Pedro Strecht “Já tenho pais que marcam consultas para os filhos e eles chegam sozinhos de Uber”

Quem diria que a vida privada do craque português Cristiano Ronaldo poderia mexer tanto com o lado profissional de um pedopsiquiatra que acaba de lançar um livro no qual pede aos pais mais tempo para os seus filhos, mas também para eles próprios.

Pois bem, Pedro Strecht reconhece, em entrevista ao Delas.pt, que tem tido “trabalho extra” a explicar a miúdos e a ajudar graúdos – aos pais que pedem conselhos – como explicar o que é o consentimento ou o sexo anal. E o que tem visto é o mesmo problema: falta de integração entre sexo e sentimento.

Mas este não é apenas o único drama. Há mais, muitos mais. Numa conversa que não é curta (fica o aviso desde já), o especialista em psiquiatria infantil fala da parentalidade a dois níveis: das famílias sem recursos e das que são financeiramente mais abonadas, revelando que recebe crianças que chegam de Uber, a sós e enviadas por pais que até marcaram as consultas por estarem preocupados com os seus comportamentos e atitudes.

Do beijo aos avós, à ritalina, das propostas de lei da conciliação trabalho-família “a brincar”, Strecht não poupa nas palavras para explicar uma realidade que se dilui a olhos vistos e que já empurra crianças com oito e nove anos para as consultas clínicas por vida a mais nas redes e likes a menos na autoestima.

Capa do livro [Fotografia: DR]

Acaba de lançar o livro Pais Sem Pressa. É possível haver tempo quando as famílias têm cada vez menos rendimentos, estão mais sobre-endividadas, têm falta de dinheiro e precisam de estar grande parte do dia fora de casa para arranjar dinheiro?

Atualmente, a maioria dos casais trabalha e ainda, apesar de muitas melhoras, as mulheres acabam por ser ainda muito penalizadas na área profissional, sobretudo em algumas áreas como a económica, a gestão, a bancária. Ter um filho acaba por ser, para muitas delas, uma penalização da carreira. A pressa é uma realidade dos pais no seu dia-a-dia. Nas grandes cidades, eventualmente, não conseguimos fugir a ela, e o livro não serve para negar essa realidade. Serve sobretudo para ajudar as pessoas a tomar uma consciência mais crítica sobre a questão. Por que se a tivermos, mais facilmente podemos compensar esse hiato, as tensões no dia-a-dia que acabamos por sentir e que depois também passamos para os filhos.

No caso das mulheres, falamos de um ciclo vicioso: não têm aumentos, não sobem na carreira quando engravidam e, quando regressam ao trabalho, têm de pedalar para ganhar tempo e têm, depois, menos disponibilidade para os filhos.

Sim. Pode-se sair desse ciclo se, de vez em quando, pudermos refletir um bocadinho sobre o ponto em que estamos e onde podemos ir. O trabalho é muito valorizado e é mesmo uma necessidade. Por outro lado, é natural que todos tenhamos alguns tempos livres, e até mesmo o direito a eles. Pode até haver uma rotina que é muito intensa para a maioria das pessoas, mas para os miúdos também. Um outro exemplo: as famílias, hoje em dia, são mais diversas na sua organização, as crianças têm de saber organizar-se entre a casa da mãe, do pai, etc. Mas há uma hora de refeição em que podemos estar todos juntos, há um momento em que podemos estar todos juntos em casa.

Pedro Strecht [Fotografia: Leonardo Negrão]
Como se se marcasse uma hora de atividade extra que fosse estar junto.

Às vezes, marcar ajuda na medida em que coloca o tema na agenda e mesmo na agenda mental. A partir daí, há uma consciência mais crítica, mais proativa do controlo do tempo. Há uns tempos, houve um debate na Assembleia da República – e acho que quem falou disso foi o Bloco de Esquerda – que criou reação, mas para mim faz sentido: falava-se do direito dos trabalhadores a desligarem do trabalho fora dele. Hoje em dia, continua a ser cada vez mais pedido às pessoas que se mantenham disponíveis, ligadas e, como costumo dizer, reativas para aquilo que o trabalho lhes exigir. É importante que os pais sintam que se trata do seu tempo livre, que já cumpriram a sua jornada de trabalho. Os miúdos também chegam a casa e estão, muitas vezes, sobre-inundados de trabalhos escolares, quando já passaram tanto tempo na escola e algum dele poderia ter sido aproveitado para isso.

