João Maia: “Durante as filmagens vi miúdos de 10 anos que sabiam quem era o Variações”

O filme Variações, com argumento e realização de João Maia, estreia esta quinta-feira nas salas de cinema, de norte a sul do país. Antes disso, o filme é apresentado, numa ante-estreia especial, em Amares, concelho onde António Variações nasceu, faz dia 3 de setembro 75 anos.

O cantor morreu há 35 anos, em Lisboa, mas o seu génio artístico, ainda que fulgurante, foi suficiente para marcar gerações, as que o conheceram em vida e as vindouras, que continuam a descobri-lo, a si e à sua obra. “Durante as filmagens vi miúdos, que se calhar as avós é que eram fãs, que sabiam quem era o Variações. Miúdos de 10 anos! Parece que é um fenómeno que perdura. E foi isso exatamente que aconteceu quando o Variações fez sucesso. Era transversal, dos 8 aos 80“, diz João Maia, em entrevista ao Delas.pt

Em parte, foi esse conhecimento coletivo que ditou a opção de fazer um filme que contasse o que esteve antes e para além desse sucesso. Variações lembra o percurso biográfico do músico, com especial enfoque no período entre 1977 e 1981, destacando a luta do artista para compor e gravar as suas próprias músicas. “Achei muito interessante o período em que o António regressa de Amesterdão e se fixa em Portugal e começa a compor muitas canções, de repente”. É daí que vem também a escolha de colocar o ator Sérgio Praia a dar voz às canções de Variações, em vez de usar gravações dos originais.

“O ideal era ter um ator que também passasse pelo processo como passou o António, só que pensava que era muito difícil encontrar um ator que conseguisse fazer isto tudo. Mas foi o que me aconteceu”, explica o realizador.

Dessa opção resultou uma banda sonora do filme, que será editada a 23 de agosto, um dia depois da estreia, e que conta com ‘Quero dar nas vistas’, um tema inédito recriado por Armando Teixeira (dos Balla), que a assumiu a produção musical, e, através das famosas cassetes de António Variações, deu corpo às canções que ele gravara na garagem, com músicos amadores, no final dos anos 70.

 

Leia, abaixo, a entrevista completa com o realizador de Variações:

O início do processo deste filme tem mais de dez anos. Houve diferendos com a produtora anterior, mas finalmente o filme sai para os cinemas. Como se sente por ver o filme estrear ao fim destes anos todos?
Muito contente. Acho que as coisas também acontecem na altura certa e isto foi a altura certa para este filme acontecer. É um projeto que já tem quase 20 anos, mas as filmagens decorreram de uma forma tão suave, e ao mesmo tempo muito emocional, considerando tudo o que aconteceu, que estou mesmo contente de o filme ter saído agora.

Ele estreia no ano em que se assinalam os 75 anos do nascimento do António Variações e os 35 da sua morte. Teve em conta isso para a data da estreia?

Foi total coincidência. Este filme teve quase para ser produzido há dez anos, o que coincidiria com os 65 anos do nascimento e os 25 anos da morte do António Variações. Na altura, também perguntavam se tinha alguma coisa a ver e também não tinha. E este também foi assim. Houve talvez a hipótese de o filme ser rodado seis meses mais cedo, mas era um filme um bocado complexo de fazer, tinha algumas peculiaridades, como o facto de ser um filme de época, embora seja uma época recente. Lisboa mudou tanto nos últimos 10 anos que fazer um filme passado nos anos 1970 é quase tão difícil como fazer um filme nos anos 40.

Que locais dessa época serviram de base às filmagens?

O guião era quase todo baseado em Lisboa e depois tinha uma parte pequena, que no nosso caso foi uma semana de rodagem – tivemos seis semanas de rodagem, cinco em Lisboa e uma no Minho, onde o António nasceu. Em Lisboa, eu reparava que quando filmávamos em sítios onde as coisas tinham acontecido havia sempre uma solenidade diferente e que os atores reagiam de maneira diferente. Então filmámos mesmo no prédio onde ele viveu. Ele viveu no primeiro andar, nós filmámos no terceiro. Filmámos no Trumps, onde ele deu o seu primeiro concerto. A barbearia que escolhemos era a uns 200 metros da barbearia que ele tinha. No Minho, foi tudo na aldeia dele [aldeia de Pilar]. Filmámos nos Alunos de Apolo uma cena que aconteceu também com ele. Tentámos usar os décors mais aproximados possíveis dos sítios onde se ele movimentava. Houve um décor que tive um bocadinho de pena de não conseguirmos fazer – por dificuldades financeiras – que foi o Chiado, uma zona que ele frequentava muito.

