Phyllis Zagano: “Mulheres diáconos nas sacristias teriam travado uma grande parte da pedofilia”

Phyllis Zagano não perde tempo e é direta no que tem a dizer. A especialista em assuntos femininos na Igreja, investigadora e professora em Religião, nos Estados Unidos da América não poupa críticas ao Vaticano, pede verdade e acusa os “ignorantes” da Igreja de estarem a travar um direito que as mulheres tiveram até ao século XII: o de serem ordenadas diáconos.

A norte-americana é uma dos 12 elementos que compõem a Pontifícia Comissão para o Estudo do Diaconado das Mulheres, criada em maio em 2016 pelo Papa Francisco. As conclusões desta entidade igualitária (seis mulheres e seis homens) já foram endereçadas ao Sumo Pontífice e, embora o documento seja privado, Zagano, de moto próprio, pede o tudo ou o nada: Ou as mulheres veem o seu trabalho oficialmente reconhecido e retomam funções que, justifica a investigadora, a história da Igreja já lhes deu e tirou, ou então não vale a pena recorrer a medidas de meio-termo. Não tem datas para a resolução da questão, e questiona mesmo “se haverá” uma decisão.

Livro 'Mulheres Diáconos: Passado, Presente e Futuro', de co-autoria da investigadora Phyllis Zagano [Fotografia: DR]
Livro ‘Mulheres Diáconos: Passado, Presente e Futuro’, de co-autoria da investigadora Phyllis Zagano [Fotografia: DR]
Em maio próximo há novo encontro marcado com a União Internacional de Superioras Gerais (UISG), mas Phyllis não faz apostas sobre o que o Papa Francisco lhes poderá dizer sobre o diaconado feminino.

A especialista, de 71 anos, esteve em Portugal a apresentar o livro Mulheres Diáconos: Passado, Presente e Futuro [da Paulinas Editora] e, em entrevista ao Delas.pt, tem a certeza de que se as mulheres estivessem estado sempre por perto, a pedofilia na Igreja Católica – um flagelo “universal e transversal”, uma “monstruosidade”, como chamou Francisco, em fevereiro deste ano – jamais teria ganho as proporções que conhecemos hoje.

Em janeiro último afirmou: “Gostava de acreditar nas mulheres diáconos no futuro, mas não posso prometer”. O que está a bloquear esta promessa?

Os ignorantes [pausa].

Quais? Quem?

Sobretudo na Igreja. Creio que, na História, as mulheres diáconos e a necessidade do ministério das mulheres são claras, mas as objeções – as falsas objeções – também o são. O santo Papa já deixou bastante claro que a questão das mulheres poderem ser ordenadas padres está afastada da mesa de negociações. Para mim, esta é a última barreira da estrada. Se a Igreja diz que as mulheres e homens foram criadas à imagem de Deus, então tem de simbolizar isto como pode, e como tem de o fazer: ordene as mulheres diáconos, que elas estejam na Basílica de São Pedro a usar a estola, carregando e falando do evangelho. Enquanto isto não acontecer, a Igreja não pode falar contra a Mutilação Genital Feminina, contra os múltiplos ataques exercidos sobre as mulheres.

“Não podemos limitá-lo como homem, Cristo está para lá do género”

A Igreja tem sido cínica estes séculos todos?

Não creio que seja cinismo, creio que é ignorância. Uma ignorância invencível, possivelmente, e que pode não ser um erro deles. Têm de compreender que a distinção de géneros não indica que homens e mulheres não sejam seres humanos, somos todos humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus. Há 30 anos, disse a Ratzinger [mais tarde, Papa Bento XVI]: o Deus da Filosofia não é homem, nem mulher. O Deus da Teologia é ambos, e ele concordou comigo. É claro que Deus, quando se apresentou na História fê-lo como homem, mas a razão que Jesus Cristo não deveria ser limitado é a razão de que Cristo é Deus. Não podemos limitá-lo como homem, Cristo está para lá do género.

Papa pede mais mulheres em lugares de responsabilidade na Igreja

Olhando para a História, porque é que a Igreja Católica relegou as mulheres todos estes séculos. Quais foram as razões?

