“É preciso criar espaço para os temas da menstruação”, diz educadora menstrual

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Patrícia Lemos é educadora em Saúde Menstrual e tem vindo a acompanhar raparigas e mulheres que querem saber mais sobre ciclo menstrual, fertilidade e fecundidade. Ao Delas.pt, a especialista e instrutora Certificada em Monitorização Natural de Fertilidade e fundadora do Círculo Perfeito, fala de das perguntas mais recorrentes que recebe, do que se deve dizer em casa para explicar aos filhos as dinâmicas do período e até das aulas de cidadania, se deveriam ou não abordar estas matérias.

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Um olhar sobre um tema cada vez mais na ordem do dia, seja pelos relatos de exclusão feminina que chegam de outros pontos do globo e por fatores culturais, seja pelo acesso financeiro a produtos de higiene íntima, seja fala forma incapacitante que, em casos de saúde dramáticos, acentuam desigualdades.

A especialista e membro da Society for Menstrual Cycle Research acaba de lançar o livro Período -Um Guia para Descomplicar [editora Booksmile] e deita por terras silêncios, mitos e erros sobre o corpo feminino. Revela que gostava de ver cada vez mais rapazes interessados no tema.

Quem mais a procura? Porquê? Quais as faixas etárias?

Neste momento, não tenho um público específico. Tenho desde jovens mulheres, adolescentes, mulheres e casais que tentam engravidar, pessoas que querem aprender a monitorização de ciclo para diferentes fins. Diria que o meu público está entre os 12 e os 46.

Quais as dúvidas mais frequentes?

Depende muito, mas diria que todas as questões relacionadas com queixas do ciclo menstrual ou com a fertilidade e que podem ir desde um “porque tenho ciclos irregulares?”, se “a pílula poupa óvulos?”, como resolver uma amenorreia (ausência de menstruação), como gerir a Tensão Pré-Menstrual (TPM), ao famoso “que posso fazer mais para engravidar?”

Há rapazes a demonstrar interesse por estes temas? Sim? Não? Porquê?

Acredito e espero que sim, e a minha página do @circuloperfeito_, no instagram, é seguida cada vez mais por homens que também enviam mensagens com dúvidas e questões, mas à exceção desses e dos que chegam em dinâmica de casal para uma sessão, rapazes não fazem parte do meu público. É preciso criar espaço para estes temas da menstruação e aí ainda há muito por fazer.

A menstruação está cada vez mais na ordem do dia. Porque é que tal acontece?

Sendo que já estou há alguns anos na área, confirmo que, nos últimos três anos, temos assistido a uma discussão mais pública. Creio que, sem darmos conta, é um efeito dominó de um evento importante de 2017 que foi o facto das Nações Unidas terem declarado a experiência da menstruação como algo que precisa de estar debaixo da influência dos Direitos Humanos.
A proibição das
chaupadi no Nepal (as tendas de isolamento menstrual), o cordão de mulheres na Índia contra a proibição de entrada nos templos, ou alguns anúncios a produtos específicos que optaram por mudar a linguagem assética do líquido azul para um encarnado, são assuntos que vão contribuindo para a construção de um debate em torno do assunto. As redes sociais ajudam muito, com a facilidade de propagação das mensagens e este sentimento de aldeia global que faz com que seja fácil identificar movimentos ou posições que ressoam em nós. A comunidade vegana e as preocupações ecológicas, com o surgimento de alternativas de recolha mais amigas do planeta, têm sido também fatores de elevada contribuição para a cena menstrual.

Fala também em educação para a fertilidade? Quais as perguntas mais frequentes, por idades?

Porque não consigo” ou “será que estou demasiado velha” para engravidar, são as mais comuns. Infelizmente, ainda não chegámos ao ponto em que nos perguntamos qual a importância do ciclo menstrual mesmo que não queira ser mãe ou “como mantenho a minha fertilidade”. Este será o momento em que paramos de olhar para a fertilidade como algo que tem um botão de ligar/desligar (agora quero fazer uso dela v. agora não quero) ou a precisar de reparação ou intervenção, mas numa perspetiva de saúde geral, num continuum. Por exemplo, deixar de fumar não melhora obrigatoriamente as chances de gravidez, contudo nunca ter fumado, sim. São coisas diferentes.

