Paixão: estado de insanidade tolerado socialmente?

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Comecemos pelos clichés do apaixonado: a adrenalina e a obsessão, que lhe retiram capacidades para fazer seja o que for, fora do circuito hipnótico exercido pela pessoa desejada. Haverá quem nunca tenha passado por estes sintomas, que não indicam uma doença, mas requerem uma cura?

Não há especificamente uma bula a seguir mas a terapêutica de apaziguamento mais comum é tentar satisfazer o desejo amoroso, exigindo comunicação e/ou presença (física); até se extinguir a paixão ou passar para o nível seguinte: o amor ou a saída de emergência. A palavra paixão (de origem grega) deriva de paschein e significa padecer de uma determinada ação ou efeito de algum evento. Algo que acontece à pessoa, independente da sua vontade ou mesmo contra ela. E paschein deriva de pathos e patologia, sendo que pathos designa tanto emoção como sofrimento e doença. As paixões, entendidas como emoções, mobilizam a pessoa impondo-se à sua vontade e à sua razão.

Fall in Love

Por alguma razão, em algumas línguas, por exemplo em inglês, apaixonar-se (falling in love) significa cair de amores. Digamos que uma pessoa tem uma vida estável: um emprego, amigos, algum dinheiro, de vez em quando tem um encontro sexual, diverte-se, etc. De repente, surge alguém, inesperadamente, que quebra esta rotina equilibrada. Às vezes acontece num encontro casual e muda a vida toda destas pessoas; nada será o mesmo, dali em diante. Para os mais esotéricos, chega-se até a percecionar o Passado, como um caminho para chegar àquele momento, em que se encontra aquela “Pessoa”.

Segundo Slavoj Zizek (2015), o que se passa atualmente é que não queremos pagar o preço devido, ou seja, queremos a paixão, o in love, mas receamos a queda; e ficamos com o equivalente a querer uns sapatos de salto alto, sem o prejuízo na coluna vertebral. Não podemos destituir a coisa da sua essência. Na paixão não existe assim-assim, não há meio-termo. A queda, em potência, tem de ser fatal.

Patologia transitória
Comparemos o estado da paixão à osteoporose transitória, sofrida por algumas grávidas, normalmente manifesta na zona das ancas. No caso das grávidas com osteoporose, normalmente, com a devida terapêutica, acaba por solucionar-se o problema ao fim de dois ou três meses. No caso da paixão, o estado de “demência” – que leva os humanos a fazer atos inusitados –, não foi ainda determinado cientificamente, mas estima-se que não ultrapasse os 18 meses. Depois, por razões de sobrevivência (associadas à habituação biológica, com perda de capacidades de perceção), o apaixonado vai-se desligando aos poucos da coisa desejada, até passar para outro nível. Caso contrário, a “insanidade”, associada à paixão, tornar-se-ia irreversível, crónica… uma condenação.

O desejo é a razão inadequada

Para Gilles Deleuze (1972) todo desejo é revolucionário porque investe no real, o rearranja, desestrutura. Desejar é movimentar, “faz passar estranho fluxos que não se deixam armazenar numa ordem estabelecida”; “constrói máquinas que, inserindo-se no campo social, são capazes de fazer saltar algo, de deslocar o tecido social”. Este ato revolucionário (em potência), entra em desacordo com as convenções sociais; mesmo que permaneça em segredo. Há aqui também o desejo utópico, do todo, “não desejo só a mulher, desejo também a paisagem que envolve a mulher”, afirmou Proust acerca do desejo amoroso. O apaixonado quer desvendar a paisagem que desconhece; enquanto a paisagem não for revelada, o apaixonado não satisfaz, na totalidade, o seu desejo amoroso.

De uma forma geral, os actos dos apaixonados são avaliados com condescendência pela sociedade. Há uma uma espécie de pena suspensa ditada pela vox pop, perdoa-se tudo, “afinal a pessoa não teve culpa ou controlo, estava apaixonada.” Raras terão sido as vezes, em que alguém apaixonado tenha consultado um médico, queixando-se de uma doença. E muitas das vezes, os “supostos enfermos” sofrem de alterações de apetite, humor e/ou sono. No entanto, consideram um estado normal, por estar associado à paixão. Será que a História, não nos tem dado várias provas, da sua fatalidade em potência?
A insanidade transitória do apaixonado, é tolerada socialmente, talvez porque não poderíamos medicar toda a espécie humano, numa ou outra circunstância; seriam cidades-hospital necessárias para alojar a Humanidade.