Pré-publicação: Autora de ‘Cisnes Selvagens’ volta com ‘As Irmãs Soong’

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[Fotografia: iStock]

Autora da obra autobiográfica Cisnes Selvagens e, entre outros livros, a biografia de Mao Tsé Tung, a autora chinesa a viver em Londres, Jung Chang, está de regresso com uma nova obra. Em As Irmãs Soong – A Mais Velha, A mais Nova e a Vermelha, da editora Quetzal, a escritora mergulha pela história de três mulheres que dominaram a China, no século XX.

Capa do livro "As irmãs Soong", de Jung Chang [Fotografia: Divulgação]
Capa do livro “As irmãs Soong”, de Jung Chang [Fotografia: Divulgação]
Capa do livro “As irmãs Soong”, deJung Chang [Fotografia: Divulgação]

O Delas.pt faz agora a pré-publicação do livro que vai chegar às livrarias a 8 de novembro e revela, nesta excerto, as motivações que levaram a autora, de 67 anos, a olhar para esta realidade.

Leia abaixo o começo da obra:

O «CONTO DE FADAS» MAIS CONHECIDO da China moderna é a história de três irmãs de Xangai, nascidas nos últimos anos do século XIX. A família, de nome Soong, era rica e importante e pertencia à elite da cidade. Os pais Soong eram cristãos devotos, a mãe um membro do clã cristão mais ilustre da China (o Xu, cujo nome deu origem a um bairro de Xangai) e o pai o primeiro chinês a ser convertido no Sul da América pelos metodistas, quando ainda era adolescente. As três filhas — Ei-ling («Idade Suave», nascida em 1889), Ching-ling («Idade Gloriosa», nascida em 1893) e May-ling («Idade Bela», nascida em 1898) — foram mandadas para a América quando eram crianças a fim de ali serem educadas, algo muito raro na época; e as raparigas voltaram para casa, anos mais tarde, a falar melhor inglês do que chinês. Pequeninas, de rosto quadrado, não eram grandes beldades, segundo os cânones tradicionais, os rostos não tinham a forma de sementes de melão, os olhos não eram amendoados e as sobrancelhas não eram arqueadas como rebentos de salgueiro. Mas tinham a pele fina, traços delicados e um porte gracioso destacado pelas roupas elegantes. As irmãs tinham visto mundo; eram inteligentes, de espírito independente e seguras de si. Tinham «classe».

Porém, o que as tornou «princesas» da China moderna foram os seus casamentos excecionais. Um homem que se apaixonou primeiro por Ei-ling e depois por Ching-ling foi Sun Yat-sen, pioneiro da revolução republicana que derrubou a monarquia em 1911. Conhecido como o «Pai da China (republicana)», Sun é venerado no mundo de língua chinesa. Ching-ling casou com ele.

Sun morreu em 1925. O seu sucessor, Chiang Kai-shek, fez a corte e casou com May-ling, a Irmã Mais Nova. Chiang formou um governo nacionalista em 1928 e governou a China até os comunistas o afastarem para Taiwan em 1949. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando Chiang liderou a resistência chinesa contra a invasão japonesa, ela tornou-se uma das mulheres mais famosas do seu tempo.

A Irmã Mais Velha, Ei-ling, casou com H.H. Kung, que graças aos conhecimentos da mulher ocupou os cargos de primeiro-ministro e ministro das Finanças durante muitos anos. Esses cargos, por sua vez, ajudaram Ei-ling, que conseguiu tornar-se uma das mulheres mais ricas da China.

A família Soong, que tinha também três filhos, constituiu o círculo interno do regime de Chiang Kai-shek — exceto Ching- -ling, a viúva de Sun Yat-sen, que se ligou aos comunistas. Era muitas vezes designada Irmã Vermelha. Por isso, dois campos políticos antagónicos separavam as irmãs. Durante a guerra civil que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, a Irmã Vermelha fez o que podia para ajudar os comunistas a derrotarem o regime de Chiang, embora isso significasse a ruína da família. Após o colapso do regime de Chiang e da fundação da China comunista sob Mao Ze-dong, em 1949, a Irmã Vermelha tornou-se vice- -presidente de Mao.