As mulheres foram diáconos até ao século XII. Mas os masculinos tornaram-se um problema porque eles e os padres não se entenderam.

Porquê?

Porque os diáconos controlavam o dinheiro. E assim que entramos na Idade Média, as mulheres diáconos ficaram nos mosteiros. Depois, descobrimos que os homens diáconos foram afastados e a função tornou-se apenas cerimonial. No tempo da reforma gregoriana [século XI e que teve o intuito de libertar a Igreja da interferência laica], a formação era a norma e os vários passos para se chegar a padre tornou-se a lei. Mas há uma exceção: O Papa Gregorio VII era diácono (1073-1085), nunca foi padre.

E onde estavam as mulheres?

Elas estavam nos mosteiros e arredadas destes passos hierárquicos. A lei passou a definir que não se podia ser ordenado diácono, a não ser que fosse ordenado padre. As mulheres nunca entraram neste processo.

Nove séculos volvidos, a Igreja está preparada para repor estas funções?

A Igreja não negará as suas necessidades. Se precisa do ministério das mulheres ordenadas, eu não posso ver o Espírito Santo não mover a Igreja para aceitar o ministério delas. Mas não tenho ideia, não sou o Papa, não sou o Espírito Santo. Não sei o que vai acontecer, só sei que a 10 de maio, o Santo Padre irá falar à União Internacional dos Superioras Gerais [de 6 a 10 de maio de 2019].

O que espera que lhes diga?

Sei que em em maio de 2016 se reuniu com elas e aceitou a ideia de criar uma comissão [para o Estudo do Diaconado das Mulheres]. Não é intenção dessa comissão dizer-lhe o que fazer.

Da qual Phyllis faz parte. Essa comissão já apresentou as primeiras conclusões, que reações já obteve do Papa?

Foi um documento privado para que o Papa possa refletir. A minha recomendação é simples: ou aceitam as mulheres diáconos ou então nada. Ou diga sim ou não. Não queremos nada que fique pelo meio. Algumas pessoas chamam-lhes diaconisas, podem vestir-se como eles, mas não são ordenadas. E porque não podem ser? Porque não são feitas à imagem de Cristo. Volta-se sempre a isto. Não podemos ordenar uma mulher, o Espírito Santo diz que não porque é uma mulher. Isto é estúpido, porque na História tivemos realmente as cerimónias de ordenação. Na liturgia, ao mesmo tempo que as mulheres diáconos eram ordenadas, os bispos impunham as mãos e evocavam o Espírito Santo. Eram apelidadas de diáconos. Teriam outro nome se fossem outra coisa. Elas comunicavam entre elas, recebiam a estola, que confere a autoridade para proclamar o evangelho e pregar. Temos isto nas diversas liturgias.

“Ou aceitam as mulheres diáconos ou então nada”

Mas tem ideia de quando é que ele poderá decidir?

Não. Nem mesmo se [decidirá]… O Papa pode não dizer nada. Ele fará o que será melhor para a Igreja.

Acredita que a Igreja não tem condições para reverter isto e reconhecer as mulheres?

Quem é a a Igreja: 700 homens no Vaticano ou 2.1 mil milhões de fiéis?

“Se o Vaticano não tem [as condições para ordenar as mulheres diáconos], então o povo de Deus tem de ensinar o que é o Diaconado”

Primeiro, o Vaticano?

Se o Vaticano não tem [as condições], então o povo de Deus tem de ensinar o que é o Diaconado e tem de entender o ministério e perceber que as mulheres diáconos não são padres. E isso no futuro não se vai misturar, são questões distintas.

A comunidade da Igreja tem vindo a decrescer. Ter mulheres diáconos resolve a falta de pessoas que a Igreja tem sentido em muitas partes do Globo, essa necessidade pode pressionar ou acelerar a decisão?

Oh, acho que sim.

Mas é porque as mulheres podem mesmo vir a ser reconhecidas ou porque há essa necessidade?

