#PowerWoman: Carla Pais é a escritora revelação de 2017

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Carla Pais tem 38 anos e é a nova aposta da Porto Editora e uma das autoras revelação de 2017. Mea Culpa é o romance que introduz a escritora no panorama literário nacional e tem sido recebido com críticas positivas, pela escrita segura, dura e poética que revela nesta obra.

Espécie de autodidata na escrita, terminou o 12º ano já depois de casada e do nascimento do seu primeiro filho, em 1998, com 19 anos. Mais de dez anos depois emigra com a família para França, onde trabalha em atividades diversas: nas limpezas, a embalar salmão e a tomar conta de crianças, até arranjar um emprego num escritório. No final de outubro, deste ano, lançou aquele que é o seu primeiro romance.

Mea Culpa fala sobre os marginalizados de uma aldeia portuguesa. É, como diz Carla Pais, um livro cru, “não muito fácil” e do qual se gosta muito ou não se gosta nada. “Não há um meio-termo”, como acontece nas histórias de muitas aldeias, como a sua. A escritora é natural da aldeia de Chãs, situada a sete quilómetros de Leiria.”É uma aldeia tipicamente portuguesa, onde nascem todo o tipo de histórias”, começa por dizer, em entrevista ao Delas.pt.

“As histórias são cruas, feitas de traços muito nítidos, muito chocantes e isso marca-nos no nosso crescimento”

Para uma criança que cresça numa aldeia como aquela, entre os anos 70 e 90 – altura em que o acesso a uma série de bens e à informação, numa época pré-internet, era mais difícil -, esse contexto pode ser tão marcante quanto limitador. Muitas vezes é o único universo que se conhece. “As histórias são cruas, feitas de traços muito nítidos, muito chocantes e isso marca-nos no nosso crescimento”, sublinha.

No seu caso, as primeiras a deixarem marcas foram as do tempo da escola primária, da criança cigana e da criança pobre, filha de vendedores de sucata, que a frequentavam e que a aldeia, na altura, “não estava preparada para receber”. “Os pais tinham a tendência de nos proibir de nos darmos com esse tipo de pessoas porque as julgavam sem as conhecer – eram as histórias que ouviam dizer – e eu tinha a tendência de fazer o oposto.”

Julgamentos que se tornam mais notórios nas aldeias do que nas cidades, colocando vidas à margem, e que são transportados para este livro. “A ideia com que eu cresço é que há uma margem nas aldeias, uma distinção entre o que é bom e o que é mau, sem nunca sabermos exatamente de que lado é que está o mal, porque julgamos pela aparência, pelo nome ou pelo estatuto.”

Ler Mea Culpa é, portanto, entrar um pouco no tipo do universo que rodeou parte do crescimento de Carla Pais. Porém, não é só a aldeia que leva para o seu livro, é também o que foi vivendo ao longo do seu percurso desde que saiu de Chãs, começando por um contacto maior com a cidade.

Na altura em que cresci, Leiria era a cidade”. Também havia problemas e marginalização, mas menos “notáveis” que na aldeia.

A cidade trouxe-lhe um sentimento de liberdade em relação às pressões e à “formatação que as pessoas que vivem nas aldeias gostam de fazer às crianças.” Crescer, estudar, trabalhar e constituir família são a evolução lógica e esperada nesse contexto. Para uma mulher, essas expectativas podem ser especialmente castradoras. “As mulheres têm sempre muito mais pressão. É de nós que esperam, porque o homem pode sair da aldeia para ir trabalhar para o exterior e ninguém o condena por isso. Ele vai buscar sustento para a família. Uma mulher se pensar em sair da aldeia para ir trabalhar fora, a ideia é logo, ou tem alguém, ou anda com a cabeça no ar. São estes juízos de valor que se fazem mais em relação às mulheres.”

Por isso, o contacto com a cidade e a entrada no secundário acabam por ser o início da sua construção pessoal. No secundário começo a sair, porque há os jantares de turma e aquilo faz parte da minha vida social e dos meus amigos e começo a construir-me enquanto pessoa, a entrar na cidade. E aí percebo que há outras coisas para descobrir e outras formas de vida que não são as que os meus pais me querem transmitir”

Para ela, e apesar das circunstâncias, casar cedo foi sinónimo de liberdade. A autora tinha 17 anos quando contraiu matrimónio, por estar grávida.

Como vivemos numa aldeia, os pais têm sempre a tendência de não transgredir muito a ideia do que é uma família de bem, e uma família de bem nunca pode ser aquela que tem uma filha que engravida aos 16 ou aos 17 anos. Isso é um drama”. Embora não fizesse questão de casar, como refere, sendo menor cumpriu a vontade dos pais. Mas o facto de casar permite-lhe uma nova vida, fazer o que quisesse e “descobrir outras coisas que, vivendo na casa dos pais ou estando sujeita às suas regras, teria descoberto muito mais tarde”.