Há uma cave que se vê no filme, numa cena de ensaio do António com uma das bandas. Esse décor também é real, digamos, ou foi recriado?

Não, isso foi num cenário recriado. Essa cave já não existe, mas quando fiz a pesquisa inicialmente ainda existia. Já não tinha os instrumentos, mas ainda tinha as paredes com cortiça. Então, tentámos reproduzir exatamente algo muito parecido com o que fotografei, na altura, dessa cave.

Por que quis contar a história de António Variações? O que é o que o fascinou na história deste homem?

Durante a pesquisa, fiquei fascinado com a maneira como ele era tão obstinado em ser cantor e escrever as suas próprias canções, em ter uma voz no mundo artístico. Isso eu achei logo, desde o primeiro momento, muito fascinante. O António gravou o primeiro disco com 37 anos, que é uma idade muito pouco normal para alguém dar início a uma carreira no mundo do rock. Todos os músicos com quem ele tocava eram miúdos que quase podiam ser filhos dele. E o António nas entrevistas nunca dizia a idade, com medo de poder ser ostracizado por ser muito mais velho. Eu próprio pensava que ele era muito mais novo quando ele gravou, eu tinha 16 anos quando ele morreu, era muito jovem quando ele se fez artista e se tornou famoso mas, na altura, achava que ele tinha pouco menos de 30 anos. Não fazia a ideia que ele tinha quase 40 anos quando gravou o primeiro disco. Fascinou-me perceber isso, entretanto. E depois, quando fui pesquisar, fascinou-me a sua obstinação em querer fazer passar para os outros algo que tinha a ver com o seu mundo, com as suas ideias.

Este filme lembra o percurso de biográfico do autor, mas foca-se especialmente entre 1977 e 1981. Mostra a parte da sua luta para compor e gravar e depois os seus últimos anos de vida. Não se vê muito o seu auge artístico. Porquê essa opção?

Eu achei que o espectador iria ficar mais entusiasmado por conhecer coisas desconhecidas ou menos conhecidas, do que com aquilo que o tornou famoso. Quando ele ficou conhecido toda a gente sabia que ele era barbeiro, que tinha tentado fazer um disco durante muito tempo e, de repente, fez um disco de muito êxito – o Anjo da Guarda foi um disco de muito sucesso – e depois quando saiu o segundo disco, ele morreu logo a seguir. Admito que pudesse também ser uma parte interessante da vida dele – alguém que tentou durante tanto tempo e, de repente, ficou famoso, mas achei que o mais interessante seria mostrar porque é que ele ficou famoso. E durante as filmagens vi miúdos, que se calhar as avós é que eram fãs, que sabiam quem era o Variações. Miúdos de 10 anos! Parece que é um fenómeno que perdura. E foi isso exatamente que aconteceu quando o Variações fez sucesso. Era transversal, dos 8 aos 80, e era alguém que toda a gente achava que era um artista underground, porque ele vinha de um certo underground lisboeta – foi assim que começou. Mas quando ele lançou os discos isso mudou, tornou-se num fenómeno totalmente transversal. E, desde muito cedo, era isso também que eu gostaria que o filme fosse.

Transversal?

Eu sempre senti que gostava de fazer um filme que fosse transversal, de que toda a gente gostasse – embora vá haver sempre pessoas que não gostem. Mas queria que não fosse um filme direcionado só para um tipo de público.

Além de o público jovem ter descoberto o António Variações, também parece haver um conhecimento crescente em relação a ele lá fora, sobretudo, no Brasil, e que nos comentários aos vídeos dos trailers, têm manifestado interesse em ver o filme. Há planos para o passar no estrangeiro?

Sim, existe. No Brasil, existe essa possibilidade. E também aqui na Europa. Mas sinto que no Brasil é uma possibilidade grande. Quando comecei a pesquisa foi já nos tempos da internet e descobri que havia uma pequenina comunidade de fãs do Variações no Brasil. E agora quando puseram estes trailers no Youtube também reparei que havia alguns fãs dele lá. Vamos ver. Mas acho que há possibilidades, sim.

