Paridade rende nota positiva a Guterres nos primeiros 100 dias na ONU

António Guterres
Fotografia de Rafael Marchante/Reuters

As reformas e medidas para promover a paridade na ONU são alguns dos pontos elogiados por especialistas internacionais e organizações não-governamentais, na avaliação dos primeiros 100 dias de mandato de António Guterres como secretário-geral da organização.

Os relatórios e declarações apresentados esta semana fazem uma apreciação genericamente positiva dos primeiros meses do ex-primeiro-ministro português à frente do mais alto cargo das Nações Unidas.

A americana Jean Krasno, que liderou a campanha que tentou eleger uma mulher para o mais alto cargo diplomático do mundo, acredita que “até agora, o novo secretário-geral tem respondido aos desafios do trabalho.”

“Ele tem vindo a nomear mulheres para posições de topo, talvez um pouco mais devagar do que esperávamos, mas o progresso para a paridade de género tem sido bom”, defende a académica.

A esse nível, Richard Gowan explica, à Agência Lusa, que “apesar de Guterres gostar de tomar decisões e agir rapidamente, o sistema da ONU move-se devagar” e que, por isso, “ele ainda esta a tentar preencher muitos cargos seniores.”

Guterres lançou uma série de outras reformas, que necessitam de ser aprovadas pelos estados-membros na Assembleia Geral, e que incluem os sistemas de paz e segurança, de gestão, de respostas a exploração sexual e abuso, e paridade de género.

“O machismo bloqueia as mulheres e prejudica a todos”

O relatório do Centro Internacional para Operações de Paz, assinado pela diplomata Tanja Bernstein, que trabalhou para Ban Ki-moon (antecessor de Guterres na ONU), nota que as propostas relativas à exploração sexual e abuso “receberam respostas mistas”, sobretudo de países que seriam prejudicados financeiramente, e que tantas iniciativas “demonstram que ele está ansioso por conseguir mudança”.

Exemplo disso é o compromisso de combater a desigualdade salarial através do diálogo social, negociação coletiva e avaliações periódicas assumido pelos países membros da ONU na 61.ª sessão da Comissão para Estatuto da Mulher, que decorreu em Nova Iorque, no final de março deste ano.

A diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, disse, na altura, que “nunca houve qualquer desculpa para a desigualdade que existe”, mas que o mundo assiste agora ao “crescimento de uma intolerância saudável que vai forçar uma mudança firme e positiva. ”

Nas conclusões do encontro foi sublinhado que a desigualdade salarial no mundo ainda se fixa nos 23% e que acontece em todos os países. Defendeu-se, por isso, desde logo uma maior paridade nos direitos parentais, para que as mulheres não sejam prejudicadas, em termos de carreira, por engravidarem e terem filhos. Para que isso se concretize, o encontro promoveu a necessidade de garantir que mulheres e homens tenham acesso à licença parental paga e que os pais efetivamente utilizem esses subsídios.

Mónica Ferro é a nova diretora regional do Fundo de Apoio à População da ONU

Foi aprovado ainda um conjunto de medidas que inclui o aumento da flexibilidade no trabalho, facilitação da amamentação para mães que trabalham, adaptação dos sistemas educativos para permitir que adolescentes grávidas, e mães solteiras, completem a sua educação, e mudanças legais e políticas que combatam o assédio sexual no local de trabalho e melhorem o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva.

Pela primeira vez, a comissão discutiu também a transição das trabalhadoras domésticas e do setor de cuidados para a economia formal, dizendo que essa mudança melhoraria o estatuto económico das mulheres e aumentaria a sua proteção.

“Este ponto é preocupante porque muitas das mulheres empregadas na economia informal e trabalho menos qualificado são imigrantes e especialmente vulneráveis a abusos e exploração”, explica o documento final do encontro.

Expectativas altas
Além das medidas relativas aos direitos das mulheres e do compromisso da ONU, sob a liderança de Guterres, com as questões da igualdade de género, as primeiras 14 semanas do seu mandato de secretário-geral foram marcados pelo início de uma reforma institucional que pretende tornar a organização mais eficiente.

Uma das propostas mais visíveis é a criação de um gabinete contra terrorismo, liderado por um vice secretário-geral, que concentraria os esforços da ONU na luta contra o terrorismo global.

