Patrícia Cotta é a prova de que a vida pode ter mais do que um destino, mesmo quando, teoricamente, já se percorreram todas as etapas de crescimento e amadurecimento. No seu caso, não foi só a idade em que mudou o rumo da sua a fazer a diferença, mas também o trabalho a que se escolheu dedicar.
“Os meus filhos acham imensa piada a dizer que a mãe é marceneira e eu percebo que as pessoas entendem isso como uma excentricidade, porque é uma área que não é normalmente associada ao género feminino“, começa por dizer, ao Delas.pt, a marceneira de 52 anos que é também conservadora e restauradora e, atualmente, estudante de doutoramento.
O “grande interesse por trabalhos manuais” e, dentro deles, a “fixação nos trabalhos embutidos em madeira” já eram antigos, mas só há 13 anos começaram a assumir-se como uma possibilidade real na vida de Patrícia, depois das voltas que foi dando.
Natural de Lisboa, frequentou o curso de Engenharia Química, que, “por questões familiares”, interrompeu, foi morar para Tondela, no distrito de Viseu, e aí arranjou emprego numa empresa de informática, como técnica de software. A empresa acabou por fechar e as circunstâncias acabaram por trazer a lembrança do ofício que sempre a apaixonou e a possibilidade de a pôr em prática, inscrevendo-se nos cursos da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (FRESS), dedicada a artes e ofícios artesanais.
“Tinha suporte familiar e como tinha essa paixão e tinha percebido que a Fundação seria aquilo que mais me viria a acrescentar nessa área voltei para Lisboa.” Para materializar essa paixão em conhecimento e labor, Patricia Cotta concluiu que a melhor opção seria tirar o curso de maior duração. “Fui mãe muito cedo e quando os meus filhos se começaram a licenciar, também comecei a estudar, até impelida por eles”, diz. A coincidência do fecho da empresa onde trabalhava com a saída de dois dos seus três filhos rumo à capital, para estudarem, reforçou a intenção do regresso e de os acompanhar.
“Como estava em casa, e um pouco também para lhes dar apoio, equacionou-se, em termos familiares que seria interessante para mim voltar para Lisboa, com os meus dois filhos mais novos – a minha filha mais velha já estava a estudar em Coimbra”.
Em 2006, fez as malas e deu o passo que faltava para se iniciar na aprendizagem profissional das artes da marcenaria. “Quando vim [para Lisboa] procurei a Fundação e fui fazer o curso de Marceneiro Embutidor, que tinha uma duração de dois anos”.
Patrícia não ficou por aí. O seu percurso, na fundação, durou de 2006 a 2013, onde acumulou outras formações às do curso de marceneiro. Depois desse tirou o de Especialização Tecnológica de Conservação e Restauro, que na altura tinha acabado de abrir, tendo acabado por integrar a primeira turma da licenciatura nessa área, entretanto criada pela instituição. “Avancei do curso de especialização para a licenciatura e quando a terminei começou uma formação em peritagem de mobiliário e obras de arte, que eu também fiz”.
De momento afastada dos trabalhos de oficina, por causa do doutoramento que se encontra a tirar, a marceneira recorda, no entanto, que apesar do trabalho em madeira ser uma atividade fisicamente exigente, a maioria dos alunos do seu curso era do sexo feminino. “Não havia uma grande discrepância, mas éramos mais mulheres. E há muitas mulheres a trabalhar em conservação e restauro, por exemplo. Nas áreas de formação da fundação, a marcenaria, de facto é aquela que poderá exigir mais força braçal, mas se formos para a pintura, ou para conservação de estuques ou de azulejos, há todo um trabalho minucioso que qualquer mulher desempenha tão bem como, ou melhor, que um homem. Mas, até na fundação, existem várias marceneiras no ativo.”
O acumular de saberes das diferentes formações e a experiência de trabalhar a arte manualmente, e ter tido um pequeno ateliê com uma colega, onde aplicou os conhecimentos adquiridos, levaram-na a querer ir ainda mais longe e a olhar para o que há por detrás de cada móvel.
“Comecei a ter muito interesse pela parte da história do mobiliário, porque até então nunca tinha olhado para o mobiliário como algo que tivesse tanto para estudar ou como uma obra de arte. E isso despertou-me o interesse de querer aprofundar a vertente académica”, explica Patrícia Cotta. Atualmente está a tirar o doutoramento em História de Arte, no ramo de Património e Conservação, “apenas com a formação da fundação”, sublinha Patrícia, que, já está no segundo ano desta etapa, preparando-se agora para entrar nos dois anos de investigação, mas que não se cansa de destacar a excelência da formação técnica neste tipo de artes e ofícios que adquiriu na fundação, que nos últimos anos se viu arrastada e afetada pelo escândalo financeiro do BES, o seu principal mecenas.
“Encontrei os melhores mestres que podia ter encontrado”, refere, apontando também os recursos que continuam a utilizar nas réplicas das peças que fazem.
Apesar de admitir que há peças que é mais fácil trabalhar sozinha, como uma caixa ou um relógio, outras requerem mais braços e, em alguns casos, uma força mais masculina. “Se me aparece uma secretária torna-se um pouco mais complicado trabalhar”, reconhece Patrícia Cotta. Ainda assim nota que “há muitas mulheres a estudar e a trabalhar marcenaria” e que é errado pensar que esta ainda é uma atividade masculina.
E a tendência poderá ser para crescer, se se tiver em conta que esta é uma profissão cada vez mais rara, mas também cada vez mais procurada em certos mercados, nomeadamente, nos mercados mais exigentes.
Nesta nova fase da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, instituição com mais de 60 anos, a aposta, a nível de formação, dirige-se precisamente a esses mercados. Os novos cursos de Artesão das Artes e Ofícios em Madeira (Marceneiro/a Embutidor/a ou Marceneiro/a Entalhador/a) e de Técnico de Pintura Decorativa – que se oferecem como uma alternativa à formação convencional ou que podem também ser vistos como um complemento a esta – são vocacionados pera o mercado de mobiliário e decoração de luxo. Estas formações profissionais têm estágios integrados e podem ser frequentadas a partir do 9º. ano.
Os cursos profisionais da FRESS têm uma carga horária superior a 1300 horas anuais e oferecem uma totalidade de mais de 200 créditos, refere a infromação da fundação criada em 1953, o banqueiro e colecionador Ricardo do Espírito Santo Silva, que doou o Palácio Azurara e parte da sua coleção privada ao Estado Português. O valor da mensalidade dos cursos profissionais é de 200€ (valor igual de inscrição), mas há também cursos de curta duração a diferentes preços e que começam já esta terça-feira, 17 de setembro. Veja todas as informações no site da fundação.