“Prefiro um sistema que permita denunciar casos de assédio agora e não apenas 30 anos depois, como no #MeToo”

abrir 2
Vera Jourovà, comissária Europeia da Justiça, Consumidores e Igualdade de Género da União Europeia [Fotografia: European Comission]

Política e advogada checa, a comissária europeia para a Igualdade de Género, 54 anos, tem travado as batalhas da desigualdade entre homens e mulheres e, em outubro de 2017, ergueu a voz para dizer que também ela tinha sido vítima de violência sexual. Vera Jourovà deixou um testemunho raro numa Europa estranhamente silenciosa e que não acompanhou a vigorosa onda norte-americana de denúncias no âmbito do #MeToo.

À margem da Web Summit, cimeira onde a responsável marcou presença para falar da tecnologia e democracia, Jourovà falou da violência contra as mulheres, da desigualdade salarial, do que atrasa e que agarra o título de ‘elo mais fraco’ ao sexo feminino e até do que a levou a revelar que tinha sido vítima de agressão sexual. Ao Delas.pt revela o que gostava de por em marcha para pôr fim à desigualdade e dos prazos. É que em 2019 há novas eleições.

Em mãos, Jourovà tem também as pastas da Justiça e do Comércio. A comissária, que ocupa o cargo desde 2014, tem lidado de muito perto com a proteção de dados, cuja regulamentação entrou em vigor a 25 de maio, e com questões tão polémicas como as que envolvem o Facebook. Por isso, esta conversa não esqueceu esses temas, nem as negociações com os Estados Unidos da América em tempo de eleições, tecnologia e democracia e o perigo das fake news.

A comissária revelou ter sido vítima de violência sexual no passado, no âmbito da campanha #MeToo, e pediu a outras mulheres que fizessem o mesmo. Mas não houve eco na Europa como em outros territórios. Como explica?

Preferia falar de violência contra as mulheres do que de #MeToo.

Porquê?

Claro que a campanha do #MeToo abriu os olhos a muita gente, e olho para ela mais como atraindo a questão para o abuso de poder no local de trabalho. Pode ser numa posição de domínio e não apenas sobre mulheres, pode ser sobre os homens, sobre os elos mais fracos. Essa campanha teve um impacto positivo para atrair a atenção para esta questão de abuso e está a mexer com as instituições e a tomar medidas.

Como por exemplo?

Por exemplo, há agora algum movimento no Parlamento Europeu, com mais casos de denúncia de assédio nos locais de trabalho. A instituição decidiu definir regras estritas que facilitam que as vítimas denunciem mais facilmente o que lhes está a acontecer. E é muito importante que se fale desta matéria, para levar as vítimas a denunciar imediatamente e a procurarem a melhor solução. Creio que há uma maioria de casos que ainda não foram revelados e que há vítimas que vivem em situações muito desconfortáveis, muitas vezes têm de deixar os seus trabalhos.

E o que pretende?

Prefiro criar um sistema que permita denunciar casos de assédio agora e não apenas 30 anos depois, o que foi o caso do #MeToo também.

E no seu caso, por que o fez?

O meu caso teve lugar dois anos antes do #MeToo, quando admiti que tinha sido também, no passado, objeto de um tipo de violência. Fi-lo porque sentia que, se temos estatísticas bastante chocantes de que uma em três mulheres depois dos 15 anos experienciam um qualquer tipo de violência, eu – que estava sentada no Parlamento Europeu, e com tantas mulheres à minha volta e a discutir essa matéria como se estivesse a acontecer noutro sítio qualquer, talvez noutro planeta – senti a necessidade de dizer: “sim, eu também vivi isso”.

E as mulheres que estavam à sua volta tiveram a mesma necessidade?

Para a maioria delas é muito difícil lidar com isto porque as mulheres que são vítimas disto geralmente culpam-se, têm vergonha, não procuram ajuda. Muitas mulheres sofrem porque não têm outra opção, não têm como viver, assim como têm as preocupações com os filhos. Visitei muitas casas de abrigo na Europa, conheci mulheres e crianças que escaparam ao agressor ou ao seu parceiro e há histórias muito tristes. Acredito que há uma forte obrigação da sociedade em ter, como prática oficial, canais de confiança que lhes permita denunciar e pedir ajuda em caso de violência como a violação. Vemos que ainda não há suficientes casos denunciados.

Assédio: uma em cada duas europeias já passou por isto!

