Na véspera dos 20 anos da estreia de O Sexo e a Cidade, falámos com Júlia Pinheiro, Patrícia Muller e Raquel Strada. Três gerações, três olhares de mulheres portuguesas sobre a herança pessoal e social deixada pela série
Estávamos a 6 de junho de 1998 e o canal do cabo norte-americano HBO arriscava ao emitir o episódio piloto de uma série que retratava o quotidiano pessoal, profissional e, sobretudo, amoroso de quatro amigas nova-iorquinas, profissionais de sucesso, no final da década de 90 do século passado.
Ainda faltaria algum tempo até que Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker), Samantha Jones (Kim Cattrall), Miranda Hobbes (Cynthia Nixon) e Charlotte York (Kristin Davis) se sagrassem ícones de estilo pelo mundo. Faltaria também algum tempo até que as quatro personagens chegassem a Portugal e provocassem ora suspiros, ora alegrias, ora lágrimas. Mas, ao mesmo tempo, muitas simpatias. Mas lá aterraram por cá e deixaram as suas marcas!
Amanhã, quarta-feira, e no momento em que se evocam 20 anos sobre a estreia do primeiro episódio – ainda muito longe do glamour e da moda que o quarteto de protagonistas iria incorporar nas temporadas seguintes -, o Delas.pt foi ouvir várias gerações de mulheres portuguesas e perceber o que é que a série lhes trouxe ou mesmo lhes mudou os hábitos. Ou, pelo contrário, nada disso.
Fiéis seguidoras, Patrícia Müller, argumentista e fã confessa da série, Júlia Pinheiro, apresentadora e responsável de programas da SIC, e Raquel Strada, apresentadora, deixaram bem claro o que é que esta trama de seis temporadas, 94 episódios e dois filmes – longe de serem bem recebidos e amados – lhes trouxe.
“Mais do que o sexo, era a questão do poder”
“A série tinha mulheres bonitas, atraentes, bem-sucedidas. Por isso, mais do que o sexo, a série trazia a questão do poder, que é muito importante”, analisa a argumentista e autora de novelas e tramas como Madre Paula, exibida na RTP1.
Patrícia Muller tinha à volta de 18 anos e era jornalista numa revista feminina quando tomou contacto com a história do quarteto nova-iorquino. Por isso, O Sexo e a Cidade ficou-lhe cravado na memória e no quotidiano. “Elas vieram dizer-nos que podíamos ser emancipadas, independentes e ter uma vida livre”. Uma liberdade que permitia ser-se o que se quisesse, sem limitações: “Fosse para ser como a Samantha, que procurava todos os parceiros, fosse para ser Charlotte, que sonhava ter uma vida romântica e ser dona de casa”, recorda Patrícia Muller.
E prossegue: “Elas iam, tentavam a sorte, levavam porrada no amor e a nível profissional e não tinham medo”. E a prova disso mesmo está no genérico da história. “Tinha imenso sentido de humor. Lá estava a Carrie toda gira, cheia de influência a levar com uma chuvada de lama de um autocarro”, recorda a autora, que conta que a produção da HBO foi “muito formadora da sua personalidade”.
“Elas iam, tentavam a sorte, levavam porrada no amor e a nível profissional e não tinham medo”, diz Muller
“Mostrou mulheres que tinham uma relação com sexo e corpo muito liberta, o que, para Portugal, fez imensa diferença. A forma como elas falavam, como se entendiam, como elas eram livres”, recorda Muller, exemplificando: “A maneira como falavam do sexo oral, da homossexualidade, das escolhas íntimas e do amor associado a isso era muito diferente. Essa liberdade acabou por influenciar muito as pessoas.”
Série “instrumentalizou a vaidade” e vendeu Nova Iorque
Júlia Pinheiro considera que a série teve “forte impacto cultural” pelo “empowerment das mulheres ou a sua assunção como seres que não devem ser instrumentalizados pelos homens, que não devem seguir os estereótipos definidos pelos homens”.
