17Nem que seja só pelo canudo do filho pendurado na parede já valeu a pena. Pagar a casa, as contas e os estudos do filho com uma reforma de 180 euros nunca teria sido possível se não trabalhasse numa casa de alterne. Cem euros é o que ganha numa noite só a fazer conversa e a beber com os clientes.
Um casamento é pior do que escravidão. Não se pode fazer nada. E, mesmo não fazendo nada, apanha-se porrada por nada fazer. “Ou porque a blusa é muito decotada, ou porque o jantar é uma porcaria, ou porque só uma galdéria demora mais do que devia a chegar a casa depois do trabalho. Às vezes é o som da televisão que está alto ou foi ele que acordou bêbado na mesa da cozinha e calhou ela estar a passar por ali naquele momento.”
Teve mesmo azar com o marido. Homem da pior espécie. Daqueles que só acontecem uma vez na vida. Nunca mais. “Levei a vacina. Estou sozinha há 22 anos, sou livre e faço o que quero.” Essa é a melhor parte. Por mais que tudo o resto seja complicado, compensa, de longe. Mesmo que tenha de fazer tudo sem ajuda de ninguém, trabalhar três ou quatro vezes mais para pagar a casa, as contas e os estudos do filho. Sim, porque o filho não é como ela. Ele foi até ao fim, inclusive ao estrangeiro, tirou o curso e voltou com um canudo para a mãe emoldurar e pendurar na parede.
Júlia não estudou muito, nunca conseguiu um trabalho que durasse ou pagasse o suficiente: “Já fiz um pouco de tudo.” Vendeu produtos de beleza, costurou bainhas e botões em duas fábricas de confeção, atravessou todas as manhãs o rio para limpar escritórios, consultórios, casas particulares, o que aparecesse. Tudo espremido, não deu em nada. Uma reforma de 180 euros é o que sobra. Este valor não chega, nem sequer ao que faz a alternar duas vezes por semana nas bôites. “As casas particulares é que dão dinheiro,” disse-lhe a colega. Tanto que ela nem precisa mais de cansar as pernas todo o dia à procura biscates para completar o rendimento. Não faltam em Lisboa lugares como esses. Chamam-lhe casas de massagens, mas toda a gente sabe que é isso e muito mais. Por cada cliente, 30 euros, 20 para ela, 10 para a dona.
Parece um bom negócio quando ao final da noite entram seis, sete e oito clientes para cada uma delas. Nem sempre ou nem para todas. Atrasos não são tolerados. Dez minutos, que sejam, e leva-se logo com uma valente talhada. Os 20 euros encolhem de imediato para 10 no resto da semana. Nunca se atrasou nem sequer lhe tiraram partes do salário para aprender a lição. Mas não é maneira de tratar ninguém. Assim que surgiu uma oportunidade, foi à procura de outras casas, quem sabe não lhe aparecia um proprietário mais justo.
Júlia pode ficar até de madrugada a rodar entre os sofás e o balcão. Conversa e bebidas rendem no mínimo 100 euros por noite. Dependendo da sorte, chega aos 1000 e até mais, não seria a primeira vez. Se, e quando lhe apetecer, sobe ao quarto e deixa as coisas acontecerem como ela quer. Com os homens é ela que dita as regras. O que faz, o que não faz e o que nem vale a pena pedir: “Não gosto, por exemplo, destas maluqueiras de sadomasoquismo.” Os clientes aceitam tudo. Sempre. Fazem tudo o que ela quer. Todos.
Ficou ali um ano, mais coisa, menos coisa, experimentou outros sítios até achar, em 2012, o patrão que procurava, numa casa de alterne algures a 60/70 quilómetros de Lisboa. E agora ninguém a tira de lá: “Enquanto tiver um palmo de cara vou ficar aqui.” Mas nem desse palmo precisa para continuar. Muita gente julga que “ser bonita, jovem e bem vestida” é tudo para se safar em lugares como estes. Nada disso. Ela e muitas outras são a prova do contrário, assegura.
Não é que Júlia não tenha os seus próprios dotes físicos a se esgueirarem desinibidos pelo decote. Mas a idade está lá, debaixo do verniz das unhas, do falso louro e da maquilhagem, está lá. São bem mais do que 50, embora não pareça mesmo nada e ela não diga quantos são ao certo. O embrulho faz diferença, seria muita estupidez dizer que não, mas mais importante são os conteúdos que se afinam com o tempo. Saber ouvir e deixá-los falar. Sempre com copos ou garrafas inteiras à mistura, champanhe, uísque, gin, cocktails, nicotina e dançarinas no varão a compor a paisagem. Por cada bebida fatura metade, a outra metade fica para a casa.
E por cada desabafo deles, a certeza de que fica tudo muito bem guardado: “Nem as mulheres sonham o que eles escondem.” Dívidas na empresa que se agigantam, queixumes das legítimas, caprichos das amantes, traições de supostos amigos, negócios bem ou mal afortunados. Contam tudo, até à última gota, sabendo que os pecados contados no confessionário são invioláveis.
Júlia pode ficar até de madrugada a rodar entre os sofás e o balcão. Conversa e bebidas rendem no mínimo 100 euros por noite. Dependendo da sorte, chega aos 1000 e até mais, não seria a primeira vez. Se, e quando lhe apetecer, sobe ao quarto e deixa as coisas acontecerem como ela quer. Com os homens é ela que dita as regras. O que faz, o que não faz e o que nem vale a pena pedir: “Não gosto, por exemplo, destas maluqueiras de sadomasoquismo.” Os clientes aceitam tudo. Sempre. Fazem tudo o que ela quer. Todos. “O homem é a cabeça mais fácil que existe, basta engraçarem connosco e fazemos o que queremos deles.” Não é desprezo pelo sexo oposto, explica Júlia. São assim e pronto. Mas são também “respeitadores”, alguns mais carentes do que cachorrinhos à procura do dono e carinhosos como se, além de dinheiro, quisessem acrescentar doses generosas de lamechices ao acordo.
Porta fora, voltam à vida deles, casa, trabalho, família e amigos. São estranhos, daqueles que ela finge não ver quando se cruza na rua ou no centro comercial, com a mulher ao lado e a empurrar o carrinho do bebé. Outras vezes estão sozinhos e são eles que querem conversa. Pouca sorte. Porta fora, não há hipótese. Júlia também tem segredos.
Se algo lhe mete medo é alguém que a conhece lá fora dar de caras com o que ela faz ali dentro. Já lhe aconteceu com o motorista do autocarro que a leva nas folgas para a casa, na margem sul do Tejo. Esborrachou o cigarro à pressa no cinzeiro e enfiou-se na casa de banho. As outras puseram-se à vigia para avisá-la quando seria seguro regressar. E já sucedeu o mesmo com muitas outras. Correm todas para a casa de banho, copa ou lavandaria, o refúgio que estiver mais mão.
Lá fora, ninguém sabe, o filho, esse, nem desconfia como é que ela conseguiu pagar-lhe o curso, as viagens e as estadias no estrangeiro. Está convencido de que foi uma herança de família, como se, alguma vez, alguma coisa tenha caído do céu para a mãe. Mas é assim mesmo que vai continuar a pensar. E nem julgue que um dia a vai compensar por tudo o que fez. Pode até ter-se dado muito bem na vida, porque deu, garante. Ela tem o suficiente para não ter de lhe pedir um cêntimo. Não é por orgulho, diz ela. A independência custou-lhe bem caro e não vai deitar a perder por nada ou por ninguém.
Kátia Catulo