Falar dos traumas ajuda a superá-los

Young beautiful woman sitting on the pier enjoying sunset
[Fotografia: Istock]

Drama, integração, empatia. Não é raro ver celebridades revisitar traumas graves de infância, adolescência e idade adulta e voltar a falar deles, a emocionarem-se a comoverem quem as ouve.

A cantora Lady Gaga voltou a falar sobre a violação repetida que sofreu aos 19 anos, comovendo o mundo e também a entrevistadora, Oprah Winfrey. Há seis anos, tinha abordado o tema nos mesmos termos.

Ainda antes do fim do ano, a atriz Charlize Theron revisitou o momento em que a mãe matou o pai em legítima defesa, reagindo a uma ameaça de morte em contexto de violência doméstica. Todas passaram por tratamento psicológico e não é raro voltar a ouvi-las falar sobre os momentos dramáticos que passaram, também não é menos raro ouvi-las explicar que o fazem porque querem mostrar que também elas vivem histórias como as anónimas.

Mas, afinal, o que as empurra para este regresso a uma espécie do lado negro de uma certa força? “A mudança na narrativa sobre si próprias fundamental”, contextualiza Nuno Mendes Duarte. O psicólogo Clínico e psicoterapeuta, responsável na Oficina da Psicologia, explica ao Delas.pt que ao abordarem episódios muito complexos tal faz com que “a história deixe de ser sobre uma vítima de trauma e passe a ser sobre uma sobrevivente de trauma”.

Há, refere, especificidades que devem ser tidas em conta quando se olha para o aspeto mediático das celebridades que relatam as suas histórias. “Existem duas grandes necessidades a que estamos a dar resposta: a humanização do sofrimento comum e, decorrente disto, um enquadramento de uma narrativa de superação que serve como exemplo para outras mulheres e como alerta para a sociedade”, vinca o especialista.

Mas nada disto é um capítulo já encerrado ou uma carta fechada. É possível sair do Stress Pós-Traumático com ajuda, caso contrário a “reconstrução vive-se com muito sofrimento”.

Leia abaixo as explicações de Nuno Mendes Duarte, psicólogo Clínico e psicoterapeuta ao Delas.pt

Há uma necessidade de voltar a falar dos traumas? É comum?

Habitualmente, uma das respostas perante uma situação traumática – nomeadamente se desenvolveu Perturbação Stress Pós-Traumático (PSPT) – é evitar tudo o que se possa relacionar com o trauma. Ou seja, evitar pensamentos, evitar falar sobre isso, evitar passar pelos sítios onde possa ter ocorrido o trauma ou recorrer a consumos alcoólicos ou de drogas. Não existe uma necessidade particular ou única para se falar sobre acontecimentos traumáticos pelos quais passámos.

Como tal acontece?

Existe, isso sim, um contexto particular em que decidimos falar sobre isso com alguém. Ou seja, é muito diferente ser-se uma estrela mediática e falar sobre os acontecimentos passados enquadrado numa entrevista, ou revelarmos isso numa relação de intimidade onde o objetivo da partilha de vulnerabilidade ou de uma situação difícil procura o aumento da ligação e da qualidade relacional. Qualquer ser humano tem necessidade de ser ouvido e validado no seu sofrimento atual ou no sofrimento pelo qual passou. A resposta de empatia que quem ouve tem em relação a isso reforça o laço entre todos. Por isso, quer seja o recontar de uma história traumática ou algum aspeto que nos é mais doloroso reconhecer, as relações de intimidade e confiança estruturam-se também na forma como reagimos a esses momentos.

Há necessidades especiais em casos como violência doméstica ou abuso sexual?

Os casos de violência doméstica ou de abuso sexual são estatisticamente mais frequentes em mulheres. Logo, a probabilidade de ouvirmos uma delas a partilhar uma situação destas é mais comum. Do ponto de vista mediático, existem duas grandes necessidades a que estamos a dar resposta – a humanização do sofrimento comum – aquilo que nos une a todos e por se ser mediático não deixa de se ter um percurso e história de vida – e, decorrente disto, um enquadramento de uma narrativa de superação que serve como exemplo para outras mulheres e como alerta para a sociedade, a propósito da violência (física, psicológica e sexual) exercida sobre as mulheres. Ou seja, a história deixa de ser sobre uma vítima de trauma e passa a ser sobre uma sobrevivente de trauma – o que é uma mudança na narrativa sobre si próprias fundamental.

É mais comum depois de processos de terapia ou não? Porquê?

Não penso que haja investigação sobre este tema, mas o meu conhecimento clínico permite-me inferir que a probabilidade de alguém ter mais facilidade em falar sobre uma situação traumática é maior. A razão é simples, porque em terapia estamos a tratar uma perturbação diretamente ligada à memória traumática. Ou seja, tratando a PSPT estamos a diminuir o sofrimento associado às memórias. Parte da complexidade da nossa memória é que ela é dinâmica e está associada aquilo em que acreditamos sobre nós e os outros, está associada às nossas emoções e como o corpo reage e estabelecem o pano de fundo para uma determinada narrativa sobre quem somos e porque nos aconteceu o que aconteceu. A mudança desta narrativa sobre o acontecimento que vive na nossa memória, a regulação do nosso organismo e das emoções associadas e o aumento da nossa capacidade de nos expormos às memórias com menos sofrimento são os pilares estratégicos de qualquer intervenção psicoterapêutica com pessoas que sofrem com esta perturbação. Resolvendo estas áreas do funcionamento é natural que então a pessoa esteja mais capaz e livre para falar sobre o que lhe aconteceu, porque o sofrimento associado já é residual ou melhor gerido.

Que tipo de eventos, circunstâncias promovem estes regressos ao passado?

Se entendo falar sobre o trauma ou partilhar o que aconteceu no passado, existe uma dimensão de decisão. Mas, o que é verdadeiramente perturbador para alguém com PSPT é que podemos ter uma reação emocional e fisiológica descontextualizada/inesperada e perturbadora com qualquer estímulo que o nosso organismo tenha generalizado como um estímulo associado à situação traumática original.

Alguma vez o paciente se libertará do stress pós traumático?

Com certeza que sim. Existem pilares estratégicos em qualquer intervenção. Como qualquer outra perturbação psicológica, há guidelines de tratamento, com técnicas específicas que devem ser integrativas, ou seja: a) considerando as alterações fisiológicas – sono, consumos, alimentação, estratégias de regulação emocional; b) regulando a relação com a memória e procurando integrar as informações que ficam desconectadas; c) tendo em conta as dimensões da relação com os outros que ficaram perturbadas (servindo o terapeuta como uma âncora de segurança e construção de comportamentos alternativos relacionais); d) Construindo à medida que se reconstrói a relação com a memória, com as emoções associadas e com a narrativa sobre si próprio, podendo encontrar novos significados e vivências emocionais mais construtivas para a sua vida.

Quais são os riscos de não se pedir apoio?

A reconstrução vive-se com muito sofrimento, e várias estratégias disfuncionais para se sobreviver à intrusão das memórias perturbadoras. Ou seja, tenta-se evitar a memória, vive-se em estado de maior alerta e hipervigilância e sente-se menos controlo sobre a própria vida por existirem reações muito automáticas ou pensamentos intrusivos muito angustiantes. Procurar um psicoterapeuta é essencial se identifica uma situação destas.