Será que a ilusão do Pai Natal prejudica as crianças?

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Os centros comerciais e as lojas já o anunciam há quase um mês. A quadra festiva aproxima-se a passos largos e traz com ela a figura que quase todas as crianças veneram: o Pai Natal. A maioria dos mais novos vive intensamente a maravilhosa ilusão e a expectativa do presente que será deixado no sapatinho, deixado pelo velho amável de barbas brancas que vive no Pólo Norte rodeado de duendes ajudantes. É um mundo mágico que muitos pais gostam de alimentar, geralmente porque também eles o viveram e – com redobrada alegria – revivem através dos filhos. Mas será que, mais tarde, a desilusão e o confronto com a realidade poderá ser prejudicial aos mais pequenos? É melhor viver alegremente a fantasia do Pai Natal, ou encarnar de vez a personagem Grinch – aquela personagem rabugenta que quer acabar com o Natal no filme de Brian Grazer – e oferecer ao seu filho a verdade dos factos?

Madalena Pinto, 37 anos, recorda com carinho os Natais da sua infância. “Na época falava-se mais do menino Jesus, não tanto em Pai Natal, apesar de também ser importante. Lembro-me como se fosse hoje da forma como toda aquela ilusão me encantava. Acreditava piamente que era mesmo o Pai Natal que entrava pela nossa casa dentro, não havia nada que me dissesse que aquilo não fazia sentido. Era uma época mágica para mim. Ainda acreditei em tudo isto até aos meus 6 ou 7 anos, quando um dia uma vizinha minha, mais velha do que eu uns 5 anos, me contou que nada daquilo era verdade, em tom de desdém e até ligeiro gozo, pela minha ingenuidade. Fingi que não me tinha afetado, mas fiquei petrificada nesse momento. Custou-me imenso, acho que até chorei depois. Foi o fim do mundo de fantasia que durante tantos anos me tinha feito tão feliz!”

Ana Rita Botelho Moniz Dias, Psicóloga e especialista geral em Psicologia da Saúde e especialista avançada de Psicoterapia e Intervenção Precoce, afirma que, dependendo da forma como é abordado, o tema Pai Natal pode ser um contributo importante para o harmonioso desenvolvimento afetivo e emocional da criança. “A fantasia ocupa um lugar fundamental na vida da criança. Quando ela adquire a capacidade de fantasiar torna-se capaz de «imaginar», de «criar» cenários alternativos para as diversas vivências que vai tendo, adquirindo a possibilidade de gerir os seus conflitos, dificuldades e desejos. Enquanto a fantasia é irreal, os sentimentos que lhe estão associados são reais e permitem experimentar sensações fundamentais no processo de crescimento harmonioso. Histórias, contos de fadas e mitos como o do Pai Natal alimentam e enriquecem a vida psíquica de uma criança, assumindo dimensões tão importantes como a transmissão de regras e valores. O Pai Natal, para além do afeto associado à sua imagem que valoriza com enorme ternura as «barbas brancas», faz apelo a sentimentos nobres como a generosidade, a partilha e a gratidão.”

Para a especialista, o receio que os pais têm da eventual desilusão que as crianças poderão sentir ao descobrir a verdade não deve sobrepor-se aos benefícios que o exercício da fantasia lhes traz, já que tudo faz parte de um processo natural. “O desenvolvimento da criança depende de fatores neuropsicológicos (maturação cerebral, aprendizagem e interação social), sendo que há um desenvolvimento progressivo da capacidade operatória entre os 6 e 10 anos de idade, atualizando e adquirindo competências cognitivas e emocionais, em respostas progressivamente mais integradas e complexas. Onde antes operava o «pensamento mágico», em que a criança não distingue totalmente a fantasia da realidade, surgem novas capacidades e vão permitir à criança distinguir a fantasia da realidade e consequentemente descobrir a verdade sobre o Pai Natal. É importante os pais alimentarem o imaginário da criança através da introdução da fantasia que, no caso do Pai Natal, surge de forma espontânea em contexto social e familiar”, indica a psicóloga.

Contar a verdade: sim ou não? Como e quando?

Ana Rita Botelho Moniz Dias considera que existem sinais, dados pela própria criança, de que a realidade dos factos poderá estar em breve a vir ao de cima. “Apesar de cada criança ter o seu ritmo individual de desenvolvimento e maturidade, quando as suas competências cognitivas e afetivas estão mais alargadas (em geral entre os 5 e os 7 anos de idade), a descoberta surge de forma natural: vão surgindo dúvidas sob a forma de questões que a criança coloca aos pais, e quando isto não acontece deverão ser os pais de forma gradual a ajudar a criança nesta descoberta. Devolver as perguntas será sempre a estratégia mais adequada, pois permite ir ao encontro do nível de informação da criança, e assim apoiar esta fase de descoberta/desilusão.”


