Ainda não foi desta vez que Paula Hawkins conseguiu ter tempo para conhecer Lisboa, mas os dois dias que esteve na capital portuguesa deram para contactar com alguns dos milhares de fãs portugueses. A escritora passou pela Feira do Livro de Lisboa, que termina hoje, nos dias 10 e 11 de junho, e as filas, formadas sob um calor intenso, para conseguir um autógrafo ou uma fotografia, mostraram que a autora de ‘A Rapariga no Comboio’ continua a somar leitores a cada obra lançada. A mais recente, ‘Escrito na Água’, é prova disso mesmo, tendo entrado diretamente para o primeiro lugar do top de livros mais vendidos em Portugal, na semana em que foi lançado. Para este segundo romance policial, a escritora traz uma história com mais personagens, passada numa pequena comunidade que tem no rio o seu elemento central. É através deles que se vão desfiando memórias e segredos que continuam a assombrar o presente. Tudo começa com um aparente suicídio e uma relação conturbada entre duas irmãs. Daí se parte para uma narrativa que têm a violência contra as mulheres como subtema transversal a todo o livro, sem esquecer, claro, os instintos humanos, a intensidade e o mistério que fazem dos thrillers de Paula Hawkins bestsellers mundiais.

Quando o livro ‘A Rapariga no Comboio’ foi lançado já estava a escrever este ‘Escrito na Água’. Na altura antecipou que seria uma história sobre duas irmãs, com uma relação complicada, e que iria abordar novamente as questões do confronto das memórias, como isso afeta o seu relacionamento, e da confiança…
Sim, mantive-me fiel a isso [risos].

Sim, sem dúvida. Mas por que quis tratar essas questões, em particular, no seu segundo romance?
Pensei, durante um tempo, sobre esta ideia de abordar uma relação familiar. Não tinha necessariamente de ser entre irmãs, mas decidi que fossem irmãs, e em particular sobre a maneira como lembramos a infância e acontecimentos dessa fase da vida, que são muito importantes para qualquer um de nós. E a maneira como às vezes podemos lembrar-nos das coisas de uma maneira, e a nossa irmã, irmão, ou outro familiar, se lembra delas de forma completamente diferente. Normalmente, são coisas sem importância, mas no meu romance aquilo que elas recordam de maneira diferente é muito, muito importante e essencial, acabando mesmo por afastá-las uma da outra. Portanto, era isso que tinha em mente e é esse o coração da história e então comecei a construir à volta disso uma família, uma comunidade, toda esta cidade.

Apesar dessas questões da memória, das diferentes perceções dos acontecimentos e de como isso influencia os relacionamentos, somos confrontados com a violência contra as mulheres. Foi algo que quis abordar logo quando começou a escrever o livro ou surgiu durante o processo?
Acho que sabia que iriam existir certos incidentes ou atos de violência contra as mulheres, no livro, não sabia é que iriam ser estes. À medida que fui escrevendo o livro, a questão de silenciar ou controlar as mulheres tornou-se um grande tema para mim e criei esta história de que há centenas de anos os habitantes desta cidade faziam caça às ‘bruxas’, e isso era uma forma de controlo social, uma maneira de controlar as mulheres. Portanto, acabou por tornar-se num grande tema do livro, embora não o tivesse planeado inicialmente. Mas sempre soube que haveria, dois ou três momentos-chave em que os atos de violência contra as mulheres seriam fundamentais para o desenrolar da história.

Nos agradecimentos, no final do livro, menciona um ex-agente da polícia e uma professora de Direito. Alguns dos acontecimentos narrados foram inspirados em casos reais?
Não, quando eu falei com essas pessoas foi para informar de procedimentos técnicos. Não foram baseados em casos reais, os acontecimentos principais são completamente ficcionados. São coisas que, infelizmente, são bastante comuns, tipos de violência que ocorrem a toda a hora, em toda a parte do mundo.

Este livro tem bastantes mais personagens que ‘A Rapariga no Comboio’. Porquê?
‘A Rapariga no Comboio’ tem apenas seis personagens, na realidade. Neste livro, quis escrever sobre uma pequena comunidade, como é pertencer a essa pequena comunidade. Serão as pessoas um pouco diferentes nessas comunidades, porque toda gente se conhece e sabe da vida uns dos outros? E como é que isso poderá afetar a forma como se comportam? Torna-as mais resguardadas? Faz os adolescentes rebelarem-se mais? Questões desse género. Por isso quis trazer todas essas personagens e que o leitor sentisse que conhecia toda a gente dessa comunidade.