A estimativa é que apenas 20% tenham sido relatados. E porquê? Porque as vítimas temem que, indo à polícia, lhes seja dito que mereciam porque podem dizer, por exemplo, ‘olha como está vestida’. Mas acho que isto está a melhorar, e gostaria de encorajar as vítimas a denunciarem. Temos uma legislação na Europa em que as autoridades, a polícia está a tomar cuidados especiais no sentido de fornecer o melhor tratamento destes casos, tenham uma atenção muito forte para a situação delicada em que as vítimas se encontram. Espero que esteja a melhorar gradualmente, e eu quero muito encorajar as vítimas.

Em concreto, que duas ou três medidas gostaria de tomar, como comissária com esta pasta, para mudar esta realidade e que fizessem a diferença?

Acredito que a violência contra as mulheres – e porque são o elo mais fraco – está ligada à questão da dependência económica de que já falamos. Por isso, temos algumas medidas que devem permitir às mulheres, que são mães, segurar as suas profissões, não interromperem as suas carreiras e não perder as suas posições. Estamos no Web Summit, este é o setor típico no qual as mulheres têm de sair para cuidar dos filhos por vários meses e depois não podem voltar porque o comboio já partiu. Por isso, queremos aumentar a taxa de emprego, neste momento estamos a 66% – os homens têm 76% – por isso há uma disparidade no desemprego. Temos de fazer baixar definitivamente a desigualdade salarial, cuja média não está a melhorar. Temos de criar melhores condições para as mães que trabalham e que lhes permita conciliar trabalho e responsabilidades familiares. Temos de continuar a fazer campanha contra a violência, criar consciencialização junto das mulheres no sentido de deixar claro que a violência não é normal, é intolerável e inaceitável. Claro que temos leis nos estados-membros, mas ela tem de ser aplicada. Temos de encorajar as vítimas a denunciar, a procurar ajuda e a exigir a punição para os perpetradores. São blocos nos quais estamos focados.

E que prazos para por tudo isto a funcionar? Dez, 20 anos…

Tem mesmo de ser antes.

Antes, quando?

Se todas as medidas, incluindo as que recomendamos aos estados-membros relativos a impostos e a sistema de segurança social funcionarem, todos juntos vão funcionar. E também se a auto-estima das mulheres aumentar.

No âmbito do Web Summit, falou da tecnologia e dos desafios para a democracia. O que devemos fazer para que esta não esteja em perigo?

Tem havido inúmeros debates e a minha resposta, tal como encaro esta realidade hoje, é a de que o desenvolvimento digital pode por em risco porque a democracia é diálogo, comunicação face a face, entre pessoas que se conhecem. E o que vemos agora é que estão a ser usadas como objetos, ou podem ser objeto de manipulação, de criação de micro-alvos, podem estar numa situação em que, quando existem mensagens com conteúdo político, as pessoas podem não estar conscientes disso mesmo. Não sabem quem manda a mensagem, quem paga, quem está por trás da campanha. Há muitas questões que as pessoas devem ter, e não estão a ter, respostas, estão expostas a esta pressão, antes das eleições.

O problema das fake news.

Também. Mas também o abuso de dados privados. Imagine o que está no Facebook ou noutra rede social, o traço que se deixa lá. É informação sobre cada um de nós próprios, sobre identidade, o que se gosta e não gosta. É como se alguém tocasse à porta, entrasse, se sentasse na nossa sala e perguntasse qual o tamanho das calças que usamos, quais as nossas crenças e outros aspetos. Se alguém fizesse isto, chamávamos a polícia. Imagine que todos os dias alguém lhe faz estas perguntas às quais responde voluntariamente. No fim da história, alguém chega, recolhe informação e cria uma mensagem para si.

Estes são os direitos e deveres da nova lei da proteção de dados

Estamos numa cimeira [a Web Summit] em que a maioria das empresas trabalha com dados. Como conciliar, como garantir a segurança?

Temos de ter cuidado a quem damos os nossos dados porque a informação privada é parte da identidade.

E só cabe aos consumidores protegerem-se?

No início, as pessoas deveriam olhar pela sua segurança. Nesta era, em que há uma enorme solicitação em ter mais pessoas e melhor informadas, creio que lhes cabe essa responsabilidade, numa primeira instância. As pessoas dão ainda muita formação sobre si próprias, não estão ainda totalmente conscientes de que tal pode ser usado para algo que pode ir contra os seus interesses. É por isso que temos agora regras apertadas na União Europa para proteger os dados e a privacidade das pessoas. Estou contente por estar num evento como a Web Summit onde posso alertar um pouco as pessoas para terem mais cuidado e para os seus direitos.

Mas só os utilizadores é que têm de ter cuidados? E as empresas?