Há quem procure saber de fecundidade exatamente para a evitar? Como faz? Como resolve? Em que é que incidem as formações que ministra neste aspeto?

Sim, cada vez há mais mulheres a interessarem-se por perceber quando estão férteis no seu ciclo para poderem optar por métodos contracetivos de uso mais pontual, já que estamos férteis menos de uma semana por mês. Essas formações específicas passam primeiramente por desconstruir mitos relacionados com a monitorização de ciclo (que é obsoleta, do século passado, etc.), explicar as dinâmicas neurofisiológicas do ciclo menstrual, o que são e para que servem as hormonas envolvidas, de que forma impactam o corpo, quais os biomarcadores que podem ser observados, como os cruzamos, o que nos dizem, e por fim, de que forma podemos aplicar as regras do método no sentido de saber de forma rigorosa se estamos ou não férteis a determinado dia.

Qual o papel de mães e pais na introdução destas temáticas? o que defende que deve ser dito/explicado, em que idades?

As explicações têm de ser compatíveis com a idade das crianças, e a linguagem ajustada à sua compreensão. Não acredito naquela ideia “da conversa” que habitualmente chega tarde e que vem descontextualizada, movida a preocupação e sentido de urgência.

Mas o que podem dizer ou fazer?

O papel das mães e pais é crucial mas insistimos em achar que o segredo está no que dizem quando na verdade está no que fazem, já que as crianças facilmente aprendem observando. Todos temos um corpo. Quanto mais cedo integrarmos a sua vivência na vida das crianças, com naturalidade e respeitando diferenças, melhor.

É frequente crianças de três e quatro anos perguntarem às mães o que é, quando acontece verem. O que dizer?

Não faço distinção de género na abordagem e cada mãe encontrará a melhor forma para se expressar. O ideal será normalizar, dizendo que é algo que ocorre nos corpos saudáveis a partir de determinada idade. Diria que é apenas de evitar o argumento de que é “um doidoi” (que contribui muitas vezes para gerar ansiedade nas crianças e criar uma ligação desde logo entre o sangue menstrual e doença ou mal-estar), ou de que “serve para fazer bebés”. Em 2020, não temos todas de querer ser mães e reduzir o ciclo menstrual à sua função reprodutora, quando hoje sabemos que é um indicador de saúde geral, é redutor e perpetua a ideia de que o ciclo é dispensável se nunca quisermos fazer uso da nossa fertilidade.

Como educadora menstrual, como olha para esta questão das petições em torno do fim das aulas de cidadania nas escolas? Creio que a menstruação costuma ser assunto de biologia, mas em que medida devida ou não ter expressão nestas aulas?

O ciclo menstrual é tópico de ciências e biologia nas 8º e 9º ano, mas reduzido à função reprodutora, claro: “acontece isto às raparigas e é assim que podem engravidar”. Infelizmente, estamos pouco preocupados em perceber se há diálogo sobre o assunto em casa, se estas crianças ou jovens têm acesso a produtos de recolha menstrual que façam face às suas necessidades, se foram ensinadas a usá-los, a fazer a sua higiene, o que podem fazer ou tomar para os desconfortos, quais os sinais de alerta e quando é imperativo ver um médico. A educação menstrual passa por aqui, por educar para a saúde e para a literacia de corpo.

A fertilidade como agente de desigualdade. Como a observa?

A gravidez e tudo o que ela implica no curto e longo prazo é o maior fator de clivagem, se quisermos ir por aí. Tenho dezenas de clientes grávidas ao ano e uma percentagem residual que encontra alterações no seu local de trabalho aquando do seu regresso após o parto, em termos de progressão de carreira, salarial ou de oportunidades. Na minha amostra, isto é transversal e não olha a idades ou estrato social. Por sabermos disto, temos as mulheres a decidir ser mães cada vez mais tarde por forma a conseguirem garantir estabilidade de carreira (e consequentemente financeira) a fim de acautelar necessidades de uma família em crescimento – em vez de se exigir que se criem estruturas de apoio à maternidade, primeira infância, políticas que protejam durante os anos férteis (ou pelo menos que não as penalizem), e por aí fora. Compactuamos silenciosamente com estas dinâmicas. A taxa de natalidade está baixa e não vejo como a resolveremos a manter-se este quadro.