Revenge porn: primeira condenação em Portugal para um crime que a APAV conhece bem

A justiça portuguesa aplicou, pela primeira vez, a pena de prisão efetiva para um caso de revenge porn, ou seja de publicação de um vídeo pornográfico caseiro, por parte de um dos intervenientes, com o intuito de prejudicar o outro.

Segundo revelou ontem Jornal de Notícias (JN), o coletivo de juízes do tribunal de Setúbal condenou, na passada quarta-feira, um homem de 38 anos, natural da mesma cidade, a três anos e nove meses de prisão, por ter publicado, em 2014, dois vídeos que fez com a sua namorada a terem relações sexuais.

Ficou provado que o homem divulgou os vídeos depois de ter descoberto que a namorada, com quem vivia, o tinha traído. Como forma de vingança publicou-os em 21 sites pornográficos e na rede social do trabalho da ex-companheira. Além disso, criou um perfil falso no Facebook, onde se fez passar por ela, marcando encontros sexuais com outros homens. Os juízes deram ainda como provado os crimes de devassa da vida privada e de falsidade informática.

Estes crimes chegam cada vez mais à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), pelo que se “a condenação é inédita, este tipo de situações não o é”, frisa Frederico Marques, assessor técnico da direção, em entrevista ao Delas.pt

No ano passado, a APAV lançou o projeto PROTEUS, precisamente com o objetivo de dar apoio a pessoas que fossem alvo de crimes informáticos e, ainda que a associação não disponha de dados estatísticos sobre as queixas relacionadas com este tipo de práticas, o técnico confirma que tem havido um crescimento do número de casos denunciados à associação.

“Cada vez mais, surgem, no âmbito, designadamente, da violência doméstica, situações em que, por força da rutura do relacionamento e havendo na posse dos membros do casal desavindo, vídeos, fotografias de natureza íntima ou sexual são utilizados por um contra o outro como forma de vingança, muitas vezes, pelo fim da relação”, exemplifica o responsável.

A publicação de conteúdos de cariz íntimo ou sexual em redes sociais ou através do envio por email para o grupo de amigos comuns, ou amigas ou colegas de trabalho da vítima são os métodos mais frequentes neste tipo de situação.


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O caso noticiado pelo JN é, portanto, algo que aparece com “bastante frequência” na APAV e reflexo de um fenómeno que cresce com o desenvolvimento da tecnologia, que permite registar e partilhar imagens com muito maior facilidade. “E isto é extraordinariamente comum nos casos que nos vão aparecendo, não só no âmbito de relações entre adultos, mas entre adolescentes e jovens”, refere Frederico Marques, lembrando que, nas situações que envolvem menores isso acaba por gerar problemas de bullying na escola e a “vítima acaba por ser altamente perseguida e atacada”.

Apesar de estarem muitas vezes inseridos em situações mais abrangentes, estes crimes têm a sua própria configuração legal. No caso de Setúbal, não foi qualificado como violência doméstica, apesar de ter contado para cúmulo jurídico também os crimes de posse de arma proibida e de ofensas à integridade física, uma vez que o arguido não se limitou a divulgar os vídeos, tendo esbofeteado a namorada quando soube que ela o tinha traído.

“A qualificação jurídica foi falsidade informática, com a criação do perfil falso no Facebook, e este é um crime que não aparece no código penal, aparece na nossa lei de cibercrime, mas foi também o de crime de devassa da vida privada, por causa da divulgação das imagens, esse sim já previsto no código penal”, detalha o técnico da APAV, explicando que a cada uma das etapas corresponde um crime.

E se o crime de falsidade informática, com a criação de um perfil falso numa rede social, está entre os mais recorrentes neste tipo de criminalidade, convém não esquecer que o que em tempos foi uma partilha de informação baseada na confiança mútua também se pode converter num ato ilegal, quando usado como instrumento de vingança.

“As pessoas, com mais frequência do que se julga partilham passwords, do Facebook, de contas de email… Quando as coisas correm bem, não há problema, quando as pessoas se zangam, esta pode ser uma das primeiras armas. E muitas vezes, devido a essa partilha, o autor do crime acede à conta de email, do Facebook ou de outra rede social da própria vítima e é a partir daí que dissemina este tipo de conteúdos. Aqui já estamos a falar também do crime de acesso ilegítimo, enquadrado no âmbito dos crimes informáticos.”