“À meia-noite ouviam-se sinos da igreja, que os meus pais me diziam serem os sinos do trenó, por isso eu corria para a janela e nem questionava. Soube que não existia, curiosamente, no verão. Estava de férias grandes, a chatear a minha irmã (9 anos mais velha) e para me calar/vingar-se saiu-lhe um «E sabes que mais? O Pai Natal não existe!». Fiquei tristíssima, mas fingi que já sabia.”


No caso de Madalena, não houve muito conforto quando confrontou a sua mãe com a descoberta. “Depois da minha vizinha me contar, perguntei à minha mãe se era verdade. Percebi pela expressão que fez que estava aborrecida com a minha vizinha por me ter contado, e logo aí entendi que sim, era mesmo. Lembro-me que me respondeu «E tu, o que achas? Achas que existe ou não?» Eu respondi que sim, acreditava que existia, e então ela disse que já tinha a minha resposta. Fiquei «na minha», fiz-me de forte, mas a partir daí nunca mais foi a mesma coisa, claro. A magia tinha-se quebrado.” A psicóloga explica que, para evitar que as crianças sejam confrontadas com a verdade através dos pares, quando já se encontram em idade escolar, devem ser os pais abordar o assunto. “Quando a partir da idade escolar a criança mantém a crença no Pai Natal e não questiona os pais sobre o assunto, poderão ser estes a abordar o tema para não correrem o risco de poder haver um aproveitamento malicioso por parte das outras crianças que já se encontram noutra fase do desenvolvimento, e que poderá ser prejudicial e lesivo para a sua autoestima.” A especialista acrescenta ainda que não é, de todo, aconselhável que os pais mintam à criança quando esta começa a desconfiar e os questiona sobre o assunto. “Se os pais contarem a verdade tranquilamente à criança e se associarem esta descoberta a uma crescente maturidade e responsabilidade, a criança não se vai sentir enganada e, sim, integrará esta vivência de forma enriquecedora.”

A fantasia como agente de união

Susana Romana, 36 anos, guionista e radialista, foi mãe há poucos meses e vê-se agora hesitante sobre incutir ou não ao seu filho a fantasia do mundo do Pólo Norte. “Acreditei piamente no Pai Natal até aos cinco anos. Só fui para a escola com seis, não fiz pré, e era de longe a mais nova da família, por isso não tinha outras crianças com quem discutir se o barbudo exista ou não. À meia-noite ouviam-se sinos da igreja, que os meus pais me diziam serem os sinos do trenó, por isso eu corria para a janela e nem questionava. Soube que não existia, curiosamente, no verão. Estava de férias grandes, a chatear a minha irmã (9 anos mais velha) e para me calar/vingar-se saiu-lhe um «E sabes que mais? O Pai Natal não existe!». Fiquei tristíssima, mas fingi que já sabia. Agora com um filho, tenho algumas dúvidas de como vou fazer. Por um lado, acho a fantasia infantil bonita, por outro, acho que vai para lá da linha imaginação vs. grande tanga. A minha sobrinha acreditou até tarde e a partir de certa altura eu sentia que já a estava mesmo a enganar.”

Apesar de tudo, Ana Rita Botelho Moniz Dias considera que, regra geral, a descoberta da verdade não deixa trauma nem sofrimento associado, nem provoca a perda de confiança nos pais – pelo contrário, a fantasia pode mesmo reforçar a união familiar. No entanto, deve ter-se em atenção a forma como se conta (ou se confirma) à criança a inexistência do Pai Natal. “A conversa deve ser feita num clima de tranquilidade e segurança, sem recorrer a ideias rígidas ou mágicas, às quais a criança não consegue dar sentido. A partilha de uma fantasia mítica e poética envolta em generosidade, ternura e surpresa, como o Pai Natal, contribui para uma riqueza emocional em família, verdadeira oportunidade para trabalhar esses valores com outras crianças/famílias, instituições da sociedade mais vulneráveis com quem a família possa partilhar esses valores. Ações de partilha e voluntariado surgem todos os anos à volta da figura do Pai Natal, com enorme riqueza para todos os elementos da família. Longe de abalar a confiança nos pais, cria cumplicidades muitas vezes traduzidas em ações que tornam os laços mais fortes”, afirma a especialista.

Carmen Saraiva