Contudo, o maior legado – e talvez o maior objetivo – está longe de ser o que foi acima enunciado. Ou apenas esse. “A série veio sobretudo vender e promover um estilo de vida, foi um grande cartão turístico à cidade de Nova Iorque, a uma certa forma cultural de amor a uma cidade”, considera a programadora, que simplifica. “Foi um grande e sistemático hino àquele microcosmos dos Estados Unidos da América”.
A apresentadora fala mesmo em aspetos na história – que seguiu fielmente – que a “incomodavam um bocadinho”. “Havia uma banalização daquilo que é o sexo e as relações sexuais e daquela maneira como as quatro mulheres de Nova Iorque – para algumas pessoas – viviam a sua sexualidade: tendo vários parceiros, vários romances.” Ora, realidades que em pouco ou nada impressionaram Júlia, uma vez que, como revela, teve “a sorte de ter muitas amigas que foram protagonistas de conquistas nos anos 60 e que já faziam muito do que a série retratava”.”Só que esses produtos televisivos não existiam na altura”, lembra, aos incautos, a programadora.
“As mulheres sempre tiveram vários relacionamentos, sempre viveram a sua sexualidade da forma como consideravam, mas era tudo mais discreto”, refere Júlia
Portanto, para o rosto das manhãs da SIC, O Sexo e a Cidade “não descodificou nada” porque as “mulheres sempre tiveram vários relacionamentos, sempre viveram a sua sexualidade da forma como consideravam, mas era tudo mais discreto”. “Se traz algum benefício tudo isto passar a ser menos discreto? Não sei… pode ser uma questão cultural ou de geração”.
Sem meias palavras, a programadora deixa ainda mais claro: “A série instrumentalizou a nossa vaidade. E, em todas as redes sociais, deixámo-nos instrumentalizar e fazemos hoje exatamente aquilo que não queríamos: ser objeto e objetificarmo-nos.”
Cocktails e sapatos, os suspiros das espectadoras
Nem sempre Samantha, Miranda e Charlotte foram as únicas amigas de Carrie Bradshaw. A cronista tinha um aliado muito peculiar para afogar mágoas e tristezas e ele vinha em forma de vodka, Cointreau, sumo de arrandos e lima e raspas de laranja. Dito assim, sabe a pouco! Falamos, claro, do Cosmopolitan, o cocktail que conheceu o estrelato televisivo com esta série. Quem não o provou por causa da série, que atire a primeira pedra de gelo. “Cosmopolitans? Quem nunca? Só para me armar em boa bebi bastantes”, recorda Patrícia Muller, entre risos.
Raquel Strada também não nega. “Fui beber, experimentei-os à conta delas”, revela, bem-disposta. No entanto, o rosto da SIC foi ainda mais longe. “Comprei uns [sapatos] Malono Blahnik por causa da Carrie. Não comprei igual porque não sou assim, mas tive de o fazer para saber como eram, se eram confortáveis. E eram.”
“Cosmopolitans? Quem nunca? Só para me armar em boa bebi bastantes”, recorda Patrícia Muller“Comprei uns [sapatos] Malono Blahnik por causa da Carrie”, conta Strada
A beleza da produção arrisca ter sido um dos ingredientes para o sucesso. “Víamos a série porque era esteticamente muito boa, as roupas eram muito bonitas, os rapazes eram muito bonitos. Talvez visse mais por isso do que pela procura em matéria de reflexão social ou de conteúdos”, analisa Júlia Pinheiro, lembrando até que o quarteto de nova-iorquinas “andava à procura de marido, de uma relação perfeita”. Enfim, por este prisma e dito desta forma, não configura propriamente de uma revolução…
Contudo, Júlia acrescenta: “a série arriscava numa linguagem mais solta, naquilo que era a vivência daquelas pessoas que estavam claramente 20 anos à nossa frente em hábitos e consumos de moda, de beleza e sapatos.”
