Portuguesa e voluntária num campo de refugiados, capítulo III

Ferry 1

“Vimos algumas dezenas de refugiados, entre eles famílias com crianças muito pequenas, à chuva. Distribuímos logo os ponchos de plástico.”


Saiba porque é que Leila Campos está em Lesbos num campo de refugiados


Os deuses pareciam estar loucos na noite em que fiz o primeiro turno em Moria. O vento forte e a chuva impediram a chegada de barcos. Havia poucos refugiados no campo e com o fim da greve dos ferries, os que receberam o registo já se encontravam no porto, para embarcar no barco que partia às 8 da manhã. Em equipa, decidimos ir ao porto distribuir ponchos, cobertores, luvas e mantimentos. Com 11 horas de viagem pela frente, até chegarem a Atenas, esta seria a ajuda que poderíamos dar naquela noite. Chegámos a meio da madrugada, chovia muito, mesmo muito. Vimos algumas dezenas de refugiados, entre eles famílias com crianças muito pequenas, à chuva. Distribuímos logo os ponchos de plástico.

Para as crianças levámos também lollipops e conseguimos arrancar-lhes um sorriso. Algumas ensaiaram um “thank you very much“. A maior parte destas pessoas não fala inglês, mas depressa descobrimos que existe uma linguagem universal. Levámos vassouras para deixarmos o local limpo. Quando comecei a varrer, um jovem refugiado, parecia ter 17 anos, tirou-me a vassoura da mão e começou ele a limpar. Através de gestos disse-lhe que não. Que ele tinha de se abrigar da chuva, que não estava protegido como eu. Não se importou, e por 15 minutos trabalhámos juntos. Ele varria e eu colocava o lixo nos sacos.
Com a chuva a não dar tréguas, perguntámos aos tripulantes do ferry se era possível mandar entrar todos os refugiados que estavam à espera. Um membro da equipa, voluntário aqui há 4 meses, disse-me que normalmente este pedido é recusado. Tentámos, e naquela noite todos tivemos sorte. Recebemos luz verde e apressámo-nos a colocar toda a gente no barco. Saímos do porto já era dia.
À parte deste quotidiano, as histórias que se cruzam neste cenário com muitos atores são surreais. Os traficantes que vendem viagens suicidas aos refugiados por mil euros. Que os colocam em botes de borracha, com coletes salva-vidas falsos, e que por mais 500 euros lhes prometem um pacote especial. Sim, um pacote tipo “all in one”, que inclui ajuda do lado grego, com possibilidade de escolherem roupa nova e comida. Este esquema foi percebido por um voluntário e partilhado por todos, para que entendêssemos porque é que alguns refugiados, na tenda de distribuição de roupa, eram tão picuinhas ao ponto de quererem escolher as cores e até o estilo de roupa.

A sofisticação dos traficantes chega ao ponto de venderem os serviços dos voluntários. E os atores deste filme mudam diariamente. Há 4 dias que não chegam barcos com refugiados. A Turquia está finalmente a punir os traficantes do seu lado. A guarda costeira grega e a Frontex, a agência que controla as fronteiras externas da UE, estão a intensificar a sua presença no mar, e a NATO tem navios a caminho do Mar Egeu. Existem também rumores que os campos vão em breve passar a ser geridos pelo exército e as movimentações militares na ilha já são visíveis. A boa notícia é que há menos barcos a fazerem a travessia e também menos pessoas a perderem a vida. A má notícia é que do outro lado, o turco, estão milhares de refugiados à espera de atravessar.