Deveria de haver legislação em torno dos TPCs?

Acho que é entrar muito no detalhe sobre aspetos que pode caber aos pais gerir, até porque não há, inclusivamente, uma uniformidade sobre a matéria entre as escolas públicas e as privadas. No meu trabalho, vejo as coisas mais díspares, sobretudo nos mais pequeninos. Legislar tem sempre o risco de tornar igual para todos, de uma forma obrigatória, o que há de diferente. Devemos ter uma ideia progressiva da responsabilização dos miúdos. Se calhar, aos seis anos, no primeiro ano de escola, podemos esperar um bocadinho, aos 12 um pouco mais, aos 16 ainda mais e aos 18 outro tipo de responsabilidades. Mas há também uma tendência cada vez mais generalizada para se por os pequeninos muito centrados à volta do tema da escola, da prestação escolar, etc. Traçamos, às vezes, uma antecipação muito forte e muito negativa sobre a perspetiva do futuro: ‘Ah, tens de estudar agora porque depois, um dia, não vais ter notas, não vais ter emprego, os ordenados são maus’. Os pequeninos já têm, muitas vezes, este discurso desde cedo e isso é muito penalizador. Podem pensar em termos de futuro, mas também devem ir juntando e ultrapassando tarefas enquanto crescem.

“há também uma tendência cada vez mais generalizada para se por os pequeninos muito centrados à volta do tema da escola, da prestação escolar”

Quando falamos em não desligar, certo é que quando ouvimos falar em legislação em torno da conciliação trabalho-família, as soluções apresentadas no Parlamento passam por teletrabalho ou aumentos dos horários das creches.

Vai ao encontro do que estou a dizer.

Mas estamos – eles estão porque as propostas são políticas – a olhar para o problema a sério ou a brincar?

Estamos a olhar para a questão da conciliação a brincar e não indo à raiz dos problemas. Estamos, no fundo, a dar azo a que algumas coisas de base se mantenham e até, colateralmente, se possam favorecer. Hoje em dia, um dos principais critérios dos pais na escolha da creches e jardins-de-infância passa por ter horários o mais alargados possíveis e sem interrupção de períodos de férias. Tal tem pervertido a cultura destas instituições e, depois, até da escola. É o espaço físico que se vai deteriorando. Mas se me disser assim: ‘Legislar sobre articulação e possibilidade de articulação do trabalho com a família nos primeiros anos de vida do filho?’ Eu diria: ‘ah, ótimo!’. Há dois ou três países na União Europeia, conheço o caso da Suécia, em que eles lá não têm o conceito de creche porque os miúdos ficam com as famílias até ao dois anos. Se estivéssemos a discutir isso, a refletir e a discutir os períodos de licença de maternidade e paternidade sem penalizações. Temos, desde há imensos anos, uma taxa de natalidade cada vez mais pequenina, uma idade fértil cada vez mais tardia, e que eu ouço de pais que têm só um filho é sempre a questão do tempo e do dinheiro.

A ordem é sempre essa: tempo e depois o dinheiro?

As duas. Variam um bocadinho entre si.

“O que eu ouço de pais que têm só um filho é sempre a questão do tempo e do dinheiro”

Por outro lado, nas classes sociais mais altas há pessoas que procuram, em anúncios, de empregadas para as tarefas domésticas e, em alguns casos, para brincar com as crianças.

É para fazer uma substituição total das suas tarefas. Já tive um ou dois casos concretos em que elas preferiam evitar envolver-se nas tarefas de dar banhos, fazer o jantar e estar à mesa; e falamos de crianças que estavam em fases nas quais davam muito trabalho. Portanto, ela preferia chegar mais tarde ao trabalho e entrar em casa mais tarde com as tarefas já asseguradas por essa empregada doméstica. Mas também não esteve envolvido nesse quotidiano.

Sim, mas esta realidade também existe.

Sim. Como também é verdade que já tenho pais que, preocupados com comportamentos, atitudes e desenvolvimento dos miúdos, marcam consultas para os filhos e eles chegam sozinhos de Uber. Aí, consigo ter algum feedback do funcionamento dessas famílias, sobre o que se está realmente a passar. De alguma forma, os extremos [classes altas e baixas] ainda existem bastante e agudizaram-se. E, dentro de um certo círculo, é possível pensar que esses progenitores estão a fazer mais horas extra para pagar a essa empregada doméstica e que, se fossem fazer contas, não sei se faria muita diferença entre estar a pagar a uma pessoa que mal conhece e que se vai diluir depois na vida da criança ou trabalhar menos.

