Se soubesse a data da sua morte, como viveria a sua vida? Este livro dá quatro exemplos

Os Imortalistas - Chloe Benjamin

Os Imortalistas é o novo livro da autora norte-americana Chloe Benjamin, cuja primeira obra (The Anatomy of Dreams, no título original em ingês) ganhou o Edna Ferber Fiction Book Award. Este segundo título tem sido um sucesso junto da crítica e vai mesmo dar origem a uma série de televisão.

Chloe Benjamin [DR]
A edição portuguesa – publicada pela Planeta – chega às livrarias a 2 de julho e promete conquistar os leitores nacionais com uma premissa universal: ‘Se soubesse a data da sua morte, como viveria a sua vida?’. É este o ponto de partida da história que fala de quatro irmãos pré-adolescentes que têm um encontro com uma vidente que lhes diz exactamente quando vão morrer. Essa informação acaba por moldar a vida de cada um, interferindo nas escolhas que as personagens fazem a partir do momento em que conhecem a data do seu fim. 

Mais do que o tema da morte em si, o livro é uma reflexão sobre as escolhas que tomamos perante a materialização da ideia da nossa própria finitude.

O Delas.pt, em parceria com a editora Planeta, pré-publica um excerto do livro Os Imortalistas de Chloe Benjamin, que pode ler abaixo.

 

Capa do livro [DR]

 

Os Imortalistas

Ouviu dois rapazes a falar, na semana anterior, quando estava na fila para a comida chinesa kosher da Shmulke Bernstein’s, onde tencionava comprar uma das tartes quentes de ovo e custarda que tanto gosta de comer, mesmo quando está calor. A fila era comprida, as ventoinhas zumbiam no máximo da velocidade, de modo que teve de inclinar-se para a frente para ouvir os rapazes e o que diziam a respeito da mulher
que assentara residência temporária no último piso de um edifício em Hester Street.

No caminho de volta ao número 72 da Clinton, Daniel sentia o coração saltar-lhe no peito. No quarto, Klara e Simon jogavam Escadas e Serpentes no chão enquanto Varya lia um livro no seu beliche superior. Zoya, a gata branca e preta, estava deitada em cima do radiador, num quadradinho de sol.

Daniel expôs-lhes o seu plano.
– Não compreendo – disse Varya, e apoiou um pé sujo no tecto.
– O que faz ao certo essa mulher?
– Já disse. – Daniel estava hiperexcitado, impaciente. – Tem poderes.
– Como o quê, por exemplo? – perguntou Klara, a mover a sua peça no tabuleiro. Tinha passado a primeira parte do Verão a ensinar a si mesma truques de prestidigitação de Houdini usando um baralho de cartas e um elástico, com moderado êxito.
– O que ouvi dizer – disse Daniel – é que ela sabe ler a sorte. O que vai acontecer no futuro… se vamos ter uma vida boa ou uma má. E há mais uma coisa. – Apoiou as mãos nas ombreiras da porta e inclinou-se para dentro. – É capaz de dizer quando uma pessoa vai morrer.

Klara ergueu a cabeça.
– Isso é ridículo – disse Varya. – Ninguém é capaz de prever uma coisa dessas.
– Mas se fosse? – perguntou Daniel.
– Se fosse, não queria saber.
– Por que não?
– Porque. – Varya pousou o livro e sentou-se, as pernas a penderem da beira do beliche. – E se forem más notícias? E se ela te disser que vais morrer antes de chegares a adulto?
– Eu gostaria de saber – respondeu Daniel. – Para poder fazer tudo antes.
Houve um compasso de silêncio. Então Simon começou a rir, o seu corpo de ave a estremecer. A cor do rosto de Daniel tornou-se mais carregada.
– Estou a falar a sério – disse. – Eu vou. Não aguento nem mais um dia neste apartamento. Recuso-me. Quem raios vai comigo?
Talvez nada tivesse acontecido se não estivessem no pino do Verão, com um mês e meio de húmido tédio pelas costas e mais mês e meio do mesmo pela frente. O apartamento não tinha ar condicionado, e neste ano – o Verão de 1969 – parece que alguma coisa está a acontecer a toda a gente menos a eles. As pessoas drogam-se em Woodstock e cantam Pinball Wizard e vêem O Cowboy da Meia-Noite, que nenhum dos Gold
mais novos está autorizado a ver. Amotinam-se em frente da Stonewall,
arrombam as portas com parquímetros arrancados do passeio, partem
montras e máquinas de discos. São assassinadas da maneira mais sangrenta possível, com explosivos químicos e armas capazes de disparar quinhentas balas seguidas, os seus rostos mostrados com horripilante imediatismo na televisão da cozinha dos Gold. «Andam a passear na puta da Lua», diz Daniel, que começou a usar este género de linguagem, mas só quando está a uma distância segura da mãe. James Earl Ray
é condenado, e Sirhan Sirhan também, e enquanto tudo isto acontece os Gold jogam às cartas, ou aos dardos, ou resgatam Zoya de um cano aberto atrás do forno, que ela parece considerar a sua verdadeira casa.

Mas alguma coisa mais criou a atmosfera exigida para esta peregrinação: são irmãos, este Verão, de uma maneira que nunca mais voltarão a ser. No próximo ano, Varya irá para os Catskills com a sua amiga Aviva. Daniel estará imerso nos rituais privados dos rapazes do bairro, deixando Klara e Simon sozinhos. Mas em 1969 ainda são uma unidade, ligados como se não fosse possível ser de outra maneira.

