Patrícia Reis: “Muitas crianças são sobreviventes ferozes, não têm medo de nada, já lhes aconteceu tudo”

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Fotografia: Leonardo Negrão / Global Imagens

‘As Crianças Invisíveis’ (D. Quixote) é o mais recente romance da escritora Patrícia Reis. Através dele mergulhamos no mundo das crianças que vivem em instituições e seguimos as suas trajetórias e histórias, em particular a de M., uma criança habituada a ser usada e devolvida por famílias sucessivas e cujo percurso até à idade adulta vamos acompanhando. As crianças deste livro não tem género, exceção feita a uma adolescente grávida – condição que não permite iludir o sexo da personagem. Mas todas as outras resultam de um exercício que linguisticamente foi um desafio árduo, porém necessário para o tipo de narrativa que a autora queria construir. “A dor, a alegria, o sofrimento e o abandono são sentimentos transversais aos homens e às mulheres”, começa por explicar em entrevista ao Delas.pt. Depois disso foi “construir um universo e uma história a partir da imaginação e do sentimento”.

A infância e a adolescência e a forma como moldam percursos e identidades são os territórios que Patrícia Reis gosta de explorar na sua escrita. Para este livro, visitou instituições, falou com crianças e profissionais e pesquisou leis. Mas as histórias não são decalcadas da realidade.

‘As Crianças Invisíveis’ são todas essas que estão institucionalizadas e que podiam encher um estádio como o do Benfica, mas ao mesmo tempo não são nenhuma em particular. As histórias e circunstâncias de vida são diferentes, mas muitas são “sobreviventes ferozes”. Não têm medo de nada, já lhes aconteceu tudo. São sobreviventes”, refere a autora.

Leia, abaixo, a entrevista na íntegra.

 

O seu livro foca um tema pouco abordado, quando se fala de crianças institucionalizadas, de adoção: o das crianças que são devolvidas pelas famílias de acolhimento.

Para todos os efeitos as crianças em instituições são protegidas e quando se fala destas questões fala-se ao nível da estatística, daquilo que a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens divulga – publica um relatório todos os anos. E há um lado de preservação destas crianças, e essa parte eu percebo. As crianças precisam, de facto, dessa proteção. Já é suficientemente danoso para uma criança passar por um processo destes, sabe que não tem uma família biológica nuclear que a apoia, o que seria se a par disto estes processos fossem públicos? Nós vivemos numa sociedade que julga muito rápido e acho que essas crianças precisam mesmo dessa proteção. E a estatística é fria, não dá o tecido emocional das situações que se vivem nas instituições e dizer que 61 mil crianças estão em instituições em Portugal, algumas pessoas impressionam-se com o número, outras nem por isso. Se eu disser que é o Estádio do Benfica a abarrotar de crianças talvez seja mais impactante. Mas todas elas têm uma história ou uma circunstância de vida particular. Os relatórios assumem uma generalização. O que eu quis com este romance foi passar para o lado da criança e de como é que se constrói uma identidade e como é que nos tornamos pessoas, depois de termos sido abandonados e de termos feito este percurso, quando se é uma pessoa que esteve numa instituição. Não é um estigma, mas eu acho que é uma cicatriz que se carrega o resto da vida.

Entre aquilo que encontrou na sua pesquisa para este livro, o que se pode dizer que marca mais estas crianças – se é que há uma coisa que marca mais que outra: o facto de terem sido abandonadas pela família biológica, a institucionalização em si ou a rejeição da família de acolhimento?

Acho que isso depende da criança. Nesta personagem [M., protagonista do livro], o que mais a marca é esta criança perceber que os adultos à volta dela e nomeadamente a assistente social com quem esta criança tem uma relação mais intensa acham que é melhor ela ser integrada numa família, ter uma família. E ela está muito bem na instituição.

Isso também é algo que é, de certa forma, desmistificado no seu livro que a família mais ou menos tradicional não tem necessariamente de ser a solução ideal para essas crianças.

Não, não tem. Há miúdos que, de facto, estão melhor na instituição. Não é uma família tradicional, não é uma família nuclear, mas são miúdos, independentemente das histórias serem todas diferente são miúdos, têm um fio de história que os une e muitas vezes estão melhor ali. E nós temos de aceitar que nem todas as famílias são extraordinárias. É tão simples quanto isto.

Capa do livro [DR]
Para se preparar para este livro quantas instituições visitou, com quantas crianças falou?

Eu fui a algumas instituições e falei com crianças, assistentes sociais, psicólogos, professores, juízes, sem tirar uma nota. Só para sentir o mundo que é aquele mundo à parte. Durante muitos anos, no início da minha carreira jornalística, fiz muitas prisões, visitei muitas como jornalista. Mas aqui não era de todo uma missão jornalística para mim. Eu não tomei uma nota e não fiz o decalque de nenhuma história real que tenha ouvido. Depois de ter ouvido e de ter conversado, lido e procurado e de ter feito tanta pesquisa em termos de legislação, a verdade é que o meu papel como escritora era, depois, sentar-me e imaginar todo aquele território, todo aquele espetro emocional que afeta estas crianças, a quem eu opto por não dar género.

Porquê essa opção?

Porque a dor, a alegria, o sofrimento e o abandono são sentimentos transversais aos homens e às mulheres. O que em português é um exercício tramado, porque a língua portuguesa obriga a género na maioria das vezes, o que significa que há aqui um trabalho de plasticidade e de linguagem que foi gratificante e enriquecedor, mas que não tenciono voltar a fazer [risos]. Em muitas circunstâncias foi desesperante. É uma questão de depois construir um universo e uma história a partir da imaginação e do sentimento. O bom escritor, diria eu, é aquele que é capaz que se por no lugar do outro independentemente de quem o outro for.

O seu livro anterior, ‘A Construção do Vazio’ (2017) também contava a história de uma criança neste caso de uma criança abusada sexualmente no seio da própria família e a forma como isso determina quem ela vai ser em adulta. Interessa-lhe, particularmente, enquanto escritora, tratar esses temas mais duros, focar essas circunstâncias de vida?

Eu escrevo sobre pessoas. A coisa mais importante da minha vida são as pessoas. A coisa mais entusiasmante, que mais me interessa, são as pessoas, a forma como reagem, como evoluem, como mudam de ideias, como constroem, ou não constroem, a sua personalidade. No caso da Sofia de ‘A Construção do Vazio’ ela não constrói nada, porque ela opta por ficar ali, naquele momento em que a violência toma conta dela enquanto criança. E o território da infância e da adolescência é muito duro na maioria das vezes. E estes territórios a mim interessam-me muito. Interessa-me muito perceber a questão da identidade, acima de tudo. E como é que as pessoas podem evoluir. Até agora tem sido assim. Este processo [de ‘Crianças Invisíveis’] foi muito longo, foram quatro anos.

A adolescência parece um período duplamente difícil para estas crianças institucionalizadas, como o seu livro reflete. Implica uma nova separação, neste caso umas das outras.

Sim, porque não podemos iludir-nos e achar que uma criança que entra numa instituição aos dois anos está no mesmo sítio que, com as mesmas crianças, até aos 18, quando sai. Do ponto de vista logístico não é viável. Existem várias regras, e existem idades e espaços. As mudanças na vida são encaradas, por todos nós, com muita dificuldade. Ninguém gosta de mudar para aquilo que não conhece. Mas eu acho que o livro não tem só desgostos. Tem várias coisas que acho importantes e uma delas é, de facto, o poder imenso desta melhor forma de amor que é a amizade, que pode durar uma vida toda, pode ser cíclica…Mas há amizades absurdamente salvadoras.

No caso das crianças institucionalizadas que contactou sentiu que estas crianças têm mais medo do mundo lá fora, fora dos portões da instituição, do que uma criança que cresça numa família dita normal?

Muitas destas crianças são sobreviventes ferozes, não têm medo de nada, já lhes aconteceu tudo. É uma ilusão nós acharmos que têm medo. São sobreviventes. O medo não é uma coisa má. Eu, pelo menos, sempre disse aos meus filhos que o medo é uma fronteira, estabelece um limite. Há receios que temos de ultrapassar, mas o medo em si é uma boa fronteira. Estabelece uma linha. E estas crianças, a maioria delas já não tem medo de nada. Já teve. E aquelas que eu construí, a H. [uma das personagens do livro], que é a única criança do romance identificada como menina porque está grávida, é uma mãe adolescente, que tem 13 anos e está grávida do padrasto que a violou, e tem um otimismo e uma confiança de que vai ser uma grande mãe. É uma criança de esperança.

Por que quis que a sua personagem principal, a criança M., tivesse um problema de saúde?

Porque existem muitas crianças em instituições que tendo uma condição de saúde, um diagnóstico, e um problema de saúde têm muito mais dificuldades em serem adotadas. Muitíssimo mais. E há problemas de saúde e problemas de saúde, como é evidente. A criança M. tem uma condição cardíaca mas há outro tipo de condições muito mais graves. Enfim, temos de tudo, como no mundo cá fora. Sem ser as doenças, quem é quer, por exemplo, adotar uma criança de etnia cigana? Eu vou puxando estes fios porque acho que um livro também não tem de dar tudo de bandeja, tem de nos permitir pensar e, preferencialmente, como dizia a Agustina [Bessa-Luís], incomodar-nos um bocadinho. Caso contrário, para que é que serve um livro [risos]?

 

O livro mais recente de Patrícia Reis, “As Crianças Invisíveis”, levou quatro a ser feito e implicou pesquisa e visitas a instituições que acolhem crianças. [Leonardo Negrão / Global Imagens]
Este livro mostra também que há várias mães – nem todas são más, mas não são perfeitas.

Há várias mães. A Conceição [assistente social] sentir que falha no exercício da sua maternidade, com a sua filha fora da casa, depois há uma outra pessoa na instituição cujo filho morreu… Há muitas mães, há a mãe do Z, que o vai visitar. O Laborinho Lúcio fez, de uma forma generosa e brilhante, a apresentação deste livro e uma das coisas que ele me disse e que me surpreendeu foi dizer que na verdade este livro não é só sobre as crianças em instituições, é quase sobre a condição humana, o estado do mundo nos dias que correm. De facto, nós vivemos uma sociedade muito parecida com a situação daquelas crianças.

Mas, como disse antes, é uma sociedade que julga apressadamente”e há uma tipificação daquilo que deve ser a mãe.

Temos uma tipificação do que deve ser tudo. Temos o politicamente correto que é a coisa mais prejudicial ao pensamento e ao debate que alguma vez nos aconteceu. O politicamente correto não tem a ver com elegância, nem tem a ver com “concordamos que discordamos”. É só aceitação de determinados modelos, determinados chavões. Eu não sou uma pessoa politicamente correta. Não vou ser nunca. Para mais criei rapazes e como sou profundamente crente na ideia de que as mulheres sempre tiveram uma vida mais difícil que as dos homens e que a causa feminista não é uma causa das mulheres, é uma causa dos seres humanos, não eduquei os meus filhos dentro do padrão politicamente correto. E são personalidades muito diferentes. Temos muita falta de pensamento. As pessoas têm muita dificuldade em pensar, debater, aceitar que a opinião do outro é distinta da minha, mas que é válida. Ser um diálogo construtivo. Hoje em dia, o que as pessoas fazem é pontificar nas redes sociais, ser atacadas, serem delapidadas nas redes sociais. Se for uma mulher então muito pior, porque além de tudo o que disse, o cabelo está não sei o quê, a roupa não sei o quê e que é sexualmente frustrada…

A literatura permite-lhe fazer essa luta pelo pensar?

Permite, claro. A literatura é uma arma brutal. Pode só chegar a três pessoas, mas não há nada com mais poder do que a palavra. Tem o poder de nos perturbar, de nos interrogar, de nos atiçar uma ideia e de a partir daí eu poder construir outra ideia. E tudo isso é fascinante. Está em desuso, é verdade [risos], mas é fascinante.

É interessante, porque a criança M., do seu novo livro, é muito contida nas palavras que diz, pesa-as muito bem. É uma das característica dela. Por quis construir essa personagem com essas características?

Embora o livro não seja escrito na primeira pessoa, é escrito a partir de M. e a mim interessava-me o silêncio, porque o silêncio numa criança não significa que ela não esteja aos berros lá dentro. O silêncio aparente numa criança não significa que ela não veja tudo, não interrogue, não tenha convicções sobre as coisas, tal como a criança M. tem. E eu tenho percebido, ao longo da vida, que as pessoas mais silenciosas, aparentemente mais silenciosas, são aquelas que me devolvem mais e eu queria que a criança M. fosse assim. E a perspetiva do livro implicava também esse silêncio. Se fosse uma criança muito ativa, cheia de vontade de dizer coisas, o livro seria diferente.

Houve alguma criança cuja história tenha servido um pouco de ponto de partida para este livro?

Não. O que houve foi um episódio de um casal próximo que devolveu uma criança antes do fim da pré-adoção. E naquela altura o choque foi grande. Passaram-se quatro anos e pouco e hoje eu posso dizer que eu não julgo tão rapidamente como julguei há quatro anos. De maneira nenhuma. Porque cada história é uma história, cada criança é uma criança, cada família é uma família e às vezes as pessoas estão cheias de boas intenções e não conseguem. É horrível? Sim. Mas também há histórias felizes, há pessoas que adotam e que têm um sentido de proteção e que conseguem entender aquela criança como uma parte de si, como um filho.

Nas crianças que conheceu nesse ambiente de instituição o que é que mais marcou ou surpreendeu?

O que mais me marcou é profundamente egoísta. É sair de uma instituição, enfiar-me no carro, chorar que nem uma Madalena e pensar: ‘Graças a Deus os meus filhos não têm que viver isto, que eu não trabalho num sítio destes’. Eu tenho um imenso respeito pelas pessoas que trabalham nas instituições. Mesmo. O ir a este tipo de “mundo” pôs a minha vida em perspetiva.

 

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