoas que não as conhecem, alegando que nós, Musqueba, estamos a falar com os europeus que não conhecem a prática. Sentem isso como uma influencia externa. Mas esse foi um dos passos que demos, conseguimos que as pessoas passassem a ver que há uma influência interna, de pessoas que pertencem à comunidade e que estão a fazer esse trabalho.

Com quantos casos de mutilação genital feminina já lidaram, sendo que os estudos apontam para que existam mais de seis mil mulheres em Portugal que foram submetidas a essa prática?
Na Musqueba soube de um caso através de uma colega nossa. Foi num dos eventos, alusivos ao dia 6 de fevereiro [Dia Mutilação Genital Feminina], no Barreiro. Houve uma rapariga que no final foi falar com ela e confessou que foi submetida àquela prática e que até essa altura não tinha falado sobre isso com ninguém. E já era crescida quando a levaram para a Guiné e lhe fizeram a excisão. Ela nem sabia o que é que era e estava traumatizada quando contou isto à minha colega. Além deste caso, também soubemos de um outro na Amadora, num evento semelhante. Mas além destes casos, diretamente na Musqueba não conseguimos fazer nada. Por acaso neste último projeto trabalhámos como uma fanateca.

Que é?
São as senhoras que fazem a excisão e que nós chamamos de fanatecas. Quando esta senhora foi selecionada para ser uma das mediadoras nós nem sequer sabíamos que era fanateca. Durante a formação ela disse que tinha feito a excisão às meninas mas que depois deixou de fazer. Garantiu-nos que já tinha deixado de fazer há muito tempo, porque a filha disse para deixar e ela deixou. Outros casos a que tive acesso, foi através do estudo de que fiz parte na Universidade Nova.

Que tipo de iniciativas fazem junto das comunidades, além dos eventos referidos?
Nos últimos três anos como temos trabalhado mais a área da MGF organizamos encontros, tertúlias e sessões de formação sobre direitos humanos. Fazemos atividades dentro dos bairros e, além disso, temos participado em muitas atividades de outras organizações. Ultimamente tem havido esse esforço de parceria para dar mais visibilidade, mais peso ao nosso trabalho porque é um tema muito difícil de trabalhar e fazê-lo isoladamente ainda é mais difícil. Então o Musqueba tem participado em quase todas as atividades desse género. E já houve casos em que fomos solicitadas para dar formação a outras entidades, como a Polícia Judiciária.

E como é que tem sido o trabalho com as diferentes autoridades portuguesas nesta matéria? Estão preparadas para lidar com ela?
Não sei responder se estão preparadas, mas alguma bagagem já têm, porque fez-se um grande esforço com a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária (PJ). Há três anos a Musqueba organizou uma formação na sede da PJ, com a Procuradoria-Geral da República e alguns advogados, porque havia um obstáculo muito grande para estas entidades e também para outras organizações: não percebiam, não entendiam. De acordo com os valores portuguesas a MGF é impensável, é das coisas mais tenebrosas que existe. Mas na nossa comunidade as pessoas não fazem isso às filhas como uma forma de castigo, acham que é para o seu bem, para que se possam integrar na sua comunidade. É visto como um ritual, não como uma coisa má. Então era preciso explicar tudo isso, mas também chamar a atenção de que já se estava a fazer pressão para criminalizar a prática aqui com um artigo específico. Há trabalho para fazer ainda, muita coisa a fazer. Continuamos a passar informação e no que concerne ao Sistema Nacional de Saúde, nos últimos anos, criou-se uma pós-gradução na área da MGF para os profissionais de saúde. Está-se a fazer um grande esforço em integrar pessoas de áreas que podem ajudar no combate a esta prática, como as áreas da saúde ou judicial. Estamos a juntar as forças para ver se conseguimos alguma mudança.