As irmãs foram claramente muito além dos seus casamentos influentes. No mundo de língua chinesa, as pessoas não se cansam de falar delas, incluindo das suas vidas privadas. Lembro-me de duas histórias, quando cresci na China de Mao da década de 1950 à de 1970 e o país estava sob um rígido controlo totalitário, completamente isolado do mundo exterior. Uma era que Mme. Chiang — a Irmã Mais Nova — tomava banho todos os dias em leite para manter a pele luminosa. Nessa época, o leite, muito nutritivo e desejável, era escasso e não estava acessível às famílias de classe média. Usá-lo como água do banho era considerado um luxo ofensivo. Uma vez, um professor tentou reparar este mito comum e murmurou aos seus alunos: «Acham que era realmente agradável tomar banho em leite?» Depressa entrou nas fileiras dos «direitistas» condenados.

A outra história que deixou uma impressão profunda em mim foi a de que Ching-ling, vice-presidente da puritana China vermelha, vivia com o seu guarda-costas principal, que tinha menos de metade da sua idade. Diziam que tinham desenvolvido uma relação física devido ao guarda-costas ter de transportá-la da e para a cama, quando já velha estava em cadeira de rodas. Especulavam interminavelmente sobre se tinham casado e discutiam se a relação era aceitável. Dizia-se que o partido permitiu o caso por consideração, devido ao facto de Ching-ling estar viúva há muito tempo e precisar de um homem e que o partido até lhe permitira manter o prestigiado nome de Mme. Sun. Recordo especialmente esta história porque é muito raro haver mexericos sobre a vida sexual de um dirigente do país. Ninguém se atrevia a dar à língua sobre qualquer outro funcionário superior.

Depois da morte de Mao em 1976 e da abertura da China, fixei-me em Inglaterra e aprendi muito mais sobre as irmãs. Em meados da década de 1980 até me encomendaram um pequeno livro sobre a Irmã Vermelha, Ching-ling. Mas, embora tenha feito alguma investigação e reunido 30 000 palavras, curiosamente não me senti atraída pelo tema. Nem sequer tentei apurar a verdade sobre o escândalo que envolvia o guarda-costas.

Em 1991, foi publicado Cisnes Selvagens: As Três Filhas da China, o livro sobre a vida da minha avó, da minha mãe e minha. A seguir escrevi uma biografia de Mao, com o meu marido, Jon Halliday. Mao e a sua sombra dominaram os primeiros 26 anos da minha vida e estava desejosa de saber mais sobre ele. A seguir, a imperatriz viúva Cixi, o último grande monarca da China (sem coroa, porque as mulheres não podiam ser monarcas), prendeu a minha atenção. Ascendendo de concubina de baixo estrato a estadista, Cixi governou o império, por trás do trono, durante décadas e trouxe o país medieval à idade moderna. As duas personagens paralisaram e absorveram 20 anos da minha vida. Sobre quem escrever a seguir era uma escolha difícil. Surgiu a ideia das irmãs Soong, mas descartei-a. Depois de Cisnes Selvagens, tinha estado a escrever sobre incubadores de programas e modificadores da história, o que as irmãs não foram.

Como indivíduos, segundo informação disponível, permaneciam figuras de conto de fadas, resumidas pela descrição muitas vezes citada: «Houve na China três irmãs. Uma adorava o dinheiro, outra adorava o poder e a terceira adorava o seu país.» Parecia não haver conflitos mentais, dilemas morais ou decisões dilacerantes — tudo o que torna os seres humanos reais e interessantes.

Em vez delas pensei em escrever sobre Sun Yat-sen, o Pai da China republicana. Viveu de 1866 a 1925 e ganhou importância no período de Cixi a Mao. Sun foi um implementador de programas como eles e uma espécie de «ponte» entre eles. Sob o governo de Cixi, a China tinha iniciado o caminho para a democracia parlamentar e esperava maior liberdade e abertura. Contudo, quatro décadas depois da morte de Cixi em 1908, Mao tomou o poder, isolou o país e mergulhou-o numa tirania totalitária. O que aconteceu nessas quatro décadas em que Sun Yat-sen fez o seu papel? A questão estava a incomodar-me. Tinha chegado a minha oportunidade de descobrir.

