Os tomates delas dão muitas histórias

Mulheres com Tomates

Por Marina Almeida

Um dia, os negócios da família caíram-lhes no colo. Joana, Joy, Leonor e Madalena estão hoje à frente de histórias de amor e luta, que lhes foram legadas por mulheres, mães e avós. Niccolò cresceu a ser a geração seguinte dos chocolates Corallo, que a mãe semeou, mas teve de deixar crescer a barba para o levarem (mais) a sério. Leopoldo resolveu trocar a arquitetura pela cozinha e tornou-se cozinheiro (e não chef) com as receitas da tia Comba. Não, não são só as cerejas que dão conversas sumarentas. Os tomates – que é como quem diz, a garra de mulheres inspiradoras – serviu de mote a um par de horas bem condimentado com muitas histórias e alguma emoção, numa iniciativa com o cunho da Nuts Branding, da área do marketing gastronómico.

Por exemplo, o relato de Joana Macedo, sentada na ponta direita da mesa. Contava como deixou o mundo das artes e se tornou agricultora de rompante. Foi há dois anos, depois da morte da mãe, Maria José, a fundadora da Quinta do Poial e pioneira de agricultura biológica em Portugal. “No sábado a minha mãe foi cremada, na segunda eu estava na quinta [do Poial]. Não tive tempo para pensar. Caiu-me em cima.” Um ficar ou correr sem segunda oportunidade: havia um hectare e meio de terreno, pejado de legumes de cores e tamanhos variados onde Maria José achava que ia “mudar o mundo”, que não esperavam por indecisões. “Na agricultura não vamos ali pensar dois meses e depois voltamos”, resumia Joana perante uma plateia interessada na segunda sessão de Mulheres com Tomates. Uma conversa que decorreu na terça-feira, no Mercado da Ribeira, no âmbito da Lisbon Food Week, e que teve como tema As Sementes.

Da esquerda para a direita: Nicollò Corallo, Joana Macedo, Sandra Nobre, Leonor Freitas, Leopoldo Calhau, Madalena Motta e Joy Jung (Joao Silva/ Global Imagens)

Hoje Joana tem 60 variedades de tomate e continua a descobrir legumes (alguns deles especialmente bonitos) que vão para a cozinha de alguns chefes estrela Michelin. Nem todos ali presentes deitaram sementes à terra, como as que Joana aprendeu a acarinhar, mas todos têm, de uma forma ou de outra, uma ligação ao passar das estações e das gerações num território particular.

Madalena Motta trazia-o na voz, apesar de – garantiu – ter usado o seu melhor “sotaque lisboeta”. Bem-disposta, a proprietária da fábrica de chás Gorreana, em São Miguel, nos Açores, contou como cresceu na fábrica que os seus antepassados inauguraram em 1883. “A fábrica era a nossa família”. Tinha a fábrica de chá na pele de tal maneira, que surpreendeu toda a gente quando, cumprido o 12º ano, resolveu seguir… artes. Convenceu o pai, dizendo-lhe que a fábrica conhecia ela bem e rumou a Lisboa onde fez o curso superior e chegou a dar aulas. Aos 35 anos voltou para casa, estava o negócio periclitante e toda a gente desconfiou da sua capacidade para continuar o negócio da família. “O meu pai disse: ‘ela tem cara de santa mas é diabólica'”, disse arrancando à plateia uma gargalhada forte.

Bem-disposta, a proprietária da fábrica de chás Gorreana, em São Miguel, nos Açores, contou como cresceu na fábrica que os seus antepassados inauguraram em 1883.

Boa disposição e alguma emoção temperaram esta conversa, onde Madalena contou como está a construir uma nova fábrica, olha para o futuro, e faz o negócio rolar com uma equipa entusiasmada – o mesmo entusiasmo que Leonor Freitas conhece, noutra geografia. Aquela a que muitos chamam “Dona Ermelinda”, voltou, com a família, para Fernando Pó, Palmela, no dia em que o pai morreu. Tinha saído há uma década da quinta. “Estava longe de mim voltar para o campo”, contou. Assistente social de formação, deu por ela a viver ao ritmo da vindima e das estações, e a enfrentar gente que lhe torcia o nariz por ser mulher. Lembra-se de se encolher quando ouvia numa reunião “minha senhora e meus senhores”. Mas Leonor voou. “Fui a Bordéus e vi a dignidade com que tratavam o vinho”. Deixou-se fascinar pelos rótulos, pelo carinho à volta daquele néctar que corria nas veias da sua família desde 1920. Primeiro Deonilde, depois Germana, seguindo-se Ermelinda, a mãe de Leonor – uma dinastia feminina que vai na quarta geração, com descendência assegurada. No reinado de Leonor Freitas, os 60 hectares de vinha ganharam novas castas, chegaram as marcas e os prémios. Mais de mil, orgulhava-se. “Isto tudo é de uma mulher que não estava preparada”.

Joy Jung sabe bem como a morte da mãe, Claudia, se tornou a semente da sua nova vida. Joy tinha por “irmã gémea” uma casa com o seu nome, e a luta entre ambas pela atenção da mãe era desigual. A Vila Joya, na Galé, Algarve parecia levar sempre a melhor. Claudia Jung sonhara em criar um pequeno hotel com um restaurante excecional na casa de férias da família alemã. Um encanto sobre a falésia, que recebeu a primeira estrela Michelin em 1995, e que Joy passou a gerir após a morte da mãe, dois anos depois. Os funcionários que a viram crescer olharam-na de lado, os clientes ofereceram-lhe flores e Koschina, o chef, punha-a em sentido na apresentação. Hoje Joy já não vê a casa como uma concorrente ou só como um projeto da mãe, mas como algo já um pouco seu.

Leopoldo Calhau está entre restaurantes. O arquiteto que resolveu ser cozinheiro aos 35 anos contou como a mãe, que aprendeu a cozinhar por correspondência quando se casou com o pai, o marcou. E como a tia Comba, que escrevia cartas com receitas, é outra inspiração divinal para os pratos que cria. “Eu sou o único que estou aqui por opção”, salientava. Porque sempre gostou de comer, de ver as matriarcas gastronómicas da família cozinhar, porque sempre teve no frigorífico os produtos da estação.

Ao lado da moderadora da conversa, Sandra Nobre, senta-se Niccolò Corallo, aquele sortudo que “cresceu numa fábrica de chocolates”, brincou ela. Ele sorri e diz-nos que está ali porque a sua mãe, Bettina, está em viagem. Mas não faz mal. O miúdo que nasceu na Argentina e cresceu entre plantações de café e cacau em São Tomé, também tem o que contar. A história de Niccolò, um dos três filhos de Bettina, parece confundir-se com a da mãe até mais ou menos o momento em que deixou crescer a barba “para ser respeitado e ouvido com seriedade”. Hoje segue as pisadas do negócio familiar que, desde 2008, tem um pé em Lisboa, na loja do Príncipe Real. “Quando uma pessoa é muito boa naquilo que faz, perguntam ‘o que vais fazer’ e eu respondo ‘o que sei fazer melhor'”. Por isso, após algumas dúvidas e hesitações, também Niccolò não escapou à linhagem chocolateira.

A conversa, claro está, foi como os tomates. Já passava da hora quando a plateia saciou o apetite de perguntas.

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