Há diferentes coberturas jurídicas consoante os contornos concretos de cada caso, da mesma forma que há várias formas de perpetrar este tipo de atos, umas mais sofisticadas do que outras, dependendo do grau de conhecimentos do autor do crime em matéria informática e cibernáutica.

O que deve, então, a vítima desse tipo de criminalidade fazer para se defender?

A APAV aconselha a que o crime seja rapidamente reportado às autoridades – à PSP ou GNR, mesmo que haja situações em que seja a PJ a fazer a investigação. “A celeridade pode ser importante do ponto de vista da recolha e da obtenção da prova, porque os conteúdos estão num sítio, nas no dia seguinte podem já lá não estar e ter mudado para outro mais difícil de descobrir”, explica Frederico Marques.

O passo seguinte é denunciar a divulgação ilegal dos conteúdos para conseguir que os sites onde os conteúdos foram partilhados indevidamente os bloqueiem e removam, e fazer o mesmo às empresas que gerem as redes sociais onde sejam criados perfis falsos.


Veja na fotogaleria os conselhos da APAV para evitar estas situações


Apesar disso, o técnico da APAV deixa um alerta, recorrendo a um chavão: “Uma vez na internet para sempre na internet. A polícia até pode fazer o seu trabalho muito bem, ir a casa do indivíduo, apreender todos os conteúdos e o que está nas redes e em sites pornográficos ser bloqueado e removido, mas nada impede que, entretanto, utilizadores deste tipo de sites ou conhecidos ou amigos da vítima nas redes sociais tenham feito o download desses conteúdos. O efeito multiplicador é potencialmente grande.”

Por isso, para Frederico Marques a melhor arma é a prevenção. O conselho serve para todos os crimes, mas quando têm uma dimensão informática e de cibercriminalidade ela torna-se especialmente importante, mais do que em qualquer outra área. “Depois de o crime acontecer, a acumulação dos seus efeitos é extraordinariamente complicada. As pessoas devem adotar comportamentos responsáveis e o mais seguro possíveis para evitar ao máximo que situações deste tipo aconteçam.”

Mas há casos que não se conseguem antecipar. Quando o ato que deu origem a um crime informático é também ele um ato criminoso, a vítima não tem qualquer capacidade de intervenção nem de prevenção em todo o processo. Uma violação filmada e posteriormente divulgada na Internet e nas redes sociais, como a que aconteceu este ano no Brasil, é disso exemplo e prolonga o trauma a que a vítima foi sujeita.

“O facto de isto poder ser amplamente disseminado é agravante no aspeto imediato e atrasa a ultrapassagem por parte da vítima do crime, porque daqui a seis meses ou daqui a um ano esta vítima ainda está a pensar: ‘E se isto voltar a aparecer?’ Sobretudo, junto de pessoas que são próximas”, explica.

Segundo o técnico da APAV, para uma pessoa que tenha sido vítima de uma situação desse género e com esse grau de violência, a preocupação não será tanto se as imagens aparecem em sites pornográficos, mas nas circunstâncias diárias essenciais para que possa refazer a sua vida: “Se as pessoas que conhece, ou vizinhos, são confrontadas com o conteúdo, de novo ou pela primeira vez, e o que vão pensar sobre ela, etc.”

Ao impacto do primeiro crime, junta-se outro, adicional, resultante da sua divulgação ilegal na Internet. E este impacto prolongado é uma dimensão crítica e considerável dos crimes online, por isso, o apoio psicológico no acompanhamento às vítimas destes crimes revela-se fundamental.

“Há muitas vezes a tendência de quando falamos de cibercriminalidade nos centrarmos nas questões mais materiais, mais imediatas, mas não podemos nunca descurar a importância do apoio psicológico. Obviamente que é preciso fazer primeiro uma avaliação da vítima, porque as vítimas reagem de formas diferentes às situações. Há um crime que nos pode parecer muito menos grave e, no entanto, teve um impacto brutal na vítima”, sublinha Frederico Marques, acrescentando que, na APAV, é muitas vezes da própria vítima que parte esse pedido de auxílio, além de outras respostas mais imediatas que a associação possa fornecer. “A ajuda psicológica é uma das vertentes do nosso apoio, precisamente por termos em conta o impacto neste tipo de situações”, conclui Frederico Marques.

No caso de Setúbal, o desfecho decidido, na quarta-feira, vai ser objeto de recurso, já que o advogado do arguido anunciou que iria recorrer da sentença e pedir absolvição do cliente. Além da pena de prisão, o arguido foi condenado a pagar 75 mil euros à vítima.