Mas isto fala também do desespero de algumas mães, fruto talvez de vida em famílias nucleares, sem redes e sem avós por perto…

Eventualmente, também em fuga. Há coisas que dentro da própria gestão do tempo, todas as crianças nos confrontam. A tarefa da parentalidade tem coisas chatas e difíceis, como é óbvio. Isto não é só uma história cor-de-rosa de um conto de fadas. Na primeira infância e quando o bebé nasce, muitas vezes as pessoas têm a ideia de que estar em casa uns meses sozinha com o filho é o máximo da liberdade e do bem-estar. E é super-cansativo do ponto de vista físico e mental. Estou sempre a dizer que podem e devem não prescindir de si próprias, devem ter os seus bocadinhos. Há aliás um conceito dos anos 60, 70 do século passado, da pedopsiquiatria inglesa, e que fala dos ‘pais suficientemente bons’. É muito importante dizer que não somos perfeitos. E, como pais, por muito tempo que possamos dar aos filhos, é bom que possamos sair um bocadinho à noite, ou os filhos irem a casa de avós ou, já adolescentes, passarem uma ou outra noite em casa de amigos.

(Leonardo Negrão / Global Imagens)

Mas o maior volume de trabalho, muitas vezes o desespero dos progenitores, até chega antes dessa fase da adolescência. Acontece precisamente nos primeiros anos de vida.

Chega. À medida que os miúdos vão crescendo, e dentro das suas etapas de desenvolvimento, vão reforçando o seu plano de autonomia. Portanto, os primeiros anos de vida são sempre os mais exigentes em termos de esforço físico e emocional dos pais.

Há uma nova vaga que pede aos pais para terem tempo para brincar com os filhos, esta questão da brincadeira – levada ao exagero – não pode levar à criação de uma sociedade sem pais e cheia de irmãos mais velhos?

Sim. Perceber que às vezes é muito importante reforçar, desde a primeira infância, o plano da autonomia. Há tempo em que os pais podem e devem brincar com os filhos, fazer programas à medida que as crianças vão crescendo. Mas também é muito importante que os miúdos possam ter o seu espaço de autorregulação da brincadeira. Também vejo aqui que os miúdos têm o seu dia muito programado, muitas vezes muito cheio, e quando se confrontam com o espaço em vazio vão ter com os pais e perguntam: ‘e agora o que eu faço?’. Como se tentassem prolongar as tarefas. Como as pessoas estão sobre tensão, muitas sentem a ‘desligação’ com enorme angústia. Por outro lado, vemos cada vez mais – e acho que isso explica o sucesso de uma determinada área jornalística – o conceito da fuga, da evasão, da procura de um porto de abrigo do ponto de vista emocional. Se repararmos, há dois jornais que, ao fim de semana, trazem as revistas extra Evasões e Fugas.

Mas falamos de soluções que requerem algum poder económico, e que não existe em grande parte das famílias portuguesas.

Sim. É verdade.

E que soluções tem quem não tem essa disponibilidade?

Haveria outras coisas que poderiam e deveriam fazer com o espaço físico, algo que permitisse às pessoas ter soluções mais fáceis, “mais baratas” e acessíveis. Se for aos bairros suburbanos das grandes cidades, raramente encontra um jardim, um campo de futebol, um skate park. Existem prédios, estradas e, se se quiser sai dali, vai ser difícil. Os próprios miúdos também. Hoje em dia e quase de uma maneira transversal, brincam em casa e a partir do quarto, sobretudo com as tecnologias.

Quais são os perigos dessa sociedade de irmãos mais velhos?

Os perigos passam por tentar empurrar os mais novos para a frente e os mais velhos, por se tornarem tão próximos, acabam por tomar uma atitude muito regressiva junto dos mais pequenos. Um dos principais riscos passa pela ausência de limites e distinção de gerações e papéis, os mais novos começam sistematicamente a pisar linhas e a mostrarem ações de omnipotência e de controlo.

“Os mais novos começam sistematicamente a pisar linhas e a mostrarem ações de omnipotência e de controlo”

É possível brincar – correspondendo a este apelo atual – e manter o papel de mãe e pai?