Nessa comunidade, vimos preconceitos constantes contra as mulheres, não apenas da parte dos homens mas também de outras mulheres. Pensar-se-ia, que muitos desses preconceitos já não existiriam no século XXI. Porque é que quis destacar também essas questões? Tem aliás uma expressão recorrente, “mulheres problemáticas”.
Sim! Eu estava interessada em todas as maneiras que a sociedade tem de controlar ou até silenciar as mulheres que não se comportam da forma que a sociedade, ou os homens, ou outras mulheres acham que elas se devem comportar. O controlo do comportamento das mulheres é algo que eu acho estranho. Normalmente, o comportamento dos homens não é criticado quando eles transgridem ou infringem a lei, mas às mulheres sempre foi dito o que deviam e o que não deviam fazer, o que deviam vestir, como deviam falar, o que é apropriado para usarem. Todas estas coisas ridículas. Por isso, interessou-me ver todas as vertentes em que as mulheres são vistas “problemáticas”, mesmo quando a única coisa que fazem é seguir com as suas vidas. Mas não são só os homens que as veem assim, as mulheres fazem-no a si próprias. Estamos tão habituadas a receber essas mensagens e a interiorizá-las…Uma mãe olha para a forma como outra mãe educa as suas crianças e diz logo que não é assim que se faz, que a dela é que esta certa. E eu acho que isso vem de uma posição defensiva das mulheres em relação às suas escolhas e terem medo de serem criticadas. E é extraordinário que isto ainda aconteça, que as vidas das mulheres seja um assunto aberto a debate. Estamos apenas a viver as nossas vidas, não estamos a infringir nenhuma lei.

Podemos designar os seus livros de feministas?
Acho que sim, que são feministas. Quando me sento a escrever não digo: “vou fazer livros feministas”. Mas porque sou uma feminista, porque essa é a minha política, é provável que emerja quando escrevo, e agrada-me que assim seja. E estamos a ver, em vários lugares do mundo um retrocesso em relação aos avanços que foram feitos em matéria de direitos das mulheres. Por isso, acho que devemos estar vigilantes.

Este livro tem um ambiente um pouco sobrenatural. Porque quis trazer essa atmosfera para o thriller?
Quis que tivesse a atmosfera de uma história de assombrar, realmente assustadora, sinistra e obscura, mas sem ter assombrações e fantasmas a sério. Neste livro temos personagens que falam com os mortos, mas não é necessariamente num sentido literal, mas no sentido em que, por vezes, quando perdemos alguém queremos desesperadamente falar com essa pessoa e podemos imaginar o que lhe diríamos. E há pessoas que acreditam mesmo que conseguem falar com quem já morreu. Além disso, também introduzi a história do passado da comunidade, que envolvia bruxaria e caça às bruxas e isso também traz um aspeto gótico ao livro.

Essa vertente, das personagens que falam com os mortos e da caça às bruxas, foi também uma forma de trazer a questão da memória mas para personagens que já não estão vivas?
Completamente. A forma como recordamos os acontecimentos, as pessoas, as suas vozes, todas essas coisas vão mudando. São fluidas.

A caça às bruxas lembra-nos que as mulheres foram perseguidas ao longo dos tempos, também foi intencional explicitar isso?
Sim, sem dúvida. E essa parte é muito relevante para a história e a corrente do rio, de certa forma, liga o presente e o passado. Há séculos atrás, não apenas, mas sobretudo as mulheres eram perseguidas e não era porque praticavam feitiçaria, era porque se comportavam de uma maneira que não era socialmente aceite. Estavam um pouco à margem da sociedade ou mantinham uma relação amorosa que não deviam. Era uma forma de controlo social e de supressão dos direitos das mulheres.

Falando em forma, como é gerir a escrita de um policial, como é que se vão introduzindo as peças do crime, mas sem desvendar a sua solução antes do tempo?
Esse é o grande desafio de escrever um policial: dar ao leitor informação suficiente que não conseguem descobrir sozinhos, mas sem facilitar demasiado esse conhecimento. Tem de ser surpreendente, chocante. Eu gosto de introduzir algumas mudanças de direção na história, mas têm de ser realmente importantes, não quero ter essas mudanças só por ter, e elas têm de ter um equilíbrio entre dar e esconder informação. É preciso saber quando a revelar aos leitores, dentro do ritmo a que a história se desenvolve. Todas essas coisas são essenciais para o prazer de ler um policial. Leva muito tempo até conseguir isso tudo e é algo que se vai sentido à medida que se vai escrevendo, não se pode planear do início. Tem de se estar dentro do livro para sentir, “ok, agora os leitores vão ter de saber isto” ou “agora tenho de os levar nesta direção”. É complicado e demorei muito tempo a acertar.