Para os chineses e para os que estão fora do mundo falante de chinês que já ouviram falar dele, a imagem de Sun é a de um santo. Mas seria? Exatamente o que fez pela China e para a China? E como era enquanto pessoa? Queria descobrir as respostas a estas e outras perguntas.

Foi quando estava a montar a vida de Sun — e das pessoas que o rodeavam — que a profundidade de caráter da sua mulher e das irmãs dela emergiu e prendeu a minha imaginação. Percebi que Sun era um perfeito animal político, que perseguiu a sua ambição com firmeza. Foi um alívio (para um biógrafo) não ser um santo. Seguir o seu caminho para o poder, que era cheio de altos e baixos, gangsters e métodos de gangsters, tais como vinganças e assassínios, era como ler um policial. E era satisfatório descobrir como esse homem fez história. Mas a vida das mulheres, de que a política era apenas uma parte, tornou-se gradualmente mais rica e apelativa. Decidi fazer delas o tema deste livro.

Quando me concentrei nas irmãs, tornou-se claro para mim como eram extraordinárias. As suas vidas atravessaram três séculos (May-ling morreu em 2003, aos 105 anos), estando no centro da ação durante cem anos de guerra, revoluções sísmicas e transformações dramáticas. O cenário ia de grandes festas em Xangai a penthouses em Nova Iorque, de instalações de exilados no Japão e Berlim a salas de encontros secretos em Moscovo, de complexos da elite comunista de Pequim aos corredores do poder na Taiwan democratizada. As irmãs experimentaram a esperança, a coragem e o amor apaixonado, bem como o desespero, o medo e o desgosto. Desfrutaram de um luxo imenso, privilégios e glória, mas arriscaram também constantemente a vida. Numa situação em que escapou à morte por pouco, Ching-ling teve um aborto e nunca mais pôde ter filhos. A sua angústia teria um grande papel no seu comportamento como vice-presidente da China comunista.

May-ling também teve um aborto que a deixou sem filhos. O marido Chiang Kai-shek, cuja carreira política arrancou depois de ter assassinado um dos inimigos de Sun, foi também perseguido por assassinos, dois deles aproximaram-se do seu leito conjugal uma noite.

Ei-ling ajudou a Irmã Mais Nova a preencher o vazio deixado por não ter filhos, mas teve de suportar as suas próprias desilusões durante a longa vida, a menor das quais não era uma má reputação universal: era vista como a Irmã Mais Velha gananciosa e má, enquanto a Irmã Vermelha era tratada como uma pura deusa e a Irmã Mais Nova como uma glamorosa estrela internacional. A relação entre as três mulheres tinha uma elevada carga emocional e não apenas porque Ching-ling estava a trabalhar ativamente para destruir a vida das outras duas. Chiang Kai-shek matou o homem que ela amava depois da morte de Sun — Deng Yan-da, um carismático líder natural que formara um Terceiro Partido, como alternativa aos comunistas e nacionalistas. A história moderna chinesa está intimamente ligada a traumas pessoais das irmãs Soong. Ao escrever sobre elas — e os colossos da China Sun Yat-sen e Chiang Kai-shek —, fui brindada com abundantes materiais. Imensa correspondência, memórias e escritos, incluindo muitos guardados na China, foram publicados ou disponibilizados. Em Taiwan, agora uma democracia, os arquivos abriram as portas. Londres, onde Sun iniciou o seu próprio «rapto» que lançou a sua carreira, oferece muitas perspetivas. Sobretudo na América, a que a sua família alargada estava intimamente ligada, as instituições e bibliotecas albergam numerosas coleções de documentos que são verdadeiros tesouros. Mais um e muito valioso é o diário de Chiang Kai-shek, que ele escreveu todos os dias durante 57 anos e que é especialmente pessoal, com muitas revelações sobre o seu casamento com May-ling.

A história das irmãs Soong começou quando a China entrou na transição da monarquia para a república. O homem que desempenhou o papel mais importante neste processo histórico foi Sun Yat-sen. Sun e a sua revolução republicana marcariam a vida das três irmãs.

Imagem de destaque: DR