“Queria ser a primeira mulher em Portugal a fazer 50 km marcha”

ines-henriques

É já no domingo, dia 15 de janeiro às 8:00, que a atleta portuguesa Inês Henriques vai lutar para alcançar um dos seus sonhos: ser a primeira mulher em Portugal a fazer os 50 quilómetros marcha. Depois de conseguir a sua melhor marca de sempre nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a atleta de Rio Maior volta à competição numa prova que, até agora, era exclusiva dos homens.

Em conversa com o Delas.pt, Inês Henriques fala dos mais de 20 anos de carreira, da paixão pelo atletismo, dos muitos obstáculos que quase a fizeram desistir do desporto e do sonho de ser mãe, que ainda está por realizar.

Como começou a praticar atletismo?

Comecei em torneios de freguesias. Em Rio Maior existe um torneio das freguesias em que vamos correndo nas diferentes freguesias da aldeia e depois a marcha surgiu pelo facto de a Susana Feitor na altura ter sido campeã do mundo em 1990. Houve muitos atletas a experimentar a marcha e eu fui uma delas. Comecei logo a obter bons resultados quando era infantil e iniciada. Gostei e fiquei na marcha. Fazemos sempre alguma preparação com provas de corrida, mas gostei mesmo foi da marcha.

Que idade tinha?

Doze anos, foi em 1992.

Sempre conseguiu conjugar os estudos com a prática desportiva?

Não é fácil, muitas vezes tive de abdicar da escola por causa do atletismo, mas para mim sempre foi muito importante conjugar as duas situações porque a carreira de atleta tem um prazo de validade e temos de assegurar o nosso futuro. Hoje em dia é difícil, tendo ou não estudos, mas se estivermos mais preparados temos um futuro um bocadinho melhor do que se não estivermos preparados. O que acontecia, e ainda acontece apesar de com menos frequência porque os atletas preparam a sua saída e futuro, era que os atletas não se preparavam para o pós-carreira e era muito complicado. Eu consegui conciliar a minha licenciatura em enfermagem, hoje em dia já sou enfermeira. Não estou a exercer por opção, mas já sou licenciada.

Pretende vir a exercer?

Agora tirei um curso de massagista, tenho dado algum apoio no Centro de Estágios de Rio Maior. É algo de que gosto, ajudar os outros. A enfermagem é uma possibilidade, mas preferia trabalhar com atletas, estaria no meu mundo.

Os seus pais sempre a incentivaram a praticar atletismo?

Os meus pais são pessoas que sempre deram canas a mim e à minha irmã, nós só tínhamos de ir pescar. Não são pessoas de estar lá sempre, mas cá atrás dão todo o apoio necessário. Sei que sempre que as coisas não correm como eu espero tenho o meu porto de abrigo, que é a minha família.

Consegue viver só do atletismo ou conjuga com outra atividade profissional?

Neste momento ainda consigo viver só do atletismo porque me mantenho na preparação olímpica. Decidi, com o meu treinador, que íamos tentar fazer mais um ciclo olímpico, mas é um ciclo olímpico em que eu já tenho de preparar muito bem a minha saída, ou seja, vou tentar conciliar com alguma atividade, tanto em termos de enfermagem, porque muitas pessoas nem sequer sabem que sou enfermeira, como em termos de massagista. É importante. Hoje somos atletas de alta competição e amanhã não somos. Depois dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro refleti muito se continuava ou não. Optei por continuar porque foi a minha melhor época de sempre e o meu corpo está a responder, mas pensar que um dia tenho de deixar isto é difícil para mim. Ainda não me vejo como não sendo atleta, principalmente porque adoro o que faço, adoro treinar, competir e sinto muita falta disso. O corpo está a responder. Tenho de o mimar, pois com a idade há aspetos no treino que tenho de evitar para prevenir lesões, mas tenho conseguido fazer isso
com o apoio do médico e da fisioterapeuta do Centro de Estágios de Rio Maior. O meu treinador também já me conhece, trabalhamos juntos há quase 25 anos, e quando achamos que temos de aliviar, aliviamos. Recupero bastante bem.

O que guarda da participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro?

A minha época no ano passado foi diferente. Nos anos anteriores as coisas não correram como eu e o meu treinador esperávamos e foi muito frustrante. Depois do mundial de 2015 refleti muito bem se continuava ou não. Não queria continuar e sentir-me frustrada com o que estava a fazer. Estive um mês e meio sem sequer treinar, algo de que gosto muito, mas precisei de descansar a cabeça, o corpo, tudo. Depois voltei, com calma, e fui sentindo o prazer, determinando objetivos que fui conseguindo alcançar. Os meus colegas de treino, que são jovens ainda, foram fundamentais e ajudaram-me muito, tal como o meu treinador e quem me rodeia. Todos foram importantes para que eu continuasse a ter objetivos. O sucesso foi pelo prazer, queria continuar e desfrutar do que estou a fazer. Nos Jogos tentei desfrutar, o melhor possível, de tudo à volta da competição, do convívio com os outros atletas, e foi diferente. Queria o top 10, mas consegui na mesma alcançar o meu melhor resultado e fiquei satisfeita com a minha participação.

Quais foram as maiores dificuldades que sentiu no Rio de Janeiro?

