Quem diz que as tragédias não fazem rir nunca viu ‘William Shakespeare em 97 Minutos’

Em 97 minutos assiste-se a um filme no cinema, lê-se vários capítulos de um livro ou viaja-se até Madrid de avião. Mas em 97 minutos também é possível percorrer todos as 37 peças escritas por Shakespeare. A promessa é a de António Pires, encenador da peça As Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos, que pode ser vista no Auditório dos Oceanos, Casino Lisboa, até 29 de setembro.

Há tragédia, há romance, juras de amor, ciúme e rivalidade, mas não espere uma sessão de teatro histórica e factual. É que o texto original britânico, adaptado para português em 1996, garante gargalhadas, trocadilhos e muita interação com o público. E a nova encenação de António Pires confere-lhe uma boa dose de atualidade, graças a rimas de hip-hop com texto shakespeariano, ao som de Beyoncé e Blaya, e comparações com os dramas que se repetem nas novelas portuguesas ou com “os betos”.

“Vi a primeira versão em Londres há 20 anos e este é um texto que brinca com o Shakespeare com muito respeito, mas que está também ligado aos dias de hoje. Claro que o conhecimento do público português de Shakespeare é necessariamente diferente daquele que tem o público inglês, por isso resolvi acrescentar algum texto para enquadrar certas cenas”, começa por explicar ao Delas.pt António Pires. “Além disso, o humor britânico é muito seco e irónico e em Portugal somos mais de trocadilhos, então fiz aí algumas alterações”, acrescenta.

Com a coreógrafa Sissi Martins, o encenador português montou um espetáculo contado a um ritmo alucinante, com movimentos rápidos, incluindo muitos saltos de e para a plateia, e ainda um inusitado jogo de futebol em palco. “O espetáculo é tão rápido que os movimentos tiveram de ser pensados ao pormenor”, refere Sissi Martins, frisando ainda que a a coreografia se estende ainda aos bastidores, onde os três protagonistas mudam de figurinos e adereços dezenas de vezes para interpretar mais de 70 personagens de 37 histórias.

São eles os atores Ruben Madureira, Pedro Pernas e ainda Telmo Ramalho, que já tinha participado noutra encenação portuguesa da mesma peça. “Esta encenação do Pires é muito, mas muito mais trabalhada. Acho que as pessoas não têm noção disso porque aquilo que veem em palco é uma coisa leve e fácil, mas quem vier ver mais do que uma vez percebe que é tudo marcado e muito trabalhado. É uma encenação mais virtuosa”, afirma Telmo.

O divertido trio conta ainda que o encenador incentivou o curto elenco a mergulhar nas verdadeiras obras de Shakespeare, antes de explorar o texto original da peça. “Só dominando estas obras é que podemos desconstruí-las e fazer as pessoas rir. Não lemos todas, porque já conhecíamos algumas obras de Shakespeare, como Romeu e Julieta e Hamlet, mas poucos de nós conheciam, por exemplo, Tito Andrónico e Lavínia, Otelo ou Lucrécia”, vinca ainda Ruben Madureira.

Para se poderem transformar nas várias personagens de Shakespeare os atores contaram com a ajuda de Marta Pedroso, a responsável pelo guarda-roupa, que criou 71 adereços e 36 figurinos, que são usados nos 97 minutos da peça, todos sem botões e fechos para poderem ser colocados pelos atores em segundos. “Durante um mês a minha casa transformou-se num ateliê de costura, com tecidos por todo o lado”, contou a também diretora de cena do Teatro São Luís. “Só percebi a dimensão de tudo o que criei depois de os ver os objetos expostos nestas mesas”, apontou ainda nos bastidores, onde uma mesa servia de apoio para adereços como baldes de sangue, cotos e até uma tarte de plástico, com uma mão no interior.

Enquanto percorria as suas várias criações antes do espetáculo começar, Marta Pedroso confidenciava ainda ao Delas: “Houve uma peça que achava que não ia conseguir terminar. O Pires disse-me que queria uma cabeça de uma caveira que saltasse. Lá me lembrei de pôr uma bola na caveira e consegui”.

Atrás do palco está também João Veloso, o contra-regra de espetáculo e responsável por ajudar Telmo, Ruben e Pedro Pernas nas trocas de figurinos muito rápidas. Chamam-lhe o “quarto ator” ou “ator-fantasma”, já que João nunca aparece, embora tenha um papel valioso no sucesso da peça. “As trocas mais difíceis acontecem nas últimas cenas, já no Hamlet. Há trocas de três, cinco segundos, por isso é que precisa de estar tudo muito bem esquematizado. Aproveito os momentos ‘mais calmos’ para preparar tudo e depois é ajudá-los a vestir”, vinca.

Por fim, a questão que se impõe: Será mesmo tudo contado em 97 minutos? “Não, às vezes fazemos 95 e aguentamos ali as palmas mais dois minutos para chegar”, diz Ruben Madureira, enquanto Pedro Pernas garante: “Nunca passámos os 97 minutos, creio eu. Em ensaio, sem tempos de público, chegamos a fazer 87 minutos.

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