Portuguesas chegaram aos tribunais e aos registos há 100 anos

Da advocacia aos registos civis, as mulheres portuguesas viram legitimado o acesso a “várias funções públicas” tradicionalmente exercidas por homens, através de um decreto promulgado há cem anos por Sidónio Pais. Um documento onde o trabalho era aberto a algumas, mas no qual ainda não lhes era concedido o voto.

Maria Cândida Parreira e Maria Amélia estrearam-se nas barras do tribunal depois daquele decreto, Regina Quintanilha tinha já começado em 1913 (veja quem foram na galeria acima).

Regina Quintanilha [Fotografia: Global Imagens]

Esta advogada começou a apresentar-se no Tribunal da Boa Hora, após conseguir uma autorização do Supremo Tribunal de Justiça, cinco anos antes do diploma, datado de 19 de julho de 1918, ter sido publicado no Diário do Govêrno. Foi também um mês depois de as sufragistas terem voltado a exigir o direito de voto, num documento entregue ao então Presidente da República.

“A Regina Quintanilha é importantíssima”, disse a historiadora Irene Pimentel à agência Lusa, recordando que a Constituição de 1911 permitia já às mulheres trabalharem na Função Pública, pelo que o decreto terá vindo reconhecer ou regulamentar uma realidade em curso.

Deixava, no entanto, a ressalva de que cargos dirigentes continuariam destinados aos homens: “Tam só se não deverá perder de vista que, iguais embora em capacidade de inteligência e de trabalho, há contudo, funções de direção e de iniciativa que naturalmente estão reservadas para o homem”.

Era igualmente permitido às mulheres (pode ler o diploma na íntegra abaixo), “em igualdade de habilitações com os homens”, desempenhar as funções de ajudantes dos postos e das repartições do registo civil. Ao mesmo tempo, explicitava-se que a lei portuguesa ainda não acompanhava o direito ao voto, referindo as “tam adiantadas sociedades anglo-saxónias”, onde era já comum “a concessão” desse direito político às mulheres.

Decreto do ‘Diário do Governo’ de 19 de julho de 1918 [Fotografia: Global Imagens]
“Sem se poder acompanhar ainda em Portugal esse cada dia mais largo reconhecimento da competência e da concorrência feminina, é já porém mester reconhecer o facto da frequência das mulheres nos cursos de instrução secundária e superior e o consequente direito do advento das diplomadas ao exercício das profissões liberais“, determinava o diploma.

A exceção chamada Carolina Beatriz Ângelo

A legislação era sobre trabalho, mas o legislador aproveitava para clarificar a questão do voto no mesmo diploma. Havia já ocorrido o caso de Carolina Beatriz Ângelo, viúva, chefe de família e com a instrução requerida na lei, que conseguiu votar nas eleições para a Assembleia Constituinte, alegando ter todas as condições.

“A Constituição de 1911 não dizia que só os homens é que podiam votar”, refere Irene Pimentel. “Evidentemente que aquilo foi muito complicado, porque houve todo um processo em que o próprio regime disse que ela não podia votar”.

Primeiro, o recenseamento não foi aceite. “Ela colocou o caso em tribunal e apanhou um juiz que era filho de outra feminista, Ana de Castro Osório”, recorda Irene Pimentel, que estudou o caso, juntamente com o de outras mulheres da Iª República e, depois, do Estado Novo. A decisão acabaria por ser favorável, uma vez que Beatriz Ângelo era portuguesa e tinha todas as condições para votar, segundo a lei, conforme interpretaria também o juiz.

Seguir-se-ia uma nova lei de voto que destinava o sufrágio político exclusivamente aos homens. “O problema é que isto continua, porque elas podem trabalhar e fazer muitas coisas, mas o voto é que não”, observa a historiadora.

O curto período do sidonismo teve “algumas leis benéficas para as mulheres”, assinala Irene Pimentel, sublinhando a importância do elemento feminino no regime. “Os ditadores – e o Sidónio foi um ditador – e depois mais tarde Mussolini (a partir de 1922), e, em Portugal, Salazar contam com as mulheres, quer no lar, quer também para que convençam os maridos no apoio às novas ditaduras“, defende.

Tanto Regina Quintanilha como Carolina Beatriz Ângelo faziam parte de uma elite com capacidade para recorrer a outras instâncias na luta pela emancipação. O voto apenas viria a tornar-se universal em Portugal após a revolução de 1974.

CB com Lusa

Imagem de destaque: Global Imagens/Montagem

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