“O feminismo serve para salvar os homens da sua masculinidade tóxica”

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Lisboa, 29/08/2016 - Daniela Ribeiro e Rodrigo Soromenho Marques, organizadores do Festival Rama em Flor. (Leonardo Negrão/Global Imagens)

O Rama em Flor é o primeiro festival feminista português e arranca já esta quarta-feira. A ideia nasceu de uma conversa de café entre amigos que se inspiraram no Ladyfest, o festival feminista norte-americano. Só não adotou o mesmo nome porque os responsáveis não querem que os lisboetas o associem às famosas festas ladies night, que as discotecas portuguesas costumam organizar para atrair mulheres. E o Rama em Flor também vai mais longe.

Além de concertos, exposições e debates que o Ladyfest costuma incluir, o festival feminista português vai ter ciclos de cinema que pretendem mostrar o trabalho que os feministas nacionais têm feito desde o 25 de abril e que poucos conhecem.

Ao feminismo decidiram também juntar o queer. Querem que os vários movimentos e minorias se unam e que os ativistas, pessoas de diferentes raças e classes socioeconómicas saiam de casa e discutam as suas diferentes ideias.

Entre 7 e 17 de setembro, as várias atividades do Rama em Flor vão desdobrar-se entre diversos espaços de Lisboa: a Galeria Zé dos Bois (ZDB), o Damas, Lounge e o Espaço Rua das Gaivotas 6. A maioria das atividades é gratuita, para que o dinheiro não seja um impedimento para ninguém.

A principal atração musical do festival são os irmãos suecos Olof e Karin Dreijer, conhecidos como The Knife e com uma atitude inspirada em movimentos feministas. Atuam dia 17 na ZDB, que se localiza na Rua da Barroca, no Bairro Alto. Os organizadores do evento contam-nos todos os detalhes.

Lisboa, 29/08/2016 - Daniela Ribeiro e Rodrigo Soromenho Marques, organizadores do Festival Rama em Flor. (Leonardo Negrão/Global Imagens)
Daniela Ribeiro e Rodrigo Soromenho Marques, organizadores do Festival Rama em Flor. (Leonardo Negrão/Global Imagens)

Como nasceu a ideia de criar o Rama em Flor?

Rodrigo Soromenho Marques (RSM): Em outubro estava a ter uma conversa com uma amiga e ela desafiou-me a fazer o Ladyfest cá em Lisboa. A ideia ficou a germinar e não me largava. Como eu faço parte da Maternidade, uma promotora com características muito específicas – somos um grupo de amigos que faz agenciamento de artistas, marcamos eventos e fazemos booking internacional –, já tinha condições para fazer o evento e o Ladyfest não é uma coisa muito grande, dura um ou dois dias. Depois achei que o espaço onde faria sentido seria a ZDB, que não é um espaço corporativo, tem uma grande liberdade e flexibilidade. É uma instituição que funciona desde 1994. A partir daí criou-se uma parceria entre a ZDB, o Damas, o Lounge, o Rua das Gaivotas 6 e a Rabbit Hole, que é um coletivo queer que faz festas, performances e outros eventos de vários tipos. A coisa começou a ser marinada, planeada. No início era para ser em junho, mas foi adiado porque começámos a perceber que queríamos fazer muitas coisas: um ciclo de cinema, conferências… Tudo aquilo que vai acontecer não dava para acontecer num ou dois dias. Apesar de cada dia não ser muito intenso, não ter muitas coisas a acontecer, um dos critérios que tínhamos era de que não houvesse colisão de horários, quem quisesse vir pode vir a tudo. Outra das preocupações que tivemos é que o festival tinha de ser acessível. A maior parte dos eventos são grátis e os que são pagos são seis euros, não há nada mais caro do que isso.

Como é que conheceu o Ladyfest original? O que é que é exatamente?