“A série mudou, em parte, a ideia que temos da moda”
“A certa altura é um bocadinho fantasia… Elas viviam uma vida quase irreal, vestiam as melhores roupas, frequentavam os melhores sítios e eram magérrimas, estavam ótimas, mesmo bebendo e comendo imenso”, ri-se Muller. Raquel Strada, que vive dos seus rendimentos desde os 17 anos, não podia estar mais de acordo. “Uma mulher que ganhe ordenado que elas ganhavam não podia ter aquele tipo de roupa. Quanto mais nós, em Portugal. É uma série de televisão. Ponto”.
A argumentista e a apresentadora concordam ainda num outro aspeto. “A série fazia sonhar. Víamos roupas diferentes, de designers diferentes, apreciávamos a forma como combinavam as peças de natureza distinta. A stylist [Patricia Field] da série é maravilhosa”, diz Strada.
“A Carrie ensinou-nos como era possível juntar roupas caras com peças baratas, saias rodadas com aqueles tops justos e ser-se muito elegante”, refere Muller
“A roupa da Carrie era incrível, ela ensinou-nos como era possível juntar roupas caras com peças baratas, saias rodadas com aqueles tops justos e ser-se muito elegante. E acho que mudou, em parte, a ideia que temos da moda. Depois, gostava mais das misturas que ela fazia, das coisas vintage que ela usava. A ousadia…” , suspira a escritora Patrícia Muller.
Os temas que fizeram falta e as verdadeiras mulheres
Para lá do humor e do amor, a trama cumpria um papel, considera a autora de Madre Paula. “Elas abordavam as questões dos preservativos, das doenças e da proteção, a necessidade de se ter cuidado, de se ser uma pessoa minimamente responsável”.
Não duvida, contudo, que o caso, hoje em dia, teria outra configuração. “A história mostrou o lado mais cor-de-rosa dos vestidos e das festas, fez muito por nós. É claro que, hoje em dia, seria diferente… Já não há cor-de-rosa. Hoje, falamos de #MeToo, de violação, de assédio. Fomos mais longe, tudo está mais no osso”, analisa. “As mulheres abririam a comporta e já ninguém se cala!”, acrescenta Patrícia.
Já Júlia repara antes nos temas que ficaram omissos, mostrando que o trabalho que as mulheres tinham de fazer ainda era longo e nem sequer começou na história criada por Candace Bushnell.
Ao invés, estava a ser e tem vindo a ser feito por mulheres reais e de fora da televisão. “Não me lembro de ver lá retratada a igualdade salarial, não me lembro das questões do assédio, nunca nenhuma delas foi confrontada com o facto de ser violentamente maltratada a nível físico pelos homens, e tudo isso já existia na sociedade”.
“Havia ali uma irmandade, uma espécie de sisterhood, em que se mostrava que as mulheres, juntas, eram mais fortes, e isso era giro e inteligente na singularidade”, refere Júlia Pinheiro
Há, no entanto, um aspeto que a responsável de programas da SIC destaca: “Havia ali uma irmandade, uma espécie de sisterhood, em que se mostrava que as mulheres, juntas, eram mais fortes, o que era giro e inteligente na singularidade”.
Afinal, como explica e sublinha Júlia Pinheiro, essa mexida estrutural só chegaria bem depois da série começar e em vésperas da trama terminar. “A grande revolução das mulheres chegou nos últimos anos, tem sido mais eloquente e visível e, se calhar incensada nos últimos tempos, pela capacidade económica e pelo avanço do sexo feminino em lugares de destaque nos vários quadrantes, levando-nos a maneiras mais livres de expressão e de diversidade”.
O Sexo e a Cidade? “Nós, mulheres reais, é que somos a novidade do século XXI”, conclui a programadora.
Imagem de destaque: DR