Porque estamos tão atentos às mulheres acusadas de crimes?

Rosa Grilo, suspeita de matar o marido, o triatela Luís Grilo, dá uma entrevista ao programa de Hernâni Carvalho, Linha Aberta na SIC. Nessa mesma terça-feira, 16 de outubro, o apresentador, em vésperas de abandonar a emissão diária, conseguia um dos melhores resultados de sempre e aumentava em 240 mil espectadores o seu auditório face ao programa do dia anterior.

Hernâni Carvalho [Fotografia: DR]
Contas finais feitas ao total dos dados, o comentador e analista de crime fechava o formato com mais de 703 mil pessoas sintonizadas.

Cerca de duas horas depois, Carnaxide voltava a apostar no crime, tendo uma mulher como alegada autora, e exibia, liderando, a história de Francisco D’ Eça Leal, ex-marido da cantora Maria Leal, acusando-a de roubo.

Um caso apresentado pela jornalista Sofia Pinto Coelho, na reportagem Vidas Suspensas, emitida no final do Jornal da Noite. Mais uma vitória clara para a SIC, que chegou a registar um pico de um milhão e 370 mil pessoas, levando o bloco noticioso a vencer no horário.

Sofia Pinto Coelho [Fotografia: Enric Vives-Rubio]

Que o crime parece ser um conteúdo apetecível para o auditório, disso não há dúvidas. Porém, quando são as mulheres no papel de alegadas agressoras, o interesse aumenta? “As pessoas estão mais despertas para o crime por duas razões: pelo sentimento de segurança ou insegurança que transportam e por uma componente voyeurista que cresce na sociedade”, começa por analisar Hernâni Carvalho.

 

Na galeria acima, recorde os casos femininos mais recentes – e também os mais antigos – que têm despertado e suscitaram a sociedade.

Mulheres mais visíveis ou a fragilidade a tomar as rédeas da agressão?

“Por via de as mulheres estarem a adquirir um novo papel na sociedade – e que sempre mereceram – tal está a dar-lhes mais visibilidade”, diz ao Delas.pt o comentador e analista de crimes, vincando que esse mesmo destaque também “se verifica na violência doméstica”.

Para Carvalho, não há grande margem para dúvidas: “O auditório está mais desperto para o crime das mulheres porque não era tão plasmado nos ecrãs e na sociedade como hoje, por via do voyeurismo”.

Lara Morgado (Porto Editora)

 

“Isto está a ser mais explorado e, portanto, há mais interesse”, concorda Lara Morgado. A psicóloga – que trabalhou em cadeias femininas e masculinas – e autora da série de ficção da RTP1, Dentro, sobre o quotidiano de uma prisão de mulheres, diz mesmo que se acabaram as balas perdidas no pequeno ecrã. “Conheci casos nas cadeias femininas absolutamente macabros e que não foram grandemente noticiados. Agora, essa matéria é mais explorada, analisada, desenvolvida e comentada. Parece-me que, antigamente, havia menos exploração do crime”, vinca.

“Conheci casos nas cadeias femininas absolutamente macabros e que não foram grandemente noticiados”, conta Lara Morgado

Por isso, do interesse do auditório à necessidade de audiências, o crime parece estar a compensar, com o detalhe de o inesperado ser o rastilho desta bomba. “Ser uma mulher autora de um crime é mais sui generis, é a fragilidade a agredir, o que alimenta o conforto e o quentinho da opinião. Ou seja, há aqui um prazer em ver, dizia um filósofo, os males que não experimentamos e que os outros experimentam.”

Para a especialista, este tipo de conteúdo apresenta-se como “um novo filme”: “O facto de ser mais insólito é ainda melhor, em que é a mulher faz mal ao marido”. Afinal, prossegue Morgado, trata-se do “insólito do crime e o macabro da intenção”, em que “quanto mais frágil é a pessoa, mais interesse gera”.

Quando são elas a abrir a porta ao crime

E se as audiências parecem não querer perder pitada destas histórias, Hernâni não tem por certo que estejamos perante um aumento de curiosidade tão evidente assim. Um olhar que o comentador e analista sustenta com exemplos: “O caso de Maria das Dores foi igual, muito visível. É claro que este crime tinha a componente de girar em torno de uma figura do Jet Set. Embora tenha sido há muitos anos [a condenação foi em 2008], teve praticamente a mesma visibilidade que o caso de Rosa Grilo. Ainda que, de formas diferentes, elas foram as primeiras a procurar esta visibilidade”. Ou seja, apresentaram-se, primeiro, como vítimas, aceitaram falar nesse papel à comunicação social e, pouco tempo depois, colava-se-lhes à pele a imagem de algozes.

“O país comoveu-se com aquela mãe [Leonor Cipriano] que queria saber daquela filha [Joana] e depois espantou-se com o que se percebeu a seguir”, diz Hernâni

Quem não se lembra da mãe de Joana, a Leonor Cipriano? Ela começou por andar à procura da filha e convocar a comunicação social. O país comoveu-se com aquela mãe que queria saber daquela filha e depois espantou-se com o que se percebeu a seguir”, recorda Hernâni Carvalho.

Mas porque é que elas começam por falar? Lara Morgado não tem uma resposta para esta primeira atitude por parte das alegadas autoras de crime, mas tem a experiência de quem as escuta já condenadas e presas. “Os homens têm menos dificuldade em admitir coisas más e mais negras, há mais frontalidade neles. Nas mulheres, há muito a negação da culpa e da vitimização. Elas apresentam uma narrativa mais elaborada, as razões que as levaram a cometer determinado crime e que, muitas vezes, esconde intenções mais básicas”, considera a psicóloga.

Notícias arriscam mostrar mais as mulheres na sua vida privada

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) poderá já estar no encalço desta particular presença feminina. No mais recente relatório sobre a Representação de Homens e Mulheres nos Blocos Noticiosos de Sinal Aberto (RTP1, RTP2, SIC e TVI),entre 2015 e 2017, o regulador admite que “um dos pontos a explorar em futuras análises será o desequilíbrio acentuado, com maior presença de figuras femininas, que se verifica quando os temas dizem respeito à esfera privada”.

Um aviso deixado numa realidade noticiosa em que a presença de protagonistas masculinos supera os 70% e as “mulheres representam apenas “1/5 dos atores destacados nas peças analisadas”. Dados de um país no qual, em matéria de ordem interna, “os homens aparecem, em grande parte, como perpetradores de crimes e as mulheres como vítimas”.

Elas são apresentadas, em terceiro lugar (atrás da política nacional e da sociedade), como vítimas de acidentes e calamidades, violência doméstica e assédio e, ainda, homicídios. Em 2017 e nesta categoria em específico, elas surgiram em 13,4% das notícias (o valor mais alto desde 2015) e eles em 7,4%, o que constitui uma clara inversão de fatores face ao ano que precedeu: 7,5% e 10,2%, respetivamente.

Imagem de destaque: Shutterstock]

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