Primeira-ministra regressa de licença de maternidade e não se fala de outra coisa

jacinda ardern
Fotografia: REUTERS/Ross Land

‘6 de agosto de 2018, século XXI, Jacinda Ardern, 38 anos, primeira-ministra da Nova Zelândia, regressa ao trabalho depois de seis semanas de licença e é recebida por populares no aeroporto’. A frase poderia ter saído de um recorte de jornal, lido por alguém num futuro longínquo, mas os factos estão corretos e são notícia, em todo o mundo. Ainda é notícia, em pleno século XXI, uma primeira-ministra, ministra, ou uma mulher com cargo político governativo e relevante interromper a sua atividade para gozar um direito igual ao de tantas outras mulheres, e para o qual até talvez tenha contribuído com o seu voto legislativo: a licença de maternidade.

A primeira-ministra neozelandesa no primeiro dia do regresso ao trabalho depois de ser mãe [Fotografia: REUTERS/Charlotte Greenfield]

Este ano é na Nova Zelândia, mas em 2013 foi em Portugal. Assunção Cristas foi notícia por ser a primeira mulher no país a ficar grávida enquanto ocupava o cargo de ministra e voltou a sê-lo, quando reassumiu funções como ministra da Agricultura e do Mar, três meses depois de ter estado afastada por ter sido mãe. Durante esse período, a atual líder do CDS foi substituída pelos secretários de Estado do Ministério, apesar de ter participado ocasionalmente em algumas reuniões de ministros.

Se ser mãe é uma condição natural a milhares de mulheres, porquê então este mediatismo quando se trata do gozo da maternidade por parte das que têm cargos políticos e governativos? Eis algumas respostas possíveis:

1) Raridade: Apesar do direito a gozarem a licença de maternidade, o que é certo é que são raros os casos em que tal tem acontecido. Uma razão que o poderá explicar é a idade das principais ou, pelo menos, mais destacadas, líderes políticas. Se olharmos para as mulheres com cargos políticos mais importantes, como Theresa May ou Angela Merkel, verifica-se que assumiram os cargos com idades entre os 50 e os 60 anos.

2) Não ter filhos para ter uma carreira política: Nem Theresa May, nem Angela Merkel são mães, o que por vezes leva a crer que esse facto se deveu a uma opção pela carreira política e que uma coisa terá de excluir a outra. O escrutínio do ter ou não ter filhos para as mulheres na política levou Nicola Sturgeon, primeira-ministra da Escócia, a falar, em 2016, publicamente, e pela primeira vez, sobre o aborto que sofreu, em 2011. Na altura, em entrevista ao Sunday Times, a governante explicou que não falou sobre o assunto antes porque não queria que essa situação a definisse politicamente, mas que agora se sentia preparada para discuti-la, por não querer que as jovens mulheres a vissem como alguém que sacrificou deliberadamente a maternidade por uma carreira política de sucesso.

3) Justificar publicamente a decisão de ser ou não ser mãe: Ao contrário dos líderes partidários masculinos, a quem não é perguntado ou pedido que justifiquem o facto de terem ou não terem filhos, as mulheres com cargos semelhantes veem-se frequentemente nessa obrigação. Além de Nicola Sturgean, também Theresa May, disse numa entrevista, em 2016, durante a sua campanha para a liderança dos Conservadores britânicos, que ela e o marido tinham sido “afetados com o facto de não terem filhos”. “Às vezes, as coisas que desejamos que tivessem acontecido, não aconteceram, ou há coisas que gostávamos de ser capazes de fazer, mas não somos. Há outros casais em situação semelhante”, afirmou então ao jornal Daily Mail. Apesar de pertencer a uma geração mais nova, a primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern também não se livrou das questões relativas à maternidade e ficou famosa, ainda antes de ser eleita para o cargo, quando se tornou líder do Partido Trabalhista, por recusar responder à pergunta de um jornalista sobre se estava a pensar ter filhos. Em janeiro deste ano, contudo, tomaria a decisão de anunciar publicamente, numa conferência de imprensa, o facto de estar grávida do seu primeiro bebé, uma menina, a que chamaria Neve.

4) Leis e normas contraditórias: Em 2016, um abaixo-assinado, promovido pelos eurodeputados do PCP, voltou a levantar a discussão sobre as licenças de maternidade e as mulheres com cargos políticos, desta vez nas mais altas instituições políticas europeias, como o Parlamento Europeu. O que despoletou a criação do documento foi a impossibilidade de substituição temporária da eurodeputada comunista Inês Zuber depois de ter engravidado, e que a levou a abandonar o mandato. O abaixo-assinado reuniu assinaturas de vários deputados portugueses e de representantes de todas a famílias políticas europeias, da esquerda à direita, relançando o debate sobre as regras do Parlamento Europeu, contrárias à prática nacional na maioria dos Estados-membros da União Europeia. Ao Observador, o Parlamento Europeu respondeu, na altura, que as eurodeputadas têm direito a gozar três meses de licença antes do nascimento das crianças e seis meses depois, mas o único regime possível é a justificação de faltas com um certificado médico.

5) Conciliação: A tudo isto está subjacente o papel tradicional da mulher na esfera doméstica, ainda muito presente nas sociedades, e a sua capacidade de conciliação da gestão política e tarefas de governação com a vida familiar. Agora que Jacinda Ardern voltou a ocupar o cargo de primeira-ministra da Nova Zelândia será o seu companheiro, e pai da bebé, que irá cuidar da criança. Clarke Gayford tirou licença a tempo inteiro para tratar da filha do casal, Neve.

“É lamentável que tantas mulheres tenham de esconder que são mães”