Carla Pais tem 38 anos, nasceu em Leiria e atualmente vive em França, onde trabalha como empregada de escritório (Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Deixar a escola e começar a trabalhar

Ainda antes de engravidar, um chumbo por faltas, no liceu, levou o pai a ensinar-lhe o que hoje vê como uma boa uma lição. “Não me perdoou e no ano a seguir diz: ‘vais trabalhar para aprender o que é a vida e talvez depois quando voltares à escola, dês mais valor’. E não estava errado. Só que entre uma coisa e outra engravido.” E a censura de uma gravidez na adolescência passa dos limites da aldeia para os corredores da escola.

Quando casa deixa então de estudar para passar a trabalhar. Entretanto sofre um aborto, um “choque enorme” que vai gerindo ao longo de dois anos, até dar à luz o seu primeiro filho. “Quando o João nasce há um alívio, tudo passa”. É essa paz de espírito que lhe permite voltar à escola. Assim como a ajuda do marido, “porque ficava com o bebé”, o que lhe permitiu retomar os estudos à noite e a redescobrir a “paixão por aprender”.

Decide voltar à escola por “sentir que precisava de mais”, de voltar a “aprender, a ler e a descobrir novas coisas, novos livros, e de escrever”.

A relação com a escrita e o percurso até ao lançamento

O gosto pela escrita é anterior, começa aos 13 anos, nos diários da adolescência, que fixam as ideias em folhas perfumadas e as guardam do mundo cadeado. Ao mesmo tempo eles também servem de escape às regras do meio circundante. Mantém essa rotina até casar. Mas o prazer de escrever só volta com o regresso dos estudos e da sede de conhecimento.

Há um livro que me empurra nesse sentido que é o Já então a Raposa era o Caçador , de Herta Müller, e eu leio aquilo, aquela crueldade que ela narra de uma forma tão poética. É difícil escrever depois de ler um livro daqueles, mas é ele que me empurra para: ‘eu tenho coisas para dizer também e quero que seja desta forma bonita’”.

A criação de um blogue, em 2012, ajudou não deixar cair essa vontade, com os anos, e a criar uma nova rotina diária, e adulta, em relação à escrita. Mas a plataforma acaba por ceder lugar aos livros dos outros. “Começo a ler mais e dedico mais tempo à leitura do que à escrita, então acabo com o blog”. 2012 é também o ano que emigra para França. A crise e a falta de perspetivas de futuro, sobretudo para a educação dos filhos, levam-na a fazer as malas e abraçar novos desafios e trabalhos. Mas a escrita mantém-se constante, nos contos ou nos poemas que antecedem este romance.

Além do romance ‘Mea Culpa’, Carla Pais, recebeu o Prémio de Poesia Francisco Rodrigues Lobo, pela sua sua obra ‘A Instrumentação do Fogo’. (Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Em 2015, há uma personagem que começa a nascer na sua cabeça e que precisa de trazer “cá para fora”, como diz. É aí que decide que vai escrever Mea Culpa, para dar vida a Amadeu, um ex-recluso, julgado e marginalizado pela aldeia onde vive. Tenta a sua sorte e consegue a publicação, pela Porto Editora, que vê no seu primeiro romance “uma obra reveladora de grande talento literário”.

A ideia com que eu cresço é que há uma margem nas aldeias, uma distinção entre o que é bom e o que é mau, sem nunca sabermos exatamente de que lado é que está o mal, porque julgamos pela aparência, pelo nome ou pelo estatuto”

E se foi Herta Muller que, no passado, a levou a querer escrever os seus próprios livros, hoje são o marido e os dois filhos quem não a deixa abandonar a paixão.

No fim do jantar, eles levantam-se e vão sempre ligar-me o computador e dizem: ó mãe, já ligámos o computador, podes ir trabalhar’. Para eles o meu trabalho é escrever, à noite, que é para lhes deixar livre a televisão.” O trabalho num Centro de Formação à Distância, onde é empregada de escritório, é quase como se fosse “um part-time” que “ocupa a mãe durante o dia, porque o trabalho da mãe é escrever”.

Para Carla Pais, a classificação das duas atividades é diferente, a escrita é uma atividade “suplementar” e uma espécie de segunda vida. “É como se tivesse um trabalho em Portugal e outro em França”. Mais do que ser uma forma de continuar ligada ao país, escrever é uma maneira de se manter ligada a si mesma. “É uma forma de retomar sempre as minhas raízes e de não esquecer que, por mais desiludida que eu tenha estado com o meu país e de ter saído por causa disso, a língua portuguesa faz parte da minha construção.”

Mea Culpa chegou a ganhar o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís 2016, mas este acabou por ser retirado pelo facto de a autora já ter uma pequena obra publicada. Este ano, também a sua obra A Instrumentação do Fogo arrecadou o Prémio de Poesia Francisco Rodrigues Lobo.

 

Fotografias. Reinaldo Rodrigues