Processe-me a mim também

Escrevo esta crónica às 21h39 do dia 3 de março. Por esta altura, só este ano, já morreram em Portugal 11 mulheres vítimas de violência doméstica. Um número que não pára de crescer.

Refere o Expresso que das 26.713 queixas apresentadas em 2017 (número assustador e que deixa de fora todos os inúmeros casos em que as vítimas não apresentaram queixa), apenas resultaram 4.465 acusações e 1.457 condenações, sendo que destas só 119 foram de prisão efetiva, ou seja, 0,44%.

É inacreditável e, no mínimo, alarmante. Aliás, já em 2002 a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa alertava: ‘A violência no espaço doméstico é a maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos, ultrapassando o cancro, acidentes de viação e até a guerra’. E é neste contexto que o juiz Neto de Moura atenua repetidamente penas a agressores com argumentos tão cabotinos como considerar uma ‘mulher adúltera’ vítima de violência doméstica ‘dissimulada’, ‘falsa’, ‘hipócrita’ e ‘desleal’, chegando a invocar a bíblia num acórdão de tribunal. Mais recentemente, e mesmo depois de ter tido um advertência por parte do Conselho Superior de Magistratura, o juiz aceitou parcialmente o recurso de um condenado por violência doméstica retirando a pulseira eletrónica ao homem que rebentou o tímpano da mulher ao soco por entender que os juízes da primeira instância que o condenaram não fundamentaram bem a decisão e acrescentando que, ‘Nos últimos tempos (…) a mais banal discussão ou desavença é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido’ (lê-se no acórdão de 31 de Outubro de 2018).

São tão absurdas as declarações de Neto de Moura que, não fosse tratar-se de um assunto desta gravidade, davam para rir – porque parecem, de facto, saídas de um sketch cómico. Na verdade, dão pena. Como é que um homem adulto, lúcido, no exercício das suas funções, em pleno século XXI, consegue proferir tais afirmações? Como é possível que isto aconteça no mundo em que vivemos? E como é possível também que ele continue a exercer as suas funções?

Naturalmente – e felizmente, digo eu – que as atitudes de Neto de Moura causaram inúmeras reações (Ricardo Araújo Pereira, Mariana Mortágua, Bruno Nogueira, Joana Amaral Dias, Fernanda Câncio, entre muitos outros). O Juiz reagiu dizendo que se sente ‘ofendido’ e ‘enxovalhado’ e que vai processar todos os que disseram mal dele. Bom, aqui cito Fernanda Câncio no Twitter: ‘tenho uma ideia para o juiz Neto de Moura: era fazer uma lista de quem não disse mal dele. Tenho a certeza de que há alguém. Pelo menos a família e a associação sindical dos juízes. E processa todo o resto do país. É pedir as listas de eleitores e vai por ali fora’.

Eu tenho ainda outra sugestão só para o fazer refletir um bocadinho e aproximar-se ao tema já que claramente a empatia pelas mulheres não é o seu forte. Já que usou sempre de tão grande altivez moral em relação às mulheres e à sua conduta e foi tão compreensivo para com os agressores e as suas circunstâncias sugiro-lhe agora pessoalizar o assunto (em representação chamamos-lhe o ‘as if’, que não é mais que pôr-nos na pele do outro – da personagem – e das suas circunstâncias para o compreender e interpretar sem julgamento) :

– E se a vítima, a mulher a quem o marido agrediu repetidamente durante anos, a quem ameaçou de morte e que vive neste momento escondida para se proteger do seu ex-companheiro que circula livremente por aí porque o senhor considerou a pena aplicada pela primeira instância excessiva e autorizou que lhe retirassem a pulseira eletrónica, se essa mulher, se a vítima fosse uma das suas duas filhas? Como era? Seria igualmente compreensivo com o agressor?

– Se uma das suas duas filhas, depois de ter sido repetidamente agredida e ameaçada de morte estivesse neste momento escondida e impedida de fazer a sua vida livremente por temer um agressor a quem um juiz como o senhor atenuou a pena, como é que se sentiria?

– Como é que acha que a sua filha se iria sentir?

  • Se forem as suas filhas as vítimas no seu próximo processo, será que vai ser tão duro no julgamento moral com elas e tão compreensivo com os agressores?

  • Porque podem ser as suas filhas as próximas. Ou eu. Ou a sua mãe. Ou a sua vizinha. Ou a minha. Pode acontecer a qualquer uma de nós. E a justiça tem a obrigação de nos proteger.

De acordo com as Nações Unidas uma em cada três mulheres vai experienciar um episódio de violência física ou sexual durante a sua vida. É a dura realidade. E não me parece que vá melhorar enquanto se continuar a tecer julgamentos moralistas sobre as vítimas e a desculpar os agressores.

Faça as contas e ponha a mão na consciência. E a seguir processe-nos a todos e a todas.

(Na sequência de todos os acontecimentos deste ano, o Presidente da República promulgou Dia de Luto Nacional pelas vítimas de violência doméstica no dia 7 de Março. E dia 8 de Março celebra-se o Dia da Mulher. No meio de todo o barulho é importante que se salvaguarde o principal: esta mulher, a sua segurança e a sua integridade física e moral. Esta mulher que, não só foi vítima de inúmeras agressões e humilhações por parte do companheiro, como se viu obrigada a esconder para se proteger dele num país que a fragiliza mais do que a defende. Esta mulher que, como tantas e tantas outras ao longo de séculos, não está no centro da história).

Ordem dos Advogados do Porto preocupada com solução encontrada para Neto de Moura