Não é porque sou uma mulher e mereço ser ordenada. Claro que tem que haver vocação para o serviço. Inúmeras mulheres trabalham em catequeses, neste momento, em serviços, com bispos, mas não têm qualquer relação formal com eles, elas não podem pregar. Creio que a Igreja precisa do ministério das mulheres, pode recebê-lo. Mas deve fazê-lo não como parte da ministério dos Bispos, que representa toda a Igreja. É uma construção diferente. Quando uma mulher chega e representa o bispo, ela, com a permissão dele, está a ministrar e está a trazer toda a igreja para perto.

“Não é porque sou uma mulher e mereço ser ordenada. Claro que tem que haver vocação para o serviço”

Uma vez reconhecido este lugar, tem ideia de quantas mulheres poderiam vir a ser diáconos no mundo? Esses números existem?

Existem já inúmeras mulheres formadas, neste momento. Na Alemanha, por exemplo, os bispos vieram dizer que não se podiam formar as mulheres como diáconos porque não as queriam ordenar. Creio que foi em 2011 que tal foi escrito. Como resultado, foi criada a Roman Catholic Women Priests, as mulheres que estavam nesse programa na Alemanha e na Áustria e que encontraram bispos que as ordenaram Elas foram treinadas para serem diáconos. Tenho um livro inteiro sobre isto. Elas ignoraram as recomendações, estamos treinadas para ser diáconos, mesmo que não seja aceite. Nos Estados Unidos da América, em muitas dioceses, há inclusivamente o requisito de que as mulheres de diáconos devem fazer a mesma formação que eles, mas a segunda parte é: tem a mulher a vocação? E isso é algo que é separado. É preciso servir, em primeiro lugar, pela vocação.

E quem o pode ser?

Mulheres religiosas (freiras e irmãs), casadas ou solteiras, virgens consagradas, também podem ser médicas ou canalizadoras ou diáconos. Tudo depende da vocação e aptidão. Se o Santo Padre disser que se pode restaurar a tradição, então acompanhará o diaconado masculino.

Mas se um homem casado pode ser ordenado, e um homem ordenado não pode ser casado. Tal sucederá com as mulheres.

Sim, uma pessoa casada pode ser ordenada, mas uma pessoa ordenada não pode casar-se.

Em que medida é que as mulheres diáconos podem fazer a diferença na Igreja e, mesmo, fazê-la crescer? Ou poderá haver reação à medida e afastamento de fiéis?

Bem, os estudos indicam que – pelo menos nos EUA e que levei a cabo com sociólogos – entre 75 e 79% dos inquiridos são resposta positiva a possibilidade de mulheres diáconos. O Papa está muito interessado em sínodo, e isto é o exemplo de sínodo moderno, ter toda a Igreja a discutir este tema: o que pensa, o que quer. É que a Igreja não se faz apenas das centenas de homens que estão no Vaticano, mas de todos os que a praticam. A Igreja somos todos nós.

“[Elas] podem fazer o que os diáconos homens já fazem: batismo, preparação para o casamento, cerimónias matrimoniais”

O que podem as mulheres diácono fazer na Igreja, se forem aprovadas no futuro?

Podem fazer o que os diáconos homens já fazem: batismo, preparação para o casamento, cerimónias matrimoniais. O trabalho do diácono, de facto, é enterrar as pessoas, acompanhar os doentes. Há ainda a importância da pregação e ser um juiz clerical. Estas coisas apenas podem ser feitas por homens porque só eles são ele clérigos. Penso que os seus pareceres simples poderiam tornar-se oficiais.

Na História, Phyllis conta que elas chegaram a participar na resolução de problemas de violência doméstica. Podem voltar a fazê-lo?

Eu não sabia, foi o Papa é que, em maio de 2016, nos contou que um professor sírio lhe disse que quando a esposa acusava o marido de lhe bater, ela ia ter com a mulher diácono, que depois falava com o bispo. E isso era muito importante.

E que hoje podiam voltar a fazer?

A mesma coisa. O parecer das mulheres, na História, era levado em consideração. Mas hoje o testemunho legal de uma mulher não, a não ser que seja parte de um procedimento normal para receber e certificar a elaboração de um processo de nulidade.

