Quando a mulher é o bad guy

Woman in red coat
[Fotografia: Instagram]

Um dos fenómenos da música pop dos últimos tempos pertence a uma rapariga com apenas dezassete anos — a Billie Eilish. O êxito da sua música Bad Guy concentra-se, sobretudo, na letra e na atitude inovadora da jovem artista. Eilish diz publicamente tratar-se de uma canção autobiográfica e assume-se como “o mau da fita”. A questão do género trocado pode parecer uma brincadeira, e é, mas não só.

Durante séculos, o papel de “mau da fita” apenas serviu ao género masculino, supostamente mais apto a mentir, a enganar, a desiludir, e a pôr em prática outros verbos menos nobres. Na realidade, era uma questão de oportunidade, e um mito. Os homens simplesmente podiam fazê-lo sem penalização social, era considerado próprio “da sua natureza”.

Contudo, como se sabe através da História, isto não passa de um mito. Houve uma quantidade enorme de “más da fita”, tanto em cargos de poder (os poucos a que conseguiram chegar, como é o exemplo de Cleópatra), como em narrativas mais domésticas (mulheres que manipularam e fizeram uso do poder através dos maridos e familiares).

Parece que o que Billie Eilish faz com o seu tema musical é congregar milhões de adolescentes, e não só, numa espécie de hino feminista e libertador, onde se sente um uníssono “nós, as miúdas, somos o mau da fita”, seguido de um “dah?”, ao estilo de “ainda não perceberam, pacóvios?”. É claro que tudo isto está embrulhado num invólucro bastante apelativo esteticamente, embora bizarro (o tipo de bizarria estética que os mais velhos talvez não entendam ainda), típico da cultura pop.

Quando a mulher é o bad guy no trabalho

Se pensarmos quem possui o poder para ser o “mau da fita” num local trabalho (sim, porque para se ser mau é preciso ter autoridade, ou há uma demissão iminente), a resposta é consensual — o chefe, claro. A questão é: e quando a mulher é a chefe? Expressões como “as mulheres são mais sensatas, sensíveis e generosas em cargos de chefia” continuam a rotular de forma prejudicial, embora soem a elogios, o género feminino. Que se saiba, não há adjetivos mais aplicáveis consoante o género, seja em contexto profissional ou pessoal. Por isso, há chefes mulheres que não receiam ser comparadas ao modelo masculino, aquele que serve de padrão, porque, e esta é a única razão, os cargos de chefia não existiam para as mulheres. Basta pensar na palavra “Presidenta”, até há bem pouco tempo inexistente no dicionário por não existir o cargo. Ser “o mau da fita” no trabalho é intimidar, é ser implacável? Então, sim, já há muitas mulheres como “o mau da fita” no contexto profissional; não receiam o julgamento nem serem equiparadas ao modelo masculino. Simplesmente assumem o comando.

Quando a mulher é o bad guy nas relações amorosas

Não tem de trair, enganar ou fugir com um tipo, manequim, de vinte anos. A mulher bad guy numa relação pode simplesmente fazer o que lhe apetece. Ou seja, quando estiver farta daquela relação partirá para outra, não se sujeitará a viver conformada com uma realidade que não lhe convém. A mulher bad guy também não tem horas para voltar para casa quando sai para uma noitada com amigos e amigas e, por várias vezes, janta sozinha e faz programas noturnos completos apenas na sua companhia. Gosta mais de si do que de qualquer companheiro que venha a conhecer. Basicamente, não põe ninguém à frente de si própria. Hedonista, sem ser desgovernada, gosta de se divertir e de fazer coisas que lhe dão prazer, sem qualquer espécie de culpa. Afinal de contas, não está a fazer mal a ninguém.

Quando a mulher é o bad guy na família

Há quem a considere uma mãe desnaturada (porque passa muito tempo a cumprir objetivos profissionais, por exemplo) ou uma desilusão de filha (porque se recusa simplesmente a dar netos aos pais). Os motivos são vários, mas prendem-se todos com a mesma questão — a bad guy da família faz o que lhe dá na telha, mesmo que isso não seja o expectável para as pessoas do seu género. Também pode viver sozinha, com muito ou pouco dinheiro, ou viver às custas de um homem milionário, pôr o dinheiro à frente do amor e não se sentir mal com essa opção. É uma escolha. Tem o poder de escolher, é livre. Mesmo que essa escolha de par desagrade ou seja incompreensível aos olhos da família e de quem a educou consoante determinados parâmetros.

Ser uma mulher bad guy, seja em que contexto for, requer coragem porque significa estar-se perante a evidência de um novo modelo feminino. Um paradigma com poder, independente. E, como se sabe, o que é novo assusta sempre. Das duas uma — ou dá azo a críticas descabidas ou tenta-se ignorar o impacto. Contudo, já não é possível fazer a segunda destas duas coisas. Há milhões de adolescentes a gritar que são “o mau da fita”, rapazes e raparigas. O empoderamento feminino parece algo irreversível, não há maneira de minimizar o impacto.