“O SNS não tem resposta para enquadrar iniciativas sem fins lucrativos”

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[Fotografia: DR]

Três semanas depois de o Delas.pt ter avançado em primeira mão o projeto civil que queria produzir meios de proteção, no caso cógulas, para quem está na linha da frente no combate à pandemia, é tempo de fazer o balanço.

E se naquela altura em que o molde foi disponibilizado a título gratuito o horizonte era a produção e entrega de 500 unidades gratuitas à comunidade, o objetivo já se multiplicou por dez e reuniu cidadãos de múltiplas regiões do país e de vários quadrantes.

O mentor da ideia Marco Moreira, arquiteto na câmara de Odivelas, faz o balanço da iniciativa, explica em que fase está o processo, quanto dinheiro foi angariado e onde foi gasto e revela os obstáculos que tem sentido precisamente no que diz respeito à possibilidade de certificação das cógulas produzidas.

Duas semanas depois, quantas cogulas e outros equipamentos foram produzidos? Quantas pessoas envolvidas?

Cerca de 5000 e entregues cerca de 3000, 300 pares de botas/perneiras, 200 batas e umas centenas de máscaras cortadas para envio. Talvez perto de 90 a 100 – pessoas individuais, empresas, instituições nomeadamente da Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa através do projeto social Bip Zip. Não sei precisar porque se optou por um sistema de produção em modo regionalização (risos).

Quantos esperam fazer ainda e qual o horizonte temporal?

Pensamos fazer cerca de sete ou oito mil, estimativas calculadas com base na matéria-prima disponível até ao momento e a quantia existente na conta solidária que se criou para esta ação. Obviamente, não estou a contar com as quantidades de cógulas que entretanto várias comunidades, pessoas individuais, costureiras e bloggers de todo o país – e também no estrangeiro – começaram a produzir, após eu ter iniciado este movimento. Algumas delas têm aparecido nos media. No cômputo geral, avançaria com 15 mil, talvez mais.

Quem vos tem pedido material?

Os profissionais de saúde. Inicialmente eram enfermeiros, atualmente são os próprios chefes de serviço e até temos sido abordados por parte da administração de hospitais. Também tivemos câmaras que se juntaram à ação, mas de modo a que esta mantivesse o propósito solidário inicial, sugerimos que estes organismos fizessem também ações paralelas, tendo a nosso apoio com a disponibilização de moldes e de contactos de fornecedores, sendo exemplo Nazaré e Lisboa.

Quais os maiores obstáculos sentidos neste processo? Porque e da parte de quem?

Deixo só uma palavra de enorme gratidão para com todos os cidadãos que, de modo individual ou corporativo, se uniram e começaram, por sua iniciativa, a produzir e a oferecer do seu bolso equipamento que, apesar de não estar homologado, tem feito muito, mas mesmo muito, para que a célebre curva achatada não inclua grande parte dos profissionais de saúde, que, sem condições adequadas, tiveram que procurar ajuda nestas iniciativas solidárias.

Reiterou a necessidade da certificação do processo no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA). Como está o processo?

Após alguns dias de telefonemas para o INSA, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) depois divulgou que a certificação seria afinal no Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal (CITEVE) e com aprovação do Infarmed.

A que se deve a demora?

Não sei. No entanto, o TNT (Tecido Não Tecido) não deixa de ser reconhecido pelos profissionais de saúde como material descartável de possível uso hospitalar, após testes em autoclave. Talvez essa seja a razão pela qual algumas autarquias aderiram também a este movimento.

Inscreveu-se no site do SNS donativos. Que respostas teve?

Inscrevi-me, salvo erro, a 20 de março, apresentando o equipamento, o conceito solidário, juntando o link para a minha página pessoal do Facebook, na qual apresentava o molde, o TNT e vídeos de ensaios caseiros de resistência e impermeabilidade com o material. Reiterei a minha preocupação com a aprovação do material, uma vez que tinha havido enorme adesão em todo o país, pedindo que me facultassem o acesso ao INSA. Da resposta transcrevo o seguinte: “Assim que obtiver [o autor da candidatura] aprovação dos seus equipamentos, entre novamente em contacto connosco”. Pedi, de novo, que me orientassem, uma vez que era precisamente a aprovação que eu pensava estar a requerer.

E que resposta obteve.

Na segunda resposta breve direcionaram-me para uma página do Ministério da Saúde com o título: Orientações para a colocação no mercado de produtos sem marcação CE por parte de fabricantes nacionais que habitualmente não os produzem. O SNS não tem resposta específica para enquadrar iniciativas sem fins lucrativos. Seria interessante saber que experiência outras iniciativas tiveram no SNS.

Sem certificação, o que lhe disseram os profissionais que lhe estavam a pedir cógulas?

No inicio estava com receio, uma vez que fui o impulsionador do uso de TNT a nível nacional, sentia o peso da responsabilidade. Mas fui perdendo o medo quando comecei a obter respostas de vários serviços de hospitais, nos quais o material tinha sido testado em autoclave. Inclusivamente, na semana passada, testámos em autoclave durante cerca de oito horas, três amostras de gramagens diferentes e portaram-se muito bem. No entanto, juntamente com muitos outros equipamentos fruto de movimentos solidários sem fins lucrativos, continuamos a fornecer indiretamente o SNS, com a diferença de não entrarmos para os números oficiais. Mas o importante é estarmos a permitir que profissionais de saúde estejam minimamente protegidos pela primeira vez.

Criou um fundo. Quanto foi angariado e como tem sido despendido este dinheiro?

Criámos uma conta solidária apenas depois de obtermos o ok informal de, pelo menos, cinco equipas de hospitais diferentes de modo a não incorrermos num movimento fraudulento. Foram angariados cerca de 2600€ até ao momento. Mas o saldo já está a 10%. Comprámos TNT – que veio a aumentar o preço ao longo destas semanas -, elásticos – que apesar de não usarmos nos nossos equipamentos, produziram para nós um lote de três mil metros. Pudemos, com isso, ajudar outros projetos solidários paralelos de comunidades que, além de nos ajudarem, também integram outras ações. Além disso, gastámos uma parte em envios de encomendas, pois até ao momento não obtivemos parceria de nenhuma transportadora das que contactamos.

Que balanço pessoal faz deste projeto?

Não diria um balanço pessoal, uma vez que esta iniciativa só foi possível com a ajuda de muitas pessoas e algumas empresas, dos quais a maioria não conheço pessoalmente. Mas ainda assim, estou de coração cheio e diria que viajei imenso, sem quase sair de casa. Conheci muita gente interessante e com espírito de entreajuda fantástico e aprendi sobretudo que, independentemente da matriz subjacente a cada um dos movimentos solidários, o importante é que os profissionais de saúde saiam com certeza a ganhar, dada a quantidade de equipamento que está a ser produzido em todo o país. A lição pessoal que posso retirar é que a energia que existe é só uma, cabendo a nós transformá-la.

Que outras iniciativas tem em mente?

A primeira, não está apenas em mente, já se encontra em fase de concretização: transformação do desperdício de TNT em máscaras para enviarmos para uma ONG humanitária da Guiné-Bissau, onde é voluntário um conterrâneo meu, uma vez que não têm qualquer equipamento de proteção individual. Estamos a cortar os moldes, para poderem ser executadas as máscaras pelas comunidades da Guiné-Bissau. A segunda é promover um encontro com todos os voluntários, famílias e amigos, depois de tudo passar, para que possamos conhecer presencialmente, abraçar e podermos tirar uma fotografia de família.