Ambos. A minha mensagem para as empresas – e não apenas para as que participam nesta cimeira – é a de que devem cumprir as regras, e a principal é que eles devem tratar tudo de uma forma individual e não fazer pelo lado de abarcar pela multidão, como era antes. Claro que é mais fácil esta segunda possibilidade.

E como está a questão do Facebook. A comissária disse recentemente que a situação estava a demorar tempo a ficar concluída, bem como o cumprimento das medidas tomadas. O que está a acontecer?

Agora, temos as regras e a aplicação das mesmas e ainda possíveis sanções nas mãos das autoridades nacionais das proteções de dados. Eles estão a fazer o trabalho, estão a avisar as empresas como cumprir e como entendem as novas regras, mas ao mesmo tempo já estão a trabalhar em alguns grandes casos de possíveis violações de dados.

Vera Jourova
Vera Jourova [Fotografia: European Comission]

Por parte de quem?

Não vou nomear casos, até porque não disponho de todos os dados concretos, mas sei que as autoridades nacionais de proteção de dados dos estados-membros já têm, sobre as suas mesas, muitos casos baseados nas suas próprias descobertas, mas também baseados em queixas. Receberam mais de 45 mil desde 25 de maio até hoje [6 de novembro], quando começou a ser aplicada a regulamentação europeia para a proteção de dados, apresentadas pelas pessoas e subordinadas a muitos e a diferentes temas e empresas. E até entidades públicas.

No caso do Facebook, a comissária definiu mesmo um prazo: dezembro deste ano. Que é já no próximo mês…

Não sei como está a situação, apenas posso dizer que as autoridades nacionais estão a fazer o trabalho deles: a verificar se as empresas estão a cumprir. Tenho a certeza que estão a olhar para as maiores devido ao maior volume de dados que se processam e para o maior o risco que existe de violação. Vamos ver os resultados depois de dezembro. E essa não é a data mágica em que tudo acontece, o que quero dizer é que a minha estimativa é que, no final de 2018, possamos ter os primeiros casos de violação estudados e sanções de acordo com as novas regras. Devem também funcionar como impedimento as companhias que processam os dados das pessoas e fazem dinheiro com eles. E ter também pessoas mais cuidadosas que reclamem pelo cumprimento das regras definidas.

Depois do escândalo do Facebook e tendo em conta o número de queixas, as empresas estão mais atentas ou as más práticas continuam?

Nas conversas que tenho com os responsáveis das grandes companhias e as pequenas, sempre que falo com eles, tentam convencer-me que fizeram tudo de acordo com a lei.

Não diriam o contrário.

Posso acreditar ou não. Mas é, uma vez mais, um trabalho para quem faz aplicar as leis. Quero acreditar que a maioria das empresas querem estar em linha com estas regras. Ouço que eles estão a levar toda esta questão de forma muito séria, não só pelas sanções, mas porque as empresas – que dependem da confiança das pessoas e de que os dados delas estão seguros – querem garantir isso mesmo. E isso é uma vantagem competitiva. Há vários fatores e claro que as sanções são uma componente muito séria, mas também é verdade que cada vez mais este negócio digital está dependente da confiança dos consumidores. No início, muitas empresas disseram-me que consideraram que a lei era um exercício de consumo de dinheiro, falavam sobretudo em custos. Agora, cada vez mais ouço falar em investimento. É importante que eles retenham ou reconquistem a confiança, o que se aplica a inovações tecnológicas, e que também vemos nas companhias. Um dos requisitos da lei é que as tecnologias devem ser “amigas da privacidade”, um imperativo muito forte nos dias de hoje. E eu estou ansiosa por ouvir falar de inovações que prestam atenção à privacidade.

A questão proteção de dados tem sido intensa entre Europa e os Estados Unidos da América tem estado na ordem do dia. O que se pode esperar de um novo enquadramento político com estas eleições intercalares [a entrevista foi realizada no mesmo dia, 6 de novembro]?

Não sei os resultados e o desenvolvimentos dos EUA é muito importante do ponto de vista da proteção de dados. Estamos a disponibilizar uma transferência de grande volume de dados a cada dia, a cada minuto. Isto também depende da confiança. Se a Europa não confia que a proteção de dados nos EUA seja garantida do lado deles do Atlântico, não poderemos permitir essas transferências. Está a ir, o sistema que está ser criado, chamado escudo de privacidade, garante a proteção de dados privados do lado americano, que depende muito da vontade política e da atmosfera do país. Claro que estamos a aguardar os resultados da eleição. Não posso prever (sorriso).

Fotografia: European Comission

Proteção de dados: a internet vai ficar mais segura?