(Risos) Claro que sim. Pode e deve. Como é óbvio!

Mas os pais, atualmente, estão a ser capazes de fazer essa distinção?

Não, estão cada vez mais a baralhar coisas e confundirem-se nalgumas posições. É que depois de se envolverem tanto, tal cria a ideia nos miúdos de que eles estarão lá sempre, sem fim e sem limite. Por isso é que é tão importante a família alargada e o grupo de amigos na vida das crianças. Por outro lado, os avós são cada vez mais ativos, os 70 anos de hoje não são os de antigamente, eles estão mais disponíveis. Aliás, naqueles anos da crise, foram a grande tábua de salvação das famílias. Ainda hoje vejo muito isso, a da geração acima, a mais velha, ser uma enorme retaguarda nos ciclos regulares da família.

Vão à escola, levam as crianças às atividades. São eles os novos pais?

Sim, na escola da minha filha, que é privada, o normal de final de tarde é verem-se avós ou empregadas – mais do que pais – a irem buscar as crianças à escola. Depois volta-se à mesma questão: mas entre as 16.30 e as 17.00 horas onde estão as pessoas? A trabalhar. Logo, não é fácil.

E como fica, então, e tendo em conta a polémica recente, o perigo dos beijos aos avós?

Ui, é uma estupidez. Uma loucura. Não percebo o sentido disto.

Tendo em conta o que foi dito, não se alegam os beijos e o afeto de avós sobre as crianças para explicar eventuais assédio e permissividade que estes possam dar sobre o seu corpo?

Não, é uma confusão total de conceitos. E o que me deixou também perplexo foi o impacto que isso teve, talvez pelo bizarro. Damos imensa atenção ao que é estranho. Para mim, essa polémica extravasou completamente o bom senso e o senso comum. Ah, mas dir-me-á: ‘há miúdos que em determinadas fases são mais inibidos, prescindem mais do contacto físico, expressam menos o que sentem ou pensam?’ Digo-lhe que sim. Mas a maioria das pessoas consegue perceber e respeitar isso. Esta questão é semelhante a uma outra que também vi: a do beijo da Bela Adormecida ter sido ou não consentido? Não se pode dizer desta forma porque as crianças e as meninas baralham. Não é assim, estão a por muita confusão na cabeça dos miúdos.

Pedro Strecht , pedopsiquiatra .
(Leonardo Negrão / Global Imagens)

Em termos técnicos, o que está a ser confundido aqui?

Confunde-se uma perspetiva da sexualidade dos adultos com a áreas do desenvolvimento sexual e afetivo das crianças, que são claramente diferentes. Esta ponte é completamente desnecessária, tal como a outra de passar inquéritos numa escola do Porto a miúdos do 5º ano sobre se sentem atraídos por homens, mulheres ou ambos. É o non sense total e só tem a ver com que está na cabeça dos adultos que fazem aquelas perguntas. Misturam demasiado os temas não olhando às fases de desenvolvimento dos miúdos.

Como comunicar então?

Aos cinco anos, responder, por exemplo, que os filhos nascem da barriga das mães, não é preciso ir mais longe. Se calhar aos dez, 11 anos, eles já aprenderam na escola, já tem uma melhor noção do corpo e já se poderá ir mais ao detalhe. Aos 12, 13 anos, aí sim, há uma maior integração das vivências da sexualidade numa perspetiva adolescente e, portanto, muito mais próxima da sexualidade dos adultos. Tudo o resto é confusão na cabeça das pessoas e escusada.

Mas como explicar às crianças o que é passar o limite?

Podemos fazer esta distância de maneira progressiva. Nos primeiros anos de vida, não há leitura sexualizável. A partir dos cinco ou seis anos, os miúdos já percebem diferenças anatómicas, os gostos, brincadeiras, em que alguns começam a desenvolver atitudes de privacidade. Nas escolas, já vai havendo informação sobre o que é e não é expectável numa relação de proximidade. Por outro lado, de vez em quando vão aparecendo informações que invadem os miúdos e que obrigam a trabalho extraordinário dos pais. Eu tive agora imenso trabalho extra com a situação do Ronaldo [acusado por Katryn Mayorga de violação].

Como assim?

Imensos miúdos a perguntarem o que é sexo anal, a quererem saber se ela é que quis ou não. Estamos a falar de miúdos de oito ou nove anos, por exemplo. São notícias que passam na televisão, que o irmão mais velho comenta, sobre o qual toda a gente fala e com as mais variadas versões.