– Eu vou – disse Klara.
– Eu também – disse Simon.
– Como conseguimos falar com ela? – perguntou Varya, que, com
treze anos, sabia que nada é grátis. – Quanto cobra?
Daniel franziu a testa.
– Vou descobrir.

***

Foi então assim que começou: um segredo, um desafio, uma escada de incêndio que usaram para fugir à atravancadora presença da mãe, a exigir-lhes que pendurassem a roupa lavada ou tirassem o raio do gato do tubo sempre que os apanhava a mandriar no quarto dos beliches. Os Gold perguntaram, investigaram. O dono de uma loja de magia em Chinatown tinha ouvido falar da mulher de Hester Street. Era uma nómada, disse a Klara, viajava pelo país a fazer o seu trabalho. Antes de Klara sair, o dono da loja ergueu um dedo, desapareceu na coxia do fundo e regressou com um grande livro quadrado chamado O Livro da Adivinhação. A capa mostrava doze olhos abertos rodeados de símbolos. Klara pagou sessenta e cinco cêntimos e voltou a casa com ele debaixo do braço.

Alguns dos outros residentes do número 72 de Clinton Street sabiam da mulher. A senhora Blumenstein tinha-a conhecido nos anos de 1950 numa festa fabulosa, disse a Simon. Deixou o seu schnauzer sair para o degrau do portal, onde Simon estava sentado e onde o cão de imediato produziu um cagalhoto do tamanho de um berlinde que a senhor Blumenstein não limpou.

– Leu-me a palma da mão. Disse-me que ia ter uma vida muito longa – disse a senhora Blumenstein, a inclinar-se para a frente para dar mais ênfase. Simon reteve a respiração: o hálito da senhora Blumenstein cheirava a velho, como se estivesse a exalar o mesmo ar com noventa e nove anos que inalara quando era bebé.

– E sabes uma coisa, meu querido, acertou.

A família hindu do sexto andar chamou à mulher uma rishika, uma vidente. Varya embrulhou um pedaço do kugel de Gertie em papel de alumínio e levou-o a Ruby Singh, sua colega de aula na PS 42, em troca de um prato de galinha picante com manteiga. Comeram na escada de incêndio enquanto o Sol se punha, as pernas nuas a balouçar debaixo das grades.

Ruby sabia tudo a respeito da mulher.
– Há dois anos – disse –, eu tinha onze e a minha avó adoeceu. O primeiro médico disse que era do coração. Disse que ela não durava mais de três meses. Mas o segundo médico disse que era suficientemente forte para recuperar. Achava que ia viver mais dois anos.

Lá em baixo, um táxi passou com os pneus a guinchar na Rivington. Ruby voltou a cabeça para olhar, de olhos semicerrados, para o East River, verde-acastanhado de lodo e das descargas dos esgotos.

– Um hindu morre em casa – disse. – Rodeado pela família. Até os parentes do papá na Índia queriam vir, mas que podíamos nós dizer-lhes? Fiquem cá dois anos? Então o papá ouviu falar da rishika. Foi falar com ela, e ela deu-lhe uma data… o dia em que a Dadi ia
morrer. Pusemos a cama da Dadi no quarto da frente, com a cara voltada para leste. Acendemos uma lâmpada e fizemos vigília: a rezar, a cantar hinos. Os irmãos do papá vieram de avião, de Chandigarh. Eu sentei-me no chão com os meus primos. Éramos vinte, talvez mais. Quando a Dadi morreu a 16 de Março, tal como a rishika tinha dito,
chorámos de alívio.

– Não ficaram zangados?
– Por que havíamos de ficar zangados?
– Por essa mulher não ter salvado a tua avó – disse Varya. – Por não a ter curado.
– A rishika deu-nos a oportunidade de dizer adeus. Nunca conseguiremos pagar-lhe o que fez. – Ruby comeu o último pedaço de kugel e dobrou o papel de alumínio ao meio. – De todos os modos, ela não podia curar a Dadi. A rishika sabe coisas, mas não pode impedi-las. Não é Deus.
– Onde está agora? – perguntou Varya. – O Daniel ouviu dizer que mora num prédio em Hester Street, mas não sabe o número.
– Também não sei. Fica sempre num lugar diferente. Por segurança.

Do interior do apartamento dos Singh chegou-lhes o barulho de qualquer coisa a cair no chão e o som de alguém a gritar em hindi. Ruby pôs-se de pé e sacudiu as migalhas da saia.

– Porquê por segurança? – perguntou Varya, levantando-se também.
– Há sempre alguém atrás de uma mulher assim – disse Ruby.
– Quem sabe o que ela sabe?
– Rubina! – chamou a mãe de Ruby.
– Tenho de ir.
Ruby saltou pela janela que fechou depois de entrar e Varya teve de descer a escada de incêndio até ao quarto andar.

Varya estava espantada com a maneira como a notícia da existência da mulher se tinha espalhado tanto, mas nem toda a gente ouvira falar dela. Quando mencionou a vidente aos homens que trabalhavam ao balcão na Katz’s, com números tatuados nos braços, eles olharam para ela com medo.

– Miúdos – disse um deles. – Por que querem envolver-se numa coisa dessas?

A voz foi dura, como se Varya o tivesse insultado pessoalmente. Varya saiu com a sua sanduíche, confusa, mas não voltou a trazer o assunto à baila.

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