Quando Igreja está a ser confrontada com todos os casos da pedofilia, se existissem mulheres diácono tal teria sido diferente?

Acho que as mulheres diácono nas sacristias teriam travado uma grande parte da pedofilia, eles não teriam incomodado as crianças.

“Se elas estivessem mais envolvidas nas liturgias, elas iam ver, cheirar [os casos de pedofilia]”

De que forma?

Se elas estivessem mais envolvidas nas liturgias, elas iam ver, cheirar. Tenho uma amiga que está envolvida numa paróquia. Ela não precisa de ir lá aos domingos, mas quando há rapazes de altar ela, nesse dia, está na sacristia. E faz isso porque não sabe quem vai chegar, ela vai proteger as crianças. Uma mulher sabe.

Através da autoridade da ordenação, elas poderiam ter evitado isto?

Acho que sim. Uma mulher vê, cheira, sabe. Quando eu estava a crescer, havia um padre maluco e todos os rapazes do altar diziam uns aos outros para terem cuidado. Um deles poderia não saber, mas uma mulher saberia e diria ao rapaz “cuidado”.

Mas dizia ao padre para fazer o mesmo?

Não. Quando estava no liceu, no autocarro para o primeiro dia de aulas, e com 14 anos, fui avisada: ‘Cuidado com o padre Matt, ele gosta de raparigas”. Todo o autocarro sabia, o bispo não sabia. Como poderia saber? Nos falámos entre nós e fizemo-lo apenas por nós próprias.

Papa Francisco faz ode à maternidade na primeira missa do ano

A propósito das mulheres e dos seus múltiplos papéis na Igreja e à margem deste livro, como olha para o casamento dos padres e de eventuais funções para as mulheres nesta perspetiva?

Quem quer saber? Eu não quero saber.

Porquê?

Se o padre é casado, é um padre secular. Acho que um padre casado deveria ter uma profissão, poderia ser professor na escola. Não quero ter de financiar um padre a e a sua família.

E como olha para recente demissão de Lucetta Scarafia e do Conselho editorial da revista Women Church World alegando “controlo direto de homens”? Que sinais estão a ser dados no Vaticano?

Lucetta vem do tempo de Ratzinger. Andrea Monda [diretor do L’Osservatore Romano] queria ter mais colaboração entre os dois órgãos, e ela queria separação. Lucetta opôs-se a isto e disse que ela é que estava no comando.

“Provavelmente, em dez anos, teremos uma mulher diretora do L’Osservatore Romano”

Mas as notícias indicam “controlo direto de homens” sobre as temáticas das mulheres.

Eu sei o que as notícias disseram. Provavelmente, em dez anos, teremos uma mulher diretora do L’Osservatore Romano. Mas, para mim, homens e mulheres estarem em universos separados não revela aquilo que o Papa Francisco pensa. Ele crê que juntos deveriam olhar para os mesmos temas, por vezes um homem, por vezes uma mulher. Fui a primeira mulher responsável do think thank National Humanities Centre [entre 1979 e 1980]. Houve entusiasmo por ter sido escolhida uma mulher, mas eu dizia que se me estavam a contratar apenas por isso, então podiam ter o cargo de volta. Eu apanhava um avião e ia-me embora.

“Para mim é claro: um tópico, uma voz. Várias perspetivas, mas honestas e corretas sobre um tema. Temos de olhar para os factos pela perspetiva da verdade”

E o que aconteceu?

Diziam-me: ‘Diga isso novamente, diga-lhes isso a todos. Eu quero ser contratada pelo que sei e não por ser uma mulher.’ Esta Comissão para o Estudo do Diaconado das Mulheres que integro é a primeira que é 50% masculina e 50% feminina, estamos todos a olhar para a mesma questão. O meu livro é 66% elaborado por homens [Gary Macy e William T. Ditewig] e 33% por mulheres [Phyllis Zagano], mas todos trabalhamos juntos. Esta é a diferença para com o caso de Lucetta. Para mim é claro: um tópico, uma voz. Várias perspetivas, mas honestas e corretas sobre um tema. Temos de olhar para os factos pela perspetiva da verdade.

Imagem de destaque: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

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