“Há imensos miúdos a perguntarem o que é sexo anal, a quererem saber se ela [Katryn Mayorga] é que quis ou não”

Notou diferença de perguntas entre rapazes e raparigas? Quais?

Também e sempre com posições muito culturais. Até de identificação. Havia um miúdo que trazia uma camisola da Juventus e que dizia: ‘Não, isso é tudo mentira porque ele é o melhor jogador do mundo. Gosto tanto do Ronaldo que ele é o meu ídolo’. Portanto, isto é impensável naquela mente. Se calhar, um miúdo de 13, 14 anos já faz a separação entre a vida profissional e pessoal do jogador. Houve uma mãe que me pediu ajuda para explicar à criança o que era sexo anal e se foi Katryn que deixou ou se foi Cristiano Ronaldo que forçou.

E o que lhe disse? É que essa é uma pergunta que muitos pais devem ainda estar a fazer neste momento.

Se vem à tona a questão a definição do sexo anal, se calhar é preciso explicar porque é que isso se passa. Se calhar, o miúdo até já percebeu ou até já viu algures, na internet talvez. Mas foi ela que deixou ou ele forçou? Bem, são aspetos que nunca saberemos e que é da vida dos dois. Agora, o exemplo do Ronaldo é bom porque noto que cada vez mais as crianças têm – e os adultos também – uma noção muito fragmentada da sexualidade. Integrar a sexualidade na vivência dos afetos e das emoções é muito difícil. É como se o sexo não tivesse uma representação emocional, é como se as pessoas não sentissem, como se fosse apenas uma coisa do corpo. Outro dia, um miúdo de 17 anos dizia-me que estava e usava o Tinder [aplicação de encontros] que é a coisa mais touch and go [“agarra e vai”, em tradução livre] possível e imaginável. E, se calhar, miúdos em idades mais precoces usam-na no dia-a-dia. Há uma enorme dissociação em crianças e adultos.

Com o domínio das redes sociais e dos lados positivos da vida, começam a chegar os primeiros relatos de adultos que chegam aos consultórios com algum desfasamento da realidade e angústias sobre a falta de likes. No caso da pedopsiquiatria, em que medida nota a incidência deste tipo de sequelas?

Estão a aparecer cada vez mais cedo. Às vezes, chegam miúdos na fase pré-adolescente dos dez, 11, 12 anos e que, em algumas circunstâncias, já vivem para os likes. Mas, depende muito das culturas sociais, familiares e da maturidade deles.

Falamos de casos clínicos de depressão, ansiedade?

Sim, sim, e de distorção da imagem corporal. As pessoas que pensam que são feias, gordas, que querem ser mais magras, etc, etc.

Há quanto tempo notou essa chegada de casos?

É recente, terá no máximo quatro ou cinco anos e têm vindo a caminhar numa perspetiva evolutiva. Em franca expansão. E não sei se a tendência não será essa, estas máquinas [telemóvel] estão cada vez melhores e mais baratas.

[Fotografia: Amin Chaar / Global Imagens]
Como olha e comenta esta proposta legislativa do PAN que passava por regulamentar os limites da ritalina prescritos a crianças?

Há uma enorme sobre-medicação de psicofármacos na sociedade portuguesa. O que muitas vezes chamamos de hiperatividade ou défice de atenção nos miúdos é sobre-preenchimento das vidas deles. Costumo recomendar aos pais que vejam um filme da Disney dos anos 80 e um de agora e que reparem na diferença de ritmo e interações. No antigo, eram histórias contadas de forma calma, hoje em dia é excitação-ação-reação. Depois, os miúdos vão para a escola e têm aulas e testes de hora e meia, quando nós tínhamos de 50 minutos. Isto prova os contrates entre o que lhes está a ser dado e o que lhes está a ser pedido. E depois queremos medicamentos para os acalmar.

E sobre este projeto?

Não legislaria porque se trata de uma questão de obrigatoriedade e aí pode ser muito difícil. Agora, convidaria a uma enorme reflexão e estou 100% de acordo que, de uma maneira geral, os psicofármacos devem ser a última etapa sobre outras intervenções que podemos e devemos ter mais para baixo.

Como por exemplo?

A começar na família, na escola, na sociedade em geral. Milhares de coisas.

Imagem de destaque: Leonardo Negrão/Global Imagens

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