Estava bastante calor e senti algumas dificuldades nesse aspeto, que alguma coisa não estava bem. As coisas acontecem, é igual para todas. Algumas adaptam-se melhor do que outras, mas foi uma prova dura.

A Inês queria também fazer uma pausa para ser mãe. Ainda vai fazer essa pausa?

O ciclo olímpico tem quatro anos e quando um bebé surgir vou fazer a pausa. Não quero estar stressada com a situação porque não é bom estar sempre a pensar. Quando surgir terei de fazer a pausa. Vou treinar o que puder, gerir, e quando tiver de parar, paro para depois retomar.

Não teme que a gravidez possa afetar a sua forma física?

É óbvio que é algo em que penso, mas não posso esperar mais anos. Tenho 36 anos, 25 de alta competição. Uma pausa, ao fim de tantos anos a alto nível é algo que o corpo agradece.

Quais são os seus objetivos para 2017?

Comecei a época sem objetivos definidos. Planeámos tudo como se eu fosse ao mundial, mas se por acaso surgisse a gravidez iria interromper a qualquer momento. Depois surgiu a situação em que foi permitido a introdução das mulheres no campeonato do mundo. Eu já tinha dito que queria ser a primeira mulher em Portugal a fazer 50 quilómetros. O ano passado já tinha feito 30 quilómetros com essa intenção e para demonstrar que as mulheres têm de ter a mesma igualdade que os homens nos campeonatos do mundo e nos Jogos Olímpicos, não podem ser três e os homens serem seis, não é justo. Surgiu esta situação e o meu treinador, como já sabia a minha intenção de um dia fazer 50 quilómetros, fez-me este desafio. Faltava cerca de dois meses, eu tinha feito uma boa preparação de inverno e decidi que avançaríamos. Só divulgámos entre o nosso grupo de trabalho porque queríamos ver como o corpo reagia. Eu estava com um problema no joelho e também precisava de ver como a lesão ia evoluindo, mas correu tudo melhor do que nós estávamos à espera e decidimos divulgar que eu iria fazer os 50 quilómetros e tentar que fique recorde do mundo.

Quais são as particularidades desta prova?

Para fazer quatro horas e dez minutos é cinco minutos cada quilómetro. A dificuldade que senti foi conseguir andar mais devagar. Inicialmente tenho de manter um ritmo certo, mesmo que me sinta bem porque é uma prova muito longa. Aos 20 ou 30 quilómetros posso sentir-me muito bem, mas aos 40 posso ter problemas. É uma gestão do esforço e ser paciente. Às vezes tenho um bocado de dificuldade neste aspeto. Gosto de andar depressa, treino muitas vezes com os rapazes e não me importo nada de ser eu a puxar. Se superar isto tudo e conseguir alcançar o meu objetivo ainda vou ficar mais forte. Foi o que aconteceu o ano passado nos 30 quilómetros, por volta desta altura, e deu-me muita bagagem para a restante época. Após esta prova vou descansar um pouco , ver as provas de circuito mundial – em princípio foi fazer duas provas no México em março – e,se tudo correr bem, vou ao mundial. Ainda não sei se nos 50 ou nos 20 quilómetros. Há um aspeto injusto: o mundial vai introduzir os 50 quilómetros, em que as mulheres pode
m participar e será uma prova mista, mas os mínimos são iguais tanto para os homens como para as mulheres e isto não acontece em nenhuma prova desportiva. Existe sempre um mínimo bastante diferente para homens e mulheres. Resumindo, o objetivo é não ter lá nenhuma mulher.

Sente que no atletismo ainda há pouca igualdade de género?

Não. A única prova que não existia para o setor feminino era os 50 quilómetros marcha. Vou tentar fazer isto para as mulheres marchadoras em todo o mundo quererem fazer os 50 quilómetros e assim nós conseguirmos ficar iguais aos homens nos 50 quilómetros. Vou precisar da ajuda de todas as marchadoras. Se fomos só três ou quatro a fazer isto é óbvio que não vamos ter força. Não é uma prova fácil, sei que provavelmente vou passar por algumas dificuldades, mas considero que nós, marchadoras com uma carreira já de muitos anos, temos um percurso de muito trabalho e a maturidade vai dar-nos tranquilidade para fazermos uma prova de 50 quilómetros. Eu, com os anos e quilómetros todos que tenho de bagagem, sinto que posteriormente a minha longevidade no atletismo pode acontecer com os 50 quilómetros porque os homens, se nos 20 já não têm tanta velocidade com a idade, muitos deles passam para os 50. O mesmo pode acontecer com as mulheres. Assim quem tem prazer em ser atleta, como é o meu caso, pode andar por cá mais alguns anos.

Que mensagem gostaria de deixar às jovens atletas em início de carreira?

Sinto que tenho algum talento para o desporto, mas os meus resultados não foram só obtidos pelo talento que tenho e sim, principalmente, pelo muito trabalho que eu, o meu treinador e toda a minha equipa temos tido. Nem sempre só o talento consegue vencer. Quando somos muito trabalhadores e organizados também conseguimos superar as nossas dificuldades e chegar lá. Às vezes demora mais tempo, mas também conseguimos chegar lá acima. Nunca desistam dos sonhos e continuem a trabalhar, um dia vão conseguir chegar lá.