O teatro visto pelas mulheres que o fazem

cucha2INDOS-DIAS!,-de-Samuel-Beckett,-que-estreará-a-12-de-Abril,-com-encenação-de-Sandra-Faleiro.-As-fotografrias-são-da-Estelle-Valente.

No dia Mundial do Teatro fomos falar com Fernanda Lapa, Cucha Carvalheiro, Maria do Céu Guerra e Maria João Luís, quatro encenadoras e atrizes portuguesas, para saber qual o papel das encenadoras nacionais para a criação de uma sociedade mais paritária.

As mulheres portuguesas desde sempre se têm interessado pelo teatro, pela sua escrita, encenação e pelo trabalho como atrizes. A partir dos anos 90 foram as mulheres que deram à luz muitos dos espetáculos mais irreverentes, entre elas Mónica Calle (A Virgem doida, por exemplo) e Lúcia Sigalho. O reconhecimento do público, esse, não foi imediato. Porquê?

Maria do Céu Guerra, 74 anos, diretora e encenadora do Teatro A Barraca desde 1975, diz que tem a ver com a ideologia. Para Fernanda Lapa, 74 anos, atriz e fundadora da Escola de Mulheres em 1995, está mais relacionado com política. Mas, esmiuçando, a explicação é semelhante: “tínhamos a Amélia Rey-Colaço e a Maria Luzia Martins como encenadoras e era quase tudo, de resto, as mulheres só conseguiam ser atrizes”, conta a diretora da Barraca. A primeira encenou peças no Teatro Nacional D. Maria durante 35 anos, a segunda fundou o Teatro Estúdio e trouxe para Portugal textos dos grandes dramaturgos contemporâneos nas décadas de 60 e 70.

“Não havia confiança em nós para que escolhêssemos um repertório, um elenco ou geríssemos um orçamento. Até podíamos ser talentosas, inteligentes e ter uma carinha laroca, ou aparecer nuas… mas era só isso, nem era uma questão de censura. Ainda há uns poucos anos uma companhia interessante do Porto, As Boas Raparigas, encerrou por falta de apoios,” lembra Maria do Céu Guerra.

Fernanda Lapa acrescenta: “Eu tive sempre mais alunas que alunos e eram eles quem conseguiam os empregos sobretudo nas áreas técnicas, embora isso esteja agora a mudar lentamente”.

Fernanda Lapa fundou a Escola de Mulheres, companhia militante onde os textos encenados têm temáticas que dizem mais respeito às mulheres

Foi para ajudar a implementar mudanças que Fernanda Lapa convocou outras atrizes – Cucha Carvalheiro, Isabel Medina, Cristina Carvalhal, Marta Lapa, Conceição Cabrita e Aida Soutullo – para fundar a Escola de Mulheres, em 1995. A encenadora acredita no teatro como motor de mudança: por si só não resolve os problemas da sociedade “mas do meu ponto de vista poderá agitar consciências e problematizar grandes questões sociais”.

“Estávamos fartas de esperar que os homens de teatro nos escolhessem para interpretar peças que não tínhamos escolhido, escritas por homens que davam imagens idealizadas das mulheres.”

Para Fernanda Lapa não existe democracia sem paridade e na altura estava cansada. “Estávamos fartas de esperar que os homens de teatro nos escolhessem para interpretar peças que não tínhamos escolhido, escritas por homens que davam imagens idealizadas das mulheres. Quando alguma de nós encenava uma obra era quase por especial favor de um diretor de companhia e numa altura em que não lhe dava jeito encenar. A maior parte dos teatros em Portugal era dirigida por homens, com elencos maioritariamente masculinos e que interpretavam peças escritas por homens. Ninguém se parecia incomodar com esse facto. Afinal, era assim há séculos…”

A chegada da democracia ao país não altera necessariamente esta situação, de acordo com a encenadora: “Mesmo após a revolução de abril, em que as mulheres estiveram na luta, integrando estruturas teatrais, exigindo apoios estatais, correndo o país de lés a lés em condições difíceis, lado a lado com os seus colegas homens, mantiveram-se subalternas…”

Por outro lado, acredita que a arte é poderosa e o teatro fala diretamente ao espetador – de seres humanos para seres humanos. Essa é a singularidade que o torna diferente do cinema ou da televisão.

“Quando encenei A Mais Velha Profissão, disse-me um técnico do teatro: ‘Passei a olhar para as prostitutas com outros olhos’. Só por isso valeu a pena ter feito o espetáculo!”. Com a encenação de mais de três dezenas de peças no currículo, quase todas abordam temas ligados a problemáticas quase exclusivamente femininas, sendo também na sua maioria textos de autoras mulheres, como Caryl Churchill e Paula Vogue. “Mas sem descurar a vertente artística, a encenadora alerta. Não somos só uma companhia de mulheres, somos militantes, e procuramos abordar temas com que as mulheres se identifiquem e de que poucos se atrevem a falar”.

O teatro como forma de mudar o mundo

Maria do Céu Guerra afirma que o teatro era um meio preconceituoso para as mulheres

Maria do Céu Guerra, cuja carreira se iniciou em 1963 na Casa da Comédia, numa peça curiosamente chamada Deseja-se mulher, também não é de ficar de braços cruzados e escolheu o teatro como a sua arma de luta. É verdade que se tinha dado o 25 de abril, as mulheres podiam votar, viajar sem autorização dos maridos e até montar os seus próprios negócios. Mas de que adiantava depois de séculos de submissão? “Se alguém trabalhava era por necessidade,” lembra Maria do Céu Guerra, “se tinha um cargo de topo já era uma subversão”.