‘Variações’ é um dos filmes mais aguardados do ano, em Portugal. Sai numa altura em que assistimos no cinema a várias biopics. Acha que isso pode trazer ainda mais espectadores para ver o filme?

[Risos] Pois, eu não estava à espera que o filme saísse numa altura em que me fizessem essa pergunta, porque como disse antes, eu estou a trabalhar este filme há quase 20 anos, talvez há uns 17. Na altura, eu já tinha escrito o guião, houve um biopic sobre o Ian Curtis, dos Joy Division [Control, de 2007]. Mas não estava nada à espera que saísse numa altura com tantas biopic, principalmente o filme dos Queen [Bohemian Rhapsody], uma vez que a personagem do Freddie Mercury tem algumas parecenças com o António Variações, embora ele fosse um cantor mais seguro. Mas em algumas têm semelhanças. E o facto de ter tanto feito sucesso, tanto lá fora como cá, é, claro, que fez com que houvesse logo comparações, do género: ‘Cá está o nosso Bohemian Rhapsody’. Mas são coisas que eu, absolutamente, não dominei durante este processo todo. Além de estar neste processo há muito tempo, a rodagem de ‘Variações’ também foi feita antes do filme dos Queen sair. São filmes com orçamentos diferentes…O filme dos Queen teve um orçamento de 55 milhões, o nosso não chegou a 900 mil. É quase 60 vezes mais pequenino, portanto, o espetador não pode estar à espera de ver o mesmo tipo de espetacularidade. Mas eu estou muito contente com o filme que fizemos. Mesmo com as diferenças de orçamento não me queixo de nada.

Este “Variações” é o filme que desejou, que queria mesmo fazer? Ou faria muito diferente se tivesse um orçamento maior?

Não faria muito diferente, para ser sincero. Se tivesse um orçamento maior, se calhar, haveria cenas com mais dinheiro, mais figurantes e com décors maiores. Mas na base, não. Este era o filme que eu queria fazer. Estou mesmo muito contente com o que fizemos.

Por que é que optou por ter o Sérgio Praia cantar as músicas do António Variações, em vez de usar a voz real do cantor?

Eu achei muito interessante o período em que o António regressa de Amesterdão e se fixa em Portugal e começa a compor muitas canções, de repente. E eu não podia recriar isso com a voz do Variações porque o que existe da voz do Variações é ele em estúdio. Não é som que ele teria a cantar numa garagem, ou que teria a cantar em casa, sozinho, a compor, em concertos mais pequenos… Teria de ser sempre alguém a cantar e sempre achei que o ideal era ser o ator. Era muito difícil encontrar um ator que tivesse uma voz igual à do Variações, mas se o espetador percebesse que a personagem queria tanto cantar, que falhava, mas queria tanto… Porque o Variações também não era muito afinado. Tinha um timbre característico, mas muitos problemas técnicos a cantar. E eu achava que o ideal era ter um ator que também passasse pelo processo como passou o António, só que pensava que era muito difícil encontrar um ator que conseguisse fazer isto tudo. Mas foi o que me aconteceu, tive essa sorte e apareceu-me o Sérgio Praia, que é perfeito. Ele fez melhor do que eu estava sequer à espera. Foi assim algo miraculoso.

António Variações foi uma figura algo polémica à altura mas hoje é consensual, muito acarinhada pelos portugueses. O que é espera que o público leve dele? Que António é este que as pessoas vão ver?

Eu já estou um bocadinho longe deste filme. Já o passei aos atores, agora vou passar aos espectadores… Falta-me este bocadinho final. Fizemos várias projeções e fico muito comovido com a maneira como as pessoas têm recebido o filme: pessoas que não o conheciam bem e ficam muito emocionadas com o que o filme lhes transmite. E agora vai ser esta derradeira parte, a parte de perceber o que é que todas as pessoas que vão ver o filme vão achar. Para já, as reações estão entre o positivo e o muito positivo. Eu sempre tentei fazer um filme que fosse universal, mas o que eu reparo é que nos portugueses que já viram o filme, quando o António Variações aparece na figura do Sérgio Praia, parece que há assim um estremecimento, uma eletricidade nas salas, que dura o filme todo. Fico muito comovido por poder proporcionar essa sensação às pessoas e agora vamos ver o resultado quando o filme estrear.

Sérgio Praia: “Cada um de nós tem uma versão do Variações. O fascinante é que ele é muita coisa”