A Selva de Calais vista por uma voluntária portuguesa

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Esta semana é decisiva para as cerca de 10.000 pessoas que residem no campo de refugiados em Calais. Numa designada ação humanitária, o governo francês iniciou o desmantelamento do campo, com o propósito de realojar os refugiados nos vários centros de acolhimento a Europa. As famílias são as primeiras a ter colocação, ninguém sabe ainda para onde vão os menores desacompanhados.

Lara Silveira é uma açoriana de 29 anos que saiu de Portugal, em 2011, para trabalhar em França e no Reino Unido, decidiu candidatar-se como voluntária e ir sozinha para a Selva. Em entrevista ao Delas.pt, Lara conta como foi esta experiência, porque voltou uma segunda vez e porque voltar novamente não está fora de questão.

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Acabou de voltar de Calais. Ainda está a digerir a experiência que viveu, agora que voltou para Londres?

Estou essencialmente a acompanhar as notícias sobre a evacuação dos refugiados e a página Help Refugees no Facebook. A expectativa é muita e estou a torcer para que tudo corra como o governo francês planeou e sem grandes incidentes ou uso de força.

É um momento muito particular, a Selva vai ser desmantelada. Como se vive essa transição no terreno?

Apenas grupos restritos de voluntários e com acordo prévio da polícia têm podido entrar no campo. Eu não entrei desta vez. Os voluntários que tiveram este fim de semana a tarefa de dar aconselhamento aos refugiados contam que os ânimos estão exaltados e há rixas com facas que acontecem pelos mais pequenos motivos. Há muitos que querem esta solução mas outros tantos não querem arredar pé e as equipas temem conflitos piores durante esta semana.

É um ato de coragem ir sozinha como voluntária para um campo de refugiados. Quando decidiu candidatar-se?

Eu seguia já há algum tempo as plataformas Help Refuges, CalAid e Refugee Community Kitchen. Admiro imenso o trabalho destas organizações face a todas as provações e falta de apoios governamentais e percebi rapidamente que os voluntários são essenciais para que estas associações continuem a doar. Decidi ir ajudar no armazém durante alguns dias em julho. Calais na verdade fica a apenas 1h de viagem de [comboio] Eurostar de Londres ou a 2 horas a conduzir. É aqui ao lado e é um problema demasiado próximo para ser ignorado.14858833_10208631194429985_1096773549_o

Como é que foi o primeiro dia, aquele impacto inicial?

Nunca pensei que houvesse tantas doações a chegar todos os dias e nunca pensei que houvesse tanta necessidade. Nunca pensei que houvesse tantas doações de coisas completamente desnecessárias como por exemplo uma empresa de informática que decidiu doar ratos para computadores. Percebi rapidamente a importância do trabalho dos voluntários para selecionar o que pode ser doado aos refugiados, o que está em boas condições e o que faz falta. A roupa que não está em bom estado é vendida ao kilo para isolamento de casas, a que está boa mas não é o que as pessoas procuram é doada a lojas de segunda mão. Outros equipamentos recebidos em grandes quantidades são selecionados, empacotados e enviados para outros campos espalhados por toda a Europa, nomeadamente na Grécia. Impressionou-me muito a boa vontade das pessoas independentemente daquilo que leva cada um a fazer voluntariado.

Foi em julho e regressou agora em outubro. Porque é que decidiu voltar?

Uma das perguntas mais frequentes que me fizeram depois da primeira vez que fiz voluntariado era se gostaria de ir novamente – como se eu fosse maluca por ir. Claro que a vontade de voltar era evidente especialmente agora que conheci por dentro a dimensão do problema. Os voluntários não trazem a solução mas ajudam a dar dignidade àqueles que esperam por soluções e apoio governamental. Tive a oportunidade de voltar em outubro porque coordenei as datas com voluntários que tinham ido também em julho e vou regressar sempre que me for possível.

Viveu uns anos em França, por isso, conhece um pouco do país. Como prevê que será esta transição?

Finalmente, o governo francês reconheceu este campo e planeou (ao que parece) uma evacuação cuidada. No entanto, é um grande peso para o país ter de alojar 10,000 pessoas – muitos deles estavam na “selva” há mais de um ano, muitos deles com transtornos pós-traumáticos, muitos deles sem falar uma única palavra em francês ou inglês – ninguém espera uma transição fácil.

Duas vezes, duas alturas distintas. Quais as principais diferenças que sentiu de uma vez para a outra?

As prateleiras com comidas secas (farinhas, sal, arroz, especiarias, etc) estavam agora mais vazias. As tendas foram ocupadas agora por malas e mochilas e havia muito menos voluntários do que em julho.

Algum caso, alguma história que se tenha cruzado no seu caminho que recorde com especial carinho?

Não me esqueço do Alan, o rapaz Sudanês a quem tentei ensinar inglês em uma hora. Quando terminámos a sessão e ele me perguntou se eu voltaria no dia seguinte eu disse que não (era o meu último dia de voluntariado). Então ele disse “Mas se não vens amanhã vens no dia seguinte!” Voltei a dizer-lhe que não voltaria. Ele perguntou-me porquê e eu disse que tinha de voltar para casa, já a tentar evitar a próxima pergunta: “onde é a casa?”

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Eu tive de responder Londres – a cidade para onde tantos querem ir. Foi um momento muito difícil. Senti-me extremamente privilegiada por poder regressar a casa com o meu passaporte português e passar na alfândega sem levantar a curiosidade dos seguranças. Eu que posso voltar ao campo quando quiser e que posso viajar para qualquer parte do mundo se assim o decidir fazer, eu que posso ir ver a minha família quando quiser. Senti angústia por parecer que lhes estava a virar as costas. Percebi que o trabalho dos voluntários é um penso que não sara a ferida mas que ajuda a que doa um pouco menos.

 

Enquanto mulher, em algum momento sentiu perigo?

Não, não me senti ameaçada. No entanto, há recomendações a ter em conta. Somos aconselhadas a não ter o cabelo solto, a usar calças e roupa larga e a nunca andarmos sozinhas. Mas são cuidados que também tenho quando viajo sozinha para outros países.

Como alguém que conhece Calais, na primeira pessoa, o que é que gostava que estivesse a ser reportado e não está?

Apesar de ser um assunto recorrente nos jornais e de os jornalistas explorarem até ao tutano a questão das crianças refugiadas, acho importante frisar que esta não é uma situação fácil tanto para refugiados como para os países que acolhem.

Não chegam apenas sírios. Estima-se que haja cerca de dez nacionalidades mas a maioria são sudaneses, afegãos e sírios. Comparado ao número de homens jovens adultos, o número de crianças em Calais é inferior.

O que eu gostava mesmo é que houvesse maior compaixão na mensagem vinculada pelos media. Em vez de olharem para o problema com distância e até alguma superioridade, colocassem antes a questão: “E se fossemos nós?”