RSM: Já conhecia o Ladyfest há alguns anos, que começou no seguimento de um movimento que nos anos 1990 trouxe as questões feministas para o punk rock. Durante os anos 1980 havia, nos EUA, muitos grupos hardcore e, para além da formação em si ser masculina, os concertos eram caracterizados por uma grande emoção e violência física que faz parte desse género musical. No entanto, as raparigas que iam a esses concertos muitas vezes acabavam por ficar de parte, a segurar os casacos dos rapazes num canto. Nos anos 1990, na zona de Olympia e Portland começou a haver muitas bandas com formação feminina. Não são importantes por terem apenas formação feminina, eram bandas baseadas também em grupos do punk inglês que já cantavam sobre ideias. Pegaram nisso e começaram a falar sobre a sua experiência. Além de se revoltarem contra o patriarcado em que viviam, falavam sobre experiências pessoais, tanto de abuso como violência nas relações. E a partir dessa altura os media ficaram muito atraídos por esse movimento, começaram a falar sobre ele. No entanto, a certa altura, esses grupos começaram a ser retratados como miúdas histéricas com guitarras, o feitiço virou-se contra o feiticeiro, começaram a sentir-se mal representadas. Muitas das mulheres que começaram esse movimento criticaram-no por passar a ser apenas para mulheres brancas de classe média, ou seja, não estava a ser um movimento inclusivo. No final dos anos 1990, quando o movimento começa a definhar, elas decidem criar o seu próprio festival, o Ladyfest. É um festival comunitário, que começou a ser feito em Olympia com pessoas de cada cidade e que não tem só música. Tem workshops de autodefesa – uma ideia que também trouxemos para o Rama em Flor – fanzines e muitas outras coisas associadas à cultura punk.

Quais são as diferenças entre o Rama em Flor e o Ladyfest?

RSM: O que nos distanciou do Ladyfest foi pensar que estamos em Portugal, em Lisboa, em 2016. A história não é a mesma. O nosso feminismo cruza-se com outras questões: onde estamos, quem somos, quais são os nossos privilégios e quais não são. Muitas vezes as pessoas pensam que um festival feminista é um festival para mulheres, mas não se trata disso. O feminismo é uma ideologia que também serve para salvar os homens da sua masculinidade tóxica. Nós temos papéis de género que herdamos mas que, muitas vezes, não estamos preparados para eles. E um dos assuntos que vamos debater são as várias identidades de género e como o género se pode expressar de várias maneiras porque estamos em 2016 e não existem só homens nem só mulheres, existem muitas identidades de género possíveis. É um assunto muito complexo. Em Lisboa existem muitas pessoas que já não estão escondidas, mas o que sinto, agora que estamos mais perto do festival e que as coisas se estão a tornar mais reais, é que há muito interesse que não estava à espera que houvesse, está a ter uma adesão muito maior do que esperávamos. Há muitas pessoas que se identificam como queer, que têm interesse por questões feministas ou querem ver determinados concertos mas não se conheciam umas às outras. Estamos a criar espaços de encontro para as pessoas se conhecerem. Nós temos os telefones, a Internet, podemos comunicar, mas só quando estamos juntos é que conseguimos interagir realmente uns com os outros, é que conseguimos produzir a hormona da felicidade, tem de haver contacto. A nível das questões sociais também é importante que existam manifestações, encontros, concentrações.

Não seria mais fácil se adotassem o nome do Ladyfest e em vez de criarem algo do zero, com um nome novo?

Daniela Ribeiro (DR): Nós não sentimos isso. Quando anunciámos o festival houve uma adesão muito grande e os comentários no Facebook, tanto de conhecidos como de desconhecidos, foram mais positivos do que estávamos à espera, nem foi preciso contextualizar o festival. As pessoas perceberam. É muito importante para nós ter um nome português. Vai ser um festival com pessoas de cá, que estão a trabalhar questões feministas de cá. Em todas as conferências há investigadores de Coimbra, do Porto, de Lisboa. Pessoas que achámos importante juntar para discutirem questões que se cruzam.

RSM: Sinto que o nome Rama em Flor pode ter muitas interpretações e ser um bocado abstrato, mas também reflete o espírito do festival, tem muitas leituras. É um festival que se caracteriza por ter como palavras-chave a pluralidade, o encontro e o cruzamento. Além disso penso que, para um português, ouvir a palavra Ladyfest parece que se está a referir a uma ladies night, que tem uma conotação totalmente diferente.

Por que relacionam o queer com o feminismo? O que têm estes dois temas em comum?

RSM: Por que razão os vários movimentos estão com buracos entre eles? Sinto muitas vezes que no ativismo mainstream ou nas principais associações e movimentos existem demasiados espaços. Se quem está contra nós consegue perceber que há coisas que nos unem porque é que nós não nos conseguimos unir? O que queremos aqui é debater e promover diálogo, ou seja, o nosso objetivo é que exista uma partilha, união. Entre todas as experiências de minoria tem de haver não só uma tentativa de união mas também de compreensão. Faço uma crítica ao movimento LGBT que deixa de fora e descrimina muitas vezes as pessoas que não são brancas, as identidades trans e as mulheres. Muitas vezes o movimento feminista, num modo mais clássico, também só protege determinadas mulheres, deixando de fora as mulheres da classe operária. Tem de haver um maior diálogo, confronto e, a nível político, ideias que sejam trocadas. Nas conferências, onde isso se vai pôr mais em jogo, vamos ter experiências trans, mulheres e homens artistas, teóricos. E a nível de bandas tentámos também ter alguma representação de pessoas que não são brancas e que são de outros países. No fundo, o queer e o feminismo são dois movimentos que procuram, de certo modo, assegurar a prática dos direitos humanos.


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Que tipo de pessoas vão marcar presença no festival?

DR: Era importante que o festival fosse além do público da ZDB, que já está um bocadinho sensibilizado a estas questões. Não sei se vamos conseguir isso ou não. Pelo feedback que temos tido do Facebook estamos a conseguir ir além desse meio. Queremos as pessoas a discutir e falar sobre estas questões.

Quais são os filmes que vão passar no ciclo de cinema?

DR: Lançámos o desafio à Rabbit Hole para programar o ciclo de cinema com a obrigatoriedade de serem filmes portugueses – só um é que não é – e que fossem da década de 70 até agora. Há muita gente que me diz que o feminismo nunca existiu em Portugal, que nunca existiram movimentos feministas em comparação com outros países. Após o 25 de Abril surgiram grupos de mulheres muito ativistas a quem os media não deram atenção nenhuma, foram sobrepostas por outras causas sociais mais abrangentes que decorreram depois da revolução. Por isso, achámos importante dar protagonismo a essas grandes coisas que se fizeram nessa altura. Então temos filmes que se focam essencialmente sobre as questões das mulheres. Como é o caso do filme O Caso Sogantal, que fala sobre a greve de 48 operárias que fizeram resistência após a revolução. É com esse filme que começa o festival, é um documento histórico muito importante. Há um sobre o aborto. A [jornalista] Maria Antónia Palla chegou a ser presa à custa desse documentário e foi muito polémico. Mostramos também novos realizadores que se estão a debruçar sobre estas questões, como é o caso da Joana Linda, o Miguel Bonneville e Cláudia Varjão. São 13 filmes, muitos ficam de fora. Estes filmes raramente são exibidos. Não percebo porque é que a RTP tem estes filmes no arquivo e não facilita mais a sua exibição. Achámos que era importante passar a ideia de que essas preocupações sempre existiram cá apesar de terem sido um pouco apagadas da história. Dizer que somos um país que não tem essa tradição é um bocadinho injusto. Não é um discurso oficial, mas existe.

Onde se podem adquirir os bilhetes?

DR: Podem adquirir na ZDB em dias em que estivermos abertos ou em pré-venda na Tabacaria Martins. Os restantes eventos, fora da ZDB, são todos grátis. Só o cinema e os concertos é que são pagos, dois e seis euros, respetivamente.

Pode consultar aqui toda a programação do Rama em Flor