No livro ‘A Rapariga no Comboio’ tínhamos o comboio como elemento constante, aqui temos o rio. Quão importantes são estes detalhes na sua escrita?
Acho que são muito importantes, sobretudo para os leitores sentirem os lugares. Em ‘A rapariga do Comboio’ era o comboio suburbano, neste é a água que rodeia o sítio, onde tudo parece como que húmido e afogado. Há este rio que é lindo, mas que tem um lado perigoso e misterioso que envolve toda a gente. E eu quero que os leitores sintam isso.

O rio também fornece um fio cronológico, como disse, e liga diferentes gerações de mulheres e a forma como a perceção de certas coisas evolui de geração para geração, conforme se fala ou não delas.
Sim, completamente. O livro é muito sobre diferenças geracionais, diferenças entre pais e filhos, mas também sobre a experiência de ser um adolescente. Há 20 anos essa experiência era muito diferente. Mas toda a ação acontece na água e o livro liga essas gerações. Todas as personagens gostam de se banhar, nadar no rio. Isso é comum. Já a maneira como elas olham para os seus corpos, como os outros olham para os seus corpos, essa muda com a época e isso é importante quando se trata de mulheres jovens.

Por falar em mulheres jovens e adolescentes, tem muitas fãs dessas idades. Costuma contactar com elas? O que é que lhe dizem?
Sim, recebo muitas cartas de leitoras adolescentes. Fico contente em saber que elas se identificam com as minhas personagens, mesmo quando, como acontece em ‘A Rapariga no Comboio’, as personagens não são adolescentes – são adultos. Mas elas reconhecem as problemáticas e sentem-se atraídas pelos temas. É muito compensador ter leitoras jovens. Eu quero que toda a gente me leia, mas é bom ver leitoras jovens a gostarem do género policial.

Género esse que tem cada vez mais autores do sexo feminino. Por que é que há tantas autoras de policiais atualmente?
Na realidade, eu acho que o policial é um dos géneros literários onde as mulheres sempre foram muito boas e respeitadas. Temos a Agatha Christie, claro, mas também a Patricia Highsmith, P.D. James, extremamente respeitadas. Sim, agora há muitas mulheres neste mercado literário. Vemos autoras como a Donna French, Erin Kelly e a Clare Mackintosh, ótimas e muito bem-sucedidas escritoras de romances policiais.

A perspetiva feminina muda a forma como os policiais são escritos?
Sim, há um grau de aproximação aos assuntos, por parte das mulheres, que é um pouco diferente do dos homens. Penso que tem algo a ver com este facto: as mulheres são ensinadas, desde tenra idade, que são potenciais vítimas de crimes. Somos sempre ensinadas a fazer uma série de coisas para evitar que sejamos vítimas de crime, como não sair sozinha, não entrar num táxi sozinha, não beber demasiado, não usar minissaia. Eu sei que muitas mulheres, eu incluída, caminham para casa de chaves na mão – os homens não fazem muito isso – para não perderem tempo a procurá-las na mala. Penso que talvez tenhamos uma relação diferente em relação ao crime, e, consequentemente, à ficção policial e, por isso, identificamos de forma diferente muitas das personagens.

Viu o filme baseado em ‘A Rapariga no Comboio’? O que é que achou?
Foi muito entusiasmante. Fiquei feliz com o trabalho que fizeram com a adaptação do livro. O desempenho da Emily Blunt com Rachel foi brilhante. Entretanto, a Dreamworks adquiriu os direitos de ‘Escrito na Água’ e vou estar um pouco mais envolvida no guião. Serei consultora.

Este livro também vai ser adaptado a filme. Será para cinema ou série televisiva?
Penso que será um filme, mas não excluímos nada ainda. Sei que pela maneira como a história está feita, pelas personagens e por ser muito composto, que também pode resultar como série.

Já está a preparar o terceiro romance ou, desta vez, vai esperar mais tempo?
Ainda não comecei. Tenho algumas ideias e algumas personagens na cabeça, mas ainda não escrevi. Talvez comece no final deste ano.

Entrevista realizada no Evolution Hotel.

 

Imagem de destaque: Alisa Connan