Nessa altura recorreu ao teatro. “Trata-se de uma forma de arte e que, como outra qualquer, retrata quem a faz e ajuda a definir quem a vê. E, se os homens são diferentes das mulheres fazem-no de formas distintas”, afirma. “É sempre uma forma de exercer poder, mas nós – mulheres – exercemo-lo de forma partilhada. E é sempre uma festa. Mesmo que em pranto, é uma festa. Aprofunda-se mais a informação”.

Quanto à escrita feminina, não sabe sabe se existe alguma em particular. Alguns autores feministas como Cixous defendem que a mulher só se pode reescrever a si mesma e se relocalizar num outro espaço através da sua própria escrita, senão não passará da representação do desejo masculino. No entanto, Maria do Céu recorda-se que a peça mais feminista em que participou foi retirada de textos de Gil Vicente – Menino ou Menina. “Revi todas as personagens femininas à luz de um outro outro”. Revelou que ao longo de séculos as mulheres só podiam ser alcoviteiras, amantes do padre, parteiras clandestinas, empregadas ou prostitutas. “Ou seja, percebemos que, em cinco séculos, evoluímos muito pouco”. Há sempre uma forma de dar a volta à coisa.

Em cena está agora uma peça que remete para a escravidão e prostituição infantil: “Erêndira! Sim, avó…”, de Gabriel Garcia Marquez, mais um tema para refletir como sempre são os textos levados à cena na Barraca, desde há 42 anos.

É melhor estar atento para a história não regredir

Maria João Luís fundou o Teatro da Terra em Ponte Sôr. Quer levar o discurso a igualdade ao país interior

Para Maria João Luís, 53 anos, atriz e encenadora, a encenação surgiu de forma muito natural na sua vida artística – digamos que a par da representação. Estavam ambas incluídas nas performances que aconteciam na Escola Secundária António Arroio em Lisboa, escola que frequentava. Diz a atriz que para ela encenar é tão natural como respirar.
Não o vê como um ato revolucionário, mas como uma forma natural de estar no mundo. E detesta generalizar. “Pessoas boas há-as em todos os géneros; é-nos muito fácil hoje dizer que um homem é um malandro, por exemplo”. Mas também assegura que “o melhor é não facilitar, porque a História pode facilmente regredir e o melhor é estar atento”.

Acredita, no entanto, em diferentes sensibilidades. Talvez aquelas que a levaram a escolher peças como a Flor da Honestidade – texto em que é privilegiada a honestidade de uma menina à beleza e riqueza de outras – ou 150 milhões de escravos – obra que se debruça sobre a questão da escravatura sobretudo infantil nos países africanos patrocinada pelo ocidente). Ambas foram encenadas no Teatro da Terra, em Ponte de Sôr, companhia que a atriz fundou e onde encena quando não está a gravar telenovelas ou a interpretar personagens nos palcos de Lisboa.

“Pessoas boas há-as em todos os géneros. é-nos muito fácil hoje dizer que um homem é um malandro, por exemplo, Mas o melhor é não facilitar, porque a História pode facilmente regredir.”

Para Maria João Luís, em cena atualmente no Teatro do Bairro com a peça Ivone, Princesa de Borgonha, o mais importante é fazer chegar este ambiente aparentemente igualitário ao resto do país através do teatro, por exemplo. Porque Porto e Lisboa não refletem o que se se passa no restante território. “É tudo um trabalho político”, afirma. Que ela mesma já começou a cavar com as próprias mãos nas terras do interior.

É preciso criar novos sujeitos masculinos

Cucha Carvalheiro, 69 anos, encenadora e uma das fundadoras da Escola de Mulheres em 1995, está prestes a estrear a peça Happy Days, de Samuel Beckett, em cena de 12 a 22 de abril na Sala Estúdio Mário Viegas. A encenadora recorda: “Aqui há uns anos fui a Epidauro, queria ver ao vivo o mítico anfiteatro da Grécia Antiga onde o teatro, tal como o conhecemos na Europa, terá nascido. E descobri que Epidauro era uma zona termal: havia as termas, nas quais as pessoas tratavam do equilíbrio do corpo e, ao lado, fazendo parte do conjunto, o teatro que, certamente, equilibrava o espírito. Acredito que o teatro poderia contribuir para o aforismo ‘conhece-te a ti mesmo’, que fosse inspirador de cidadãos, que estes pensassem pela sua cabeça, fossem mais compassivos, menos violentos, imediatistas e competitivos”.

“Espero que o meu trabalho ajude a que todos os seres humanos exijam ser tratados de igual modo”

Não é que Cucha Carvalheiro acredite que o que acontece em cena imprima novas consciências do feminino, levando apenas as mulheres a tomarem uma nova consciência delas mesmas como seres mais poderosos, “mas apenas espero que o meu trabalho ajude a que todos os seres humanos exijam ser tratados de igual modo”.

E, se algum dia sentiu esse grande desafio, foi ao fundar a Escola de Mulheres e mostrar que à frente de um grupo de teatro, em Portugal, podiam estar mulheres a escolher um repertório – no qual não fossem apenas peças decorativas para compôr um elenco essencialmente masculino – e para exercerem funções que, até então, eram maioritariamente exercidas por homens. “Também quando dirigi o Teatro da Trindade tive essa preocupação: convidei várias mulheres para encenar como a Fernanda Lapa, a Maria Emília Correia, a Graça Corrêa, a Ana Ribeiro, a Lucinda Loureiro e a Cristina Carvalhal”. Por agora, e vinte anos passados, pensa que o prioritário não seja criar um novo sujeito feminino mais forte; mas “um novo sujeito masculino, porque ainda é a grande maioria dos homens que detém o poder e nem sequer tem consciência das muitas e flagrantes desigualdades entre géneros”.

Sara Raquel Silva

foto de destaque: Cucha Carvalheiro fotografada por Estelle Valente