O documento do Centro Internacional para Operações de Paz defende que António Guterres “teve um bom começo”, mas que os desafios não se fizeram esperar, com a agudização do conflito na Síria e alguns embates com a nova administração americana.

“Nos primeiros 100 dias, provou ser politicamente astuto e um comunicador convincente. Está a envolver-se pessoalmente e quer tomar as suas próprias decisões em crises decisivas”, indica o relatório, ressalvando que o português “não teve um grande período de lua-de-mel” porque “as implicações de uma presidência Trump acalmaram os ânimos daqueles que esperavam um reavivar da ONU”.

Ainda assim, as expectativas continuam altas, “talvez demasiado altas”, acrescenta o mesmo documento, que reconhece ser “cedo para [Guterres] colher os proveitos de muitas das iniciativas que lançou e das relações que desenvolveu com parceiros chave.”
Da intenção à prática
Desde que assumiu o cargo, Guterres tem reiterado a importância da prevenção de conflitos e, em janeiro, anunciou a criação de uma “plataforma de prevenção”

No entanto, o relatório aponta que ainda estão por apresentar “ideias concretas e propostas de como esta prevenção deve acontecer na prática”.

Quanto à atuação política do secretário-geral, refere que “o tempo dirá se Guterres é capaz de acomodar as preocupações dos estados membros enquanto mantém uma certa independência na forma como lidera a organização”. A esse propósito, o relatório recorda a demissão da secretária-executiva da Comissão Económica e Social para a Ásia e o Pacífico (ESCAP) da ONU, depois de António Guterres lhe ter pedido que retirasse um relatório em que acusava Israel de cometer “apartheid” contra os palestinianos.

A redatora do documento, Tanja Bernstein, nota ainda que apesar de, nas suas nomeações, o português ter escolhido pessoas de países menos habituais (como o Brasil, Chile, Nigéria e Coreia do Sul), os cinco países com assento permanente no Conselho de Segurança continuam a dominar posições chave.

A relação com a administração Trump
Um dos maiores desafios neste equilíbrio será a relação com a administração de Donald Trump.

Jean Krasno diz que “além de todas as ameaças à paz internacional e segurança que a ONU enfrenta, o Secretário-geral tem de encontrar o passo certo para manter o equilíbrio entre os estados membros, sobretudo entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, e é aí que terá de lidar com os meandros quixotescos da administração americana”, avisa a especialista.

Tanja Bernstein acrescenta que esse equilíbrio torna-se ainda mais difícil de gerir considerando que os EUA são o maior contribuinte da organização. “Guterres também tem de andar sobre esta linha em que fala contra políticas dos EUA que considera contra os princípios e normas da ONU (como quando falou contra a ação executiva de Trump de entradas no país) e não alienar o seu principal contribuinte financeiro e ator político”, explica.

O contributo financeiro norte-americano representa 22% dos 5,4 mil milhões de dólares (5,1 mil milhões de euros) do orçamento principal da ONU e 28,5% dos 7,9 mil milhões (7,4 mil milhões de euros) do seu orçamento de manutenção de paz.

Na mesma linha, Richard Gowan lembra que os primeiros 100 dias do mandato de Guterres confrontaram-se com a pressão da administração Trump para reduzir o financiamento às Nações Unidas.

“Ele está a tentar estabelecer-se num momento em que os EUA pedem grandes cortes ao orçamento da ONU. Muitos funcionários estão preocupados em saber se os seus empregos serão sacrificados. Diplomatas de outros países querem saber se ele vai enfrentar os EUA e criticar o presidente Trump em público, mas um grande embate iria causar-lhe um imenso problema político”, explica o especialista.

A proposta de orçamento da Casa Branca pede um corte de 28% para a diplomacia e ajuda internacional, um limite de 25% na contribuição para operações de manutenção de paz. Também a eliminação de todas as contribuições para iniciativas ligadas as mudanças climáticas coloca os desafios à agenda e objetivos da organização liderada por Guterres.

O relatório do Centro Internacional para Operações de Paz conclui por isso que “quanto mais inovação e reformas de contenção de custos Guterres mostrar, mais credibilidade ganhara a ONU